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O Poder e as Estrelas

livro de Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

 

Capítulo 19 Revolta

Tansey, 1987, Mont Saint Victorie

 

Réa estava decidida a expor aos líderes cornianos a idéia da Terra em rever os impostos pagos pela exploração do planeta.

 

Achava a situação constrangedora, mas pior seria se o congresso a obrigasse e ela tivesse que expor aos amigos (sim, os três haviam se tornado seus amigos) o fato consumado. No momento em que ia pedir à Major Mel que marcasse uma reunião, a própria assistente entrou em sua sala:
 

- Almirante, sugiro que sintonize a TV local em seu computador.
 

A tela mostrava uma reunião na praça principal da aldeia. Algumas pessoas se aglomeravam para ouvir a oratória de um cidadão corniano, vestido, aliás, despido, e adornado como era o costume, antes da chegada dos terráqueos. O discurso dele repudiava os conhecimentos e a influência que a Terra estava exercendo sobre o povo e clamava a todos à renúncia a tudo aquilo que, até agora, Cornos parecia unanimemente acreditar ser uma maravilhosa dádiva recebida.

 

- Que direito tem os terráqueos invasores – perguntava ele – de impor seu estilo de vida ao nosso povo? Antes de eles chegarem, não éramos um povo feliz e realizado? Não tínhamos o suficiente para o nosso sustento e sobrevivência? Agora nos vestimos como eles, até falamos com a língua deles, usamos as suas máquinas e o seu suposto conforto, mas vejam o que nos tornamos. Uns escravos do trabalho que eles querem nos impor para manter em funcionamento todas essas maquininhas que muitos de vocês reverenciam como reverenciariam a própria obra dos deuses! Onde estão os nossos deuses? Onde está a nossa natural alegria? Nosso povo não canta mais, não mais se reúne em torno dos cornos para fumar as nossas ervas de felicidade, já há discórdia em algumas casas e, em breve, com a instalação dessa tal moeda nós nos tornaremos competitivos e cruéis como eles. A Terra veio aqui para explorar o nosso planeta e, em troca, nos ofereceu o seu modo de vida, que eu aprendi na escola deles, nos filmes deles, nas histórias que nos contaram. Não sei quanto a vocês, mas eu não quero, como nosso chefe Tutôr, que considero um traidor, me tornar igual a eles: cruel, insensível, individualista. Nós somos um povo livre. Nosso amor é livre. Nós somos alegres e não conhecemos esse estado de espírito irritado que vemos neles. Sei que muitos de vocês dão risada dessa maneira estúpida que certos terráqueos têm às vezes e que riem também dos bobos e violentos sentimentos que eles manifestam nas histórias contadas nos filmes e até nos noticiários. Mas nós somos adultos. O que será de nossos filhos crescendo num mundo igual ao deles?


Uma voz se ergueu na pequena multidão que se formara em torno do orador:
- Isso é uma ingratidão! A Terra nos deu tudo, conhecimento, saúde, música, entretenimento. Antes deles morríamos por qualquer doencinha. Nossos filhos não teriam as imensas possibilidades de saúde e bem estar que podemos dar a eles hoje! Nós demos um salto evolutivo! O que você propõe? Que voltemos a ser aqueles selvagens que éramos?


- Sim, meu amigo, eu proponho que voltemos a ser nós mesmos, que recuperemos a nossa identidade cultural antes que seja tarde!


- Ora – retrucou o espectador – você nem sabia que tinha uma identidade cultural antes da chegada dos terráqueos! Vá você sozinho para o mato e volte a viver como um selvagem. Nem sei como eles permitem que você fique falando asneiras em praça pública! Quanto a mim, amo os terráqueos e concordo com o nosso Mestre Arvos que sempre diz que, para a Terra, seria muito mais fácil ter nos exterminado e tomado o nosso planeta inteiro.

 
E o bate boca continuou. Mas Réa julgava que já ouvira o suficiente. Deixou a tela sintonizada, abaixou um pouco o som, para que pudesse continuar a ouvir e chamou a Major Mel. Agora precisava era de informações:
 

- Quem é esse sujeito, Major?
 

- Pautros. Um cidadão comum. Cursou a escola com os outros e, logo que começou a ser treinado para o trabalho, deu mostras de revolta, chamando a atenção dos seus preceptores, até porque revolta não é uma característica da personalidade corniana. Temos o dossiê dele nos arquivos.
 

- Essa é a primeira vez que ele tenta induzir publicamente os outros com suas idéias?
 

- Sim. Até agora ele tem manifestado sua insatisfação em círculos restritos.
 

- Tem conquistado adeptos?
 

- Sim. Cerca de 30 pessoas concordam com ele e pretendem fundar uma aldeia o mais longe daqui que conseguirem.
 

- Por que não fui informada antes?
 

- O relatório da psicologia julgava que a situação estava sob controle e que, brevemente, Pautros seria integrado sem maiores problemas. Não achamos que fosse relevante o suficiente para incomodar a Almirante. Parece que estávamos enganados.
 

- Os cidadãos de Cornos são, por constituição, livres para não aceitar o modo de vida terráqueo. Se esse Pautros e o seu grupo querem ter o direito de viver como antigamente, creio que posso delimitar um território para que eles lá se instalem. Vou estudar isso e quero conversar pessoalmente com ele.
 

- Mas, Almirante...
 

- Algum problema, Major?
 

- Não, não senhora. Nenhum. Para quando quer o encontro?
 

- Para daqui a dois dias, depois que eu tiver me reunido com os líderes cornianos sobre a questão dos impostos e depois que estiver segura de que escolhi uma área geograficamente adequada para instalar o pessoal de Pautros.
 

- Sua reunião com a liderança está confirmada para amanhã pela manhã. Acabei de marcar e ia mesmo informá-la.
 

- Perfeitamente, Major. Dispensada.


Quando Reá acabou de expor a situação dos impostos para os três líderes cornianos, foi Arvos e não Tutôr, como de costume, o primeiro a falar:
 

- Almirante, pelo o que eu sei e, por favor, me corrija se estiver errado, a Terra pagará impostos ao nosso povo pelo prazo de 100 anos. Depois disso, acredita-se que os cornianos estarão completamente integrados ao sistema produtivo terráqueo e que poderemos, então, andar com as nossas próprias pernas. Cem anos é um tempo enorme e realmente temos mais do que precisamos. Não vejo porque a Terra não poderia rever as quantias que nos paga e acredito mesmo que, em cem anos, isso voltará a acontecer muitas vezes. A Almirante mesmo está dizendo que há muito, muito dinheiro na Área Neutra. Para que precisamos de muito dinheiro? Nós já temos o suficiente e espero apenas que tenhamos sempre o bastante para continuar a viver essa nova vida e progredir, como povo, dentro dela.


- Quanto a mim – disse Iala – não vejo lógica em pensar que a Terra nos salvaria de nosso estado selvagem para, depois, nos colocar em dificuldades. Acho que o que vocês decidirem estará bem decidido.
 

Três pares de olhos fixaram-se, então, em Tutôr. Mas o chefe parecia alheio a tudo. Ao notar os olhares, foi como se despertasse:
 

- Acho que a Terra calculou mal o que nos devia. E já nos deu demais. Por mim, concordo com os meus companheiros.
 

- Mas alguma coisa o está preocupando – disse Réa.
 

- Pautros me chamou de traidor. Até agora não entendo. Tudo o que fizemos foi pelo bem de todos. O próprio Pautros não poderia articular tão bem os seus pensamentos se não tivesse estudado, como todos nós, com os terráqueos e, com eles, aprendido a pensar.
 

- Mas nós concordamos, Tutôr, que os cornianos que não quisessem adotar o sistema de vida da Terra seriam livres para viver como quisessem.
 

- O que eu não entendo é como alguém pode preferir viver na ignorância de tantas maravilhas, exposto às doenças e às intempéries.
 

- Eles se afastarão mas, em caso de necessidade, continuarão tendo direito à nossa completa assistência. É um direito, Tutôr – explicou Réa.
 

- Nunca pensei que haveria discórdia entre o meu povo. – respondeu ele.
 

- Pior seria se todos concordássemos em tudo – disse com calma o Mestre Arvos – Agora mesmos estamos tentando alinhar nossos pensamentos com relação aos deuses e ao sagrado, estudando inclusive as crenças terráqueas e revendo o que sobrou das nossas, na tentativa de encontrar um novo caminho para uma religião corniana. E temos discordado o tempo todo. Mas é da discórdia que nascem novas opções, novos caminhos, conciliatórios. De duas opiniões discordantes, Tutôr, nasce sempre uma terceira e talvez seja esta a mais adequada.
 

- Mestre Arvos há de me perdoar – respondeu Tutôr – mas o caso aqui é muito diferente. Não se trata de nenhuma busca. Pautros está negando o que ele próprio já se tornou e influenciando outros na volta a uma vida que eu, particularmente, já não gosto nem de lembrar. Não sei que espécie de vida ele pretende dar aos seus filhos e aos seus seguidores. Como será possível viver ignorando os progressos que a Terra nos mostrou? E que direito tem ele de negar aos seus descendentes uma vida de maravilhas?
 

- Seus descendentes certamente saberão que, fora da aldeia que ele fundar, se vive de outra forma. Isso será praticamente impossível de esconder. E eles poderão optar. – ponderou Arvos.
 

- Mas com que idade? Quando atingirem o momento dessa opção, essas crianças já estarão atrasadas em relação às nossas. Elas serão selvagens e terão muitos problemas para se adaptar em nosso meio.
 

- Tutôr – tentou apaziguar Réa – você está colocando o carro na frente de bois. Deixe Pautros e sua gente viverem como optaram por viver. Quando um deles adoecer seriamente virá correndo procurar ajuda para salvar a pele. Acabará se estabelecendo naturalmente um vínculo entre eles e a Área Neutra. Ninguém pode se isolar completamente. Haverá trânsito entre as aldeias deles e as nossas cidades. Tudo tem seu tempo. Você está magoado porque alguém ousou discordar daquilo que você considera ideal para o seu povo. Isso vai acontecer outras vezes na medida em que o seu próprio povo vai crescer muito mais depressa, agora que a mortalidade infantil foi eliminada. São novas realidades e você sabia que o nosso estilo de vida terráqueo traria fatos inesperados, inéditos.
 

- Sim, Almirante. Como sempre você está certa. Sou eu quem precisa se acostumar ao que vocês na Terra chamam de oposição e que, aqui, não havia antes. Agora certamente haverá.
 

- Deixe as coisas acontecerem, Tutôr – disse Iala. – Essas pessoas, como disse a Almirante, têm o direito de optar por um estilo de vida diferente do que temos agora.

Assim, graças à cordialidade daquele povo, que tudo parecia aceitar e compreender, Réa pôde negociar com a Terra a tão falada redução de taxas e todos os veículos de comunicação a festejaram como uma sábia estadista.

 

A vida do povo de Cornos não piorou em nada, ao contrário, nas aldeias rapidamente se instalavam as atividades produtivas dirigidas e executadas por nativos e esses se saíam muito bem em suas novas funções.
 

Acostumaram-se, também, rapidamente, ao dinheiro e às suas imposições. Os cinco anos seguintes foram de prosperidade tanto para a Área Neutra como para as colônias de exploração, que só faziam crescer. Rapidamente o planeta se urbanizou, com uma enorme vantagem sobre a Terra: ainda tinha áreas e áreas verdes e inexploradas. Cada vez mais terráqueos expressavam o desejo de trocar seu planeta natal por aquele que era julgado como uma segunda edição do paraíso. A população terráquea de Cornos, nestes cinco anos, saltara para mais de vinte milhões de habitantes e os nativos pouco peso tinham, numericamente muito inferiores. Réa permaneceu em seu posto e Mel, promovida a General, voltou para a Terra. O Major Narciso continuou em suas missões exploratórias e vinha cada vez menos freqüentemente a Cornos, o que entristecia um pouco a Almirante, porém logo ela podia lembrar-se da vida como ele com uma coisa boa, mas passada. Seu companheiro era de fato Tutôr, que continuava estudando e evoluindo e era agora o governador de toda a Área Neutra.
 

Entre as muitas atividades produtivas que se instalaram na Área Neutra, uma das mais rentáveis era o turismo, que fora autorizado pelo alto comando da frota no último ano. Para sair do continente onde estava a Área Neutra, os nativos tinham que sofrer esterilização temporária para assegurar o cumprimento da Lei dos Cem Anos. E eles adoravam viajar! Para um povo que primeiro pensara que a vida estava restrita aos limites de suas aldeias e que, depois, conhecera apenas através de imagens dos computadores, a Terra e o seu próprio planeta, poder deslocar-se era como um sonho que se tornasse realidade. Passados os primeiros meses de euforia, com viagens para os muitos países da Terra e para outros continentes de Cornos, a diretora da maior agência de Turismo (sim, porque já haviam três ou quatro na Área Neutra) teve uma idéia: por que não levar os cornianos visitar os seus próprios dissidentes? Pautros e o seu grupo haviam se instalado a pouco mais de 300 kms da Aldeia de Tutôr, numa área cuidadosamente escolhida por Réa. Estavam lá há cinco anos e tinham retomado o velho estilo de vida dos cornianos. Quase ninguém se lembrava deles, eram “os selvagens”, os esquecidos dissidentes. Télia, a corniana diretora da agência, viu uma possibilidade de oferecer turismo barato e interessante. Logo lançou uma campanha publicitária baseada no mote: “Visite o seu Passado” e, em poucas semanas, a aldeia primitiva, onde viviam dez famílias e cerca de quarenta pessoas, se viu cercada por turistas, carregados de máquinas de imagens, registrando o estilo de vida de seu próprio passado, como se fosse algo inédito.
 

Foi assim que a Almirante Réa deparou-se, ao chegar ao gabinete, com sua nova assistente, Sue, trazendo-lhe dois graves problemas:
- Almirante – disse Sue – está aqui, esperando por você, o chefe Pautros, incrivelmente bravo, reivindicando o direito de viver em paz, sem a invasão de turistas no fim de semana. E não é só isso: na outra sala, está Melina, uma corniana que trabalha no processamento de dados e acaba de voltar de uma das colônias e chora sem parar dizendo que tem o direito de conversar com você sobre a Lei dos Cem Anos. Ela se diz apaixonada por um engenheiro terráqueo e reivindica o direito de ter filhos com ele.
 

- Nada mal para começar um dia de sol, não? – riu Réa. – Mande Pautros conversar com Tutôr. Essa é uma questão que eles tem que decidir entre eles que são cornianos. Eu sabia que essa história de fazer dos dissidentes uma atração turística ia dar confusão. Mas não posso proibir os cornianos de visitarem a aldeia de Pautros. Quanto à Lei dos Cem Anos, até que demorou muito para acontecer um caso de amor entre cornianos e terráqueos com desejo de reprodução. Vou receber a moça. Ela está muito nervosa? Procure acalmá-la primeiro, me dê um tempo e me mande um café.
 

Réa estava preparada para essa eventualidade. Aliás, achava que demorara muito para acontecer. Na Área Neutra poucos casais, com relação estável, se formaram entre terráqueos e cornianos, embora tivessem acontecido vários casos de amor, mas sem maior interesse reprodutivo até porque os cornianos não se sentiam “donos” de sua prole, crianças eram para eles da sociedade e não fruto do amor entre duas pessoas. Além disso, os terráqueos que atuavam na Área Neutra haviam sido exaustivamente treinados e escolhidos a dedo para evitar justamente esse tipo de questão. A Lei dos Cem Anos era inquestionável para os preceptores. No entanto, com a abertura do turismo, Réa já calculara que, mais cedo ou mais tarde, se depararia com esse tipo de problema.
 

- Então você é Milena, do processamento de dados? Por que solicitou uma audiência comigo? Não sabe que não tenho poder suficiente para, como você, desobedecer as leis? – começou Réa com cara de brava, quando a moça entrou em seu gabinete.
 

- Sei que a Almirante é ocupada mas o que tenho a dizer é também muito importante não só para mim, mas para todo o meu povo.Eu quero ter um filho com um terráqueo.
 

- Milena, quando nós viemos para cá concordamos e seu povo assinou esse acordo com uma série de procedimentos...
 

- Eu sei, Almirante. Chamou-se Constituição Corniana e juramos cumpri-la.
 

- Então você sabe que um dos pontos fundamentais dessa Constituição consiste na Lei dos Cem Anos. Ela existe para preservar o seu povo como raça. Todos concordaram em abster-se da miscigenação por 100 anos para justamente impedir que sua raça desaparecesse, dada a esmagadora maioria de terráqueos que existem.
 

- Mas, Almirante, em cem anos, se continuarmos nesse ritmo, não seremos mais que um ou dois milhões de cornianos. E, em nosso planeta, já existem 20 vezes mais terráqueos do que isso. Penso que quem propôs essa lei seja muito idiota. Apenas postergou uma questão que acabará ocorrendo.
 

- Essa lei foi proposta por mim.
 

- Desculpe-me, Almirante. Não a julgava capaz disso. Afinal, que diferença fará se nos misturarmos hoje ou daqui a cem anos? Seremos sempre muito inferiores numericamente.
 

- Não é esse o nosso cálculo. Pensamos que em um século existirão cornianos suficientes para garantir a preservação de seu DNA original. Além disso, Melina, não vou ficar aqui discutindo com você uma decisão que foi tomada em convenção com as maiores inteligências da Terra. Só aceitei recebê-la porque a major Sue disse que você estava muito agitada e eu pensei que pudesse tranquilizá-la. Você ainda é muito jovem e os amores da juventude nem sempre duram. Tudo isso vai passar. Também fiquei curiosa em saber porque uma corniana daria importância à paternidade. Para o seu povo, os filhos são de todos e muitas mulheres nem mesmo se importam em saber qual dos seus parceiros foi responsável por sua gravidez, embora todas saibam que isso é hoje perfeitamente possível.
 

- Isso era antes de sabermos que os homens é que fazem nossos filhos e não os deuses. Eu estou amando um terráqueo que conheci numa viagem a outro continente. Quero viver com ele e quero ter filhos com ele. Foi ele quem me fez ver a importância disso. Filhos como resultado do amor são muito mais importantes do que filhos nascidos por acaso, por obra de deuses que nem conhecemos. Ele me disse que esse é um direito nosso. E estou disposta a lutar por esse direito. Por isso vim até aqui e vou à imprensa, vou botar a boca no mundo, vou lutar pelo direito de ter filhos com o homem que eu amo!
 

- Estamos em Cornos há sete anos e nenhuma outra mulher questionou a Lei dos Cem Anos. Você pode lutar, Melina, mas não creio que obtenha sequer o apoio de seu próprio povo. Você sabe melhor do que eu que as crianças cornianas são do grupo onde nascem e que entre esses grupos não existe o amor exclusivista. Ninguém vai dar ouvidos a você. Pelo contrário. Dirão que levou a sério demais a influência terráquea, que é mais terráquea que corniana e que quer ver as características raciais de seu povo diluídas na miscigenação conosco. Acho que você deve pensar melhor sobre tudo isso. Você pode ter muitos filhos e muitos amores, está dando tanta importância a esse seu amor pelo terráqueo – como é o nome dele?
 

- Alan Smith.
 

- Como eu dizia, está dando muita importância ao seu amor por esse terráqueo porque é uma coisa nova em sua vida. Você gostaria de amar apenas ao seu Alan? E se surgir outro amor no seu caminho? Ele é da Terra. Homens da Terra não aceitam dividir a sua mulher com outros homens, ainda mais se tiverem filhos com ela. Prometa-me que, antes de iniciar a sua luta, vai dar tempo ao tempo. Pense melhor, converse com o seu povo, com seus preceptores, espere o seu coração esfriar e, dentro de três meses, se você ainda quiser isso, prometo que pensarei em levar a sua reivindicação ao Conselho.
 

- Três meses?
 

- Sim. Prometa. Se em três meses você não tiver mudado de idéia eu levo o caso ao Conselho e veremos o que podemos fazer. Você poderá se mudar a Terra com esse Alan Smith e ter seus filhos lá. Mas vai ter que viver como terráquea. Nós, quando criamos essa lei, prevíamos que poderiam haver casos como o seu, embora soubéssemos da pouca importância que os cornianos dão aos conceitos de maternidade e paternidade como os entendemos. Em casos excepcionais, o Conselho tem parâmetros para abrir precedentes, mas em hipótese alguma uma criança nascida de terráqueo e corniano poderá viver em Cornos na vigência da Lei. Vá e volte daqui a três meses. Se esse filho for tão importante assim para você e para o Alan, certamente vocês não se importarão de abrir mão da vida que têm aqui para iniciar uma nova vida em algum lugar da Terra. Lembre-se ainda que você não terá outros amantes. Sua vida com um terráqueo será somente com ele. Pense em tudo isso e volte no prazo previsto. Tenha um bom dia.

Tutôr não foi tão flexível quanto Réa em relação ao caso de Pautros. Simplesmente disse ao líder dos selvagens dissidentes que o direito de ir e vir estava estabelecido em Cornos e que eles teriam que aprender a conviver com os turistas, cornianos ou terráqueos, sugerindo até que organizassem alguma espécie de atividade que lhes fosse rentável, explorando a presença dos turistas:
 

- Chefe, parece ter esquecido que nós não usamos dinheiro.
 

- Mas podem trocar os serviços oferecidos por alguma coisa.
 

- Não precisamos de nenhuma bugiganga terráquea. Fazemos os nossos próprios instrumentos de trabalho e utensílios, vivemos felizes sendo como éramos antes dessa invasão. Quando a Almirante nos designou essa área para viver foi porque nós queríamos distância de toda essa realidade. Então já tomamos a nossa decisão: vamos nos mudar. Faremos a aldeia em outro lugar, onde vocês não possam nos encontrar.
 

- O satélite sabe exatamente onde há agrupamentos humanos, Pautros. Em breve, os turistas os alcançariam. Que tal um acordo? Que tal permitir visitas à aldeia apenas uma vez por semana, aos domingos?
 

- Nosso povo não usa a sua contagem de tempo.
 

- Isso não importa, Pautros. Mas vocês não seriam incomodados a não ser uma vez em cada sete dias. Olhe, é o melhor que eu posso fazer por vocês. Afinal, a sua turma acredita que pode voltar ao passado. Mas o presente vai sempre persegui-los, acredite. O que houve com o nosso povo é irreversível.
 

- Isso é o que você pensa, chefe Tutôr. Nós não queremos nada com esse estilo de vida. Voltamos à nossa natural maneira de viver.
 

- Não voltaram. Hoje todos vocês têm conhecimentos que não tinham antes, já são homens e mulheres diferentes do que eram antes, seus pensamentos são outros, já não podem mais acreditar no que acreditavam antes.
 

- Por que não? Na nossa aldeia, celebramos os velhos cultos e voltamos a crer que a noite é apenas o manto dos deuses a cobrir a luz. E somos felizes como éramos antes.
 

- Felizes e doentes também? Mal alimentados? Sem remédios? Sofrendo?
 

- Os deuses têm as razões deles para nos fazer sofrer. Nós podemos aguentar.
 

- E as crianças? Devem se submeter ao que vocês querem, quando poderiam ter uma vida muito melhor?
Pautros riu:
 

- Você é que acha a sua vida melhor. Nós achamos melhor a nossa e as nossas crianças são nossas, temos todo o direito sobre elas.
 

- Bom, é mesmo inútil discutir com você. Vou conseguir que o turismo só possa ir a sua aldeia aos domingos. E isso é tudo.


Uma semana depois, Melina morreu no compartimento de carga, despressurizado, de uma nave de transporte. Ela tentava fugir para o continente onde estava o seu amado, sem ter que se submeter à esterilização temporária obrigatória para viajantes cornianos.


A aldeia de Pautros teve que se conformar com a presença semanal dos turistas, mas começou a pensar em criar técnicas para afugentá-los, para tornar a sua estada lá incrivelmente desagradável. Tarefa difícil para cornianos, nunca antes acostumados a atitudes negativas.
 

Na noite em que soube da morte de Melina, Réa, refugiada nos braços de Tutôr, disse a ele:
 

- Esse foi o meu primeiro grande erro em Cornos.
 

- A morte dela?
 

- Não. O erro foi subestimar a capacidade de revolta de um corniano. Cuidado, Tutôr, para não cometer o mesmo erro em relação a Pautros. Em sete anos, muita coisa mudou em Cornos e agora talvez o coração corniano, sempre tão cordato, sensato, generoso, esteja também num processo de transformação.

próximo (e último) capítulo

 

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