De uma maneira geral,
todos os delegados saíram satisfeitos da reunião em que se decidiu, na
Vênus Platinada, o destino de Cornos. Os representantes do planeta
também estavam felizes. O problema maior aconteceu quando se deu início
às discussões sobre a autonomia da Estação Espacial. Toda a Terra tinha
participado do esforço de construir a estação e todas as cinco grandes
regiões exploravam comercialmente, direta ou indiretamente, as
atividades comerciais e produtivas da estação. Dar autonomia à Vênus
Platinada, seria abrir mão de uma receita razoável e muitos argumentavam
que essa mesma receita ainda não pagara o grande investimento feito para
construir, no espaço, uma verdadeira Terra em miniatura. Réa, nessa
questão, foi voto vencido.
Mas as atenções do mundo estavam voltadas para Cornos e não para a
Vênus.
Réa viveu dias de glória, a agenda cheia, a mídia de todo o planeta
disputando uma entrevista sua.
Depois de um dia daqueles, em que, ela sabia, estava se decidindo, nas
altas cúpulas da Frota, a sua indicação para o almirantado e em que ela,
tensa, passara o dia se controlando e dando mil entrevistas para
veículos de todas as partes do mundo, conseguiu refugiar-se num
restaurante discreto, exclusivo para oficiais da Frota e pode saborear
um delicioso jantar na companhia de sua querida assessora, Major Mel.
Foi a Major que notou a presença dos cornianos, numa mesa discreta, num
canto do salão:
- Eles até já falam a nossa língua – disse Mel.
- São surpreendentemente inteligentes, para homens que estão pouco além
da Idade da Pedra – respondeu Réa. – Talvez tenhamos, na História,
menosprezado os nossos antepassados.
Nesse instante, seu comunicador pessoal tocou. Era o seu companheiro,
ligando da terra:
- Meu amor, estou louco de saudades! – disse a voz do Capitão Narciso.
- Eu também – mentiu ela, que, na verdade, mal pensara nele desde que
ele partira para a sua missão em Nemus 4.
- Réa, você vai conseguir o almirantado.
- Acho que sim.
- Eu acabo de pousar na Terra e acho que vou voar até aí ainda esta
noite.
Réa hesitou por um instante. Seus olhos, por um segundo, cruzaram com os
olhos de Tutôr, sentado à sua mesa no canto do salão.
- Você não está cansado de voar?
- Eu devo voltar para terra amanhã de manhã. Mas poderíamos ter uma
noite juntos, estou louco pra te ver.
- Eu também – mentiu ela mais uma vez – mas estou extremamente cansada e
amanhã, logo cedo, volto para a Terra. Me espere, amor.
O que Réa não queria confessar nem para si mesma era que, apesar dos
quase vinte anos que vivera com Narciso, muito a magoara o pouco caso
com que ele encarara sua luta pelo almirantado. Doera em Réa descobrir
que o seu companheiro não a julgava capaz de atingir tão alto objetivo.
Racionalmente, ela o perdoara. Afinal ele era um homem e homens
raramente admitiam mulheres no círculo de poder, ainda que vivessem com
elas. Além disso o orgulho de macho de Narciso ficara ferido ao ver sua
companheira saltar do primeiro comando de uma nave à patente de major,
quando da sua admissão na expedição à Cornos e, depois, apenas 3 anos
depois, vê-la elevada à General. Era uma carreira rápida demais para
qualquer oficial da Frota, quanto mais uma mulher. O orgulho de Narciso,
ferido, deixava transparecer sua mágoa em pequenas agressões cotidianas
que foram, por sua vez, ferindo Réa.
Réa e Mel coroaram seu jantar com uma magnífico licor.
- Bah. Estou cansada. Vou deitar. Você vem? – perguntou Mel.
- Acho que vou tomar a saideira ali no terraço do observatório. Quero
olhar as estrelas.
- Se importa se eu me for?
- Claro que não, major, dispensada.
Réa, depois da despedida de Mel, postou-se no terraço do restaurante que
tinha uma imensa clarabóia de onde se podia avistar a Terra, a Lua e as
estrelas. Estava ali, relaxando, quando o sacerdote Arvos aproximou-se:
- Interrompo-lhe os pensamentos, general?
- De modo algum, Mestre Arvos. Eu estava apenas tentando relaxar um
pouco.
- Como deve ser de seu conhecimento, general – disse Arvos fitando o
firmamento- meu povo acreditava que as estrelas fossem apenas buracos
que os deuses haviam feito no manto da noite. Ainda é difícil para mim,
depois de todo o conhecimento que adquiri com os terráqueos, vê-las de
outra forma.
- É entre elas que está o meu Lar – disse Réa, tomando subitamente
consciência de que toda a sua vida havia sido pautada pelas viagens
espaciais, pelas estrelas.
- Estou contente com a decisão tomada pelos terráqueos de colonizar o
meu mundo e de ensinar ao meu povo toda a sabedoria que vocês
acumularam. Mas, é claro que há sempre um mas, temo que algumas de
nossas verdades se percam diante da força de tantas verdades que vocês
tem para nos revelar.
Réa olhou para ele, espantada.
- De fato – continuou o sacerdote – há um único ponto em que eu
considero que a nossa sociedade em Cornos é mais feliz do que o povo da
Terra. É no que vocês chamam de amor. Eu o vi nas letras de suas músicas
e até mesmo nos poucos livros que li nos computadores. Leio devagar, o
general sabe que aprendi há muito pouco tempo a ler em sua língua e que
me é difícil, entre tantas atividades que tenho tido entre vocês, ter
tempo para a leitura. Mas, nesse tempo que passei aqui, aprendi que o
amor entre machos e fêmeas é fonte de angústia para os terráqueos. Em
Cornos não há esse sentimento obsessivo de posse entre os amantes. Lá,
apenas amamos. E ninguém nunca nos disse, como pensam vocês, que o amor
é exclusivo, que quando se ama alguém deve se amar apenas aquela pessoa.
Os terráqueos sofrem quando amam e percebem que a pessoa a quem amam
também ama uma terceira. Em Cornos, sabe, não temos isso. Cada amor é
único, sim. Por isso podemos amar a quantas pessoas quisermos e ninguém
se importa com isso. Nossos filhos, frutos do amor, são da tribo. Não
são, como aqui, de um único casal. Tudo isso era muito estranho para
mim, no começo. Mas agora até consigo entender. Desculpe-me se lhe digo
isso, mas percebi a maneira como o general olha para Tutôr e como Tutôr
olha para o general.
Réa caiu na risada:
- Mestre Arvos, eu sou uma mulher comprometida. Ainda há pouco estava
falando com o meu companheiro...
- Capitão Narciso, não é?
- Ele mesmo.
- E o general o ama?
- Sim, eu o amo muito. Estamos juntos há 20 anos terrestres.
- Nunca amou outro?
- Acho que não, desde que conheci Narciso.
- Mas agora ama Tutôr?
Réa riu de novo. Agora, um riso nervoso.
- Bem...Tutôr é um homem extremamente atraente.
- Ama ou não?
- Mestre, deve saber que o amor é mais do que atração física.
- Ah, eu sei sim. Mas o que leio nos olhos de Tutôr e nos olhos do
general também é.
- E o Mestre Arvos, um dos três representantes de Cornos, veio aqui para
bancar o Cupido?
- O amor é uma coisa importante, general. Tão importante quanto qualquer
decisão aqui tomada. Eu vi o seu amor por Tutôr e sei que ele a ama
também, desde o primeiro dia em que a viu e que pensou que você era um
deus. Mas se estou falando de amor é porque temo que a Terra contamine
nosso povo com esse conceito torcido de amor, que acabe por estabelecer
a angústia onde, hoje, só há alegria. Sabe, eu fiquei surpreso quando vi
que na Terra também se faziam bolos. É claro que os bolos da terra são
muito mais variados do que as simples misturas que fazemos em Cornos.
Mas surpreendentemente o princípio é o mesmo. Também produzimos farinha
e também a misturamos com gorduras e açucares e fermento e, no fim,
todos os bolos são iguais. Nós também os assamos no calor, como vocês. E
os colocamos em fôrmas, como vocês. Quando os terráqueos nos ensinarem a
sua sabedoria, temo que nos coloquem em fôrmas e que nos moldem de
acordo com suas crenças. Até aceito ser enformado e sair da fôrma cozido
em nova forma. Só não gostaria de trocar a pureza de nossa maneira de
amar pela angústia que o amor possessivo dos terráqueos cria. Penso que
se o general, que é uma figura pública e cuja opinião é imitada pelos
terráqueos, assumisse o seu amor por Tutôr, independente de seu amor
pelo Capitão Narciso, talvez desse a nós, povo de Cornos, uma
oportunidade de ter uma única fôrma onde cozinhássemos terráqueos.
Réa sentiu uma grande excitação, um rubor cobriu-lhe a face e lágrimas
vieram-lhe aos olhos ante a possibilidade, antes nem sequer cogitada, de
viver uma história de amor com Tutôr. Sorriu e disse:
- Eu lhe prometo, Mestre Arvos, que pensarei cuidadosamente no assunto.
- E eu lhe agradeço, general Réa, tenha uma boa noite – disse ele,
virando-lhe as costas.
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Capítulo 7 -
A Transformação
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