Réa
andava nervosa,
perguntando-se aonde e em que tinham errado.
Tutôr também andava nervoso e evitando a companhia dela, se concentrando
em seu próprio grupo, ficando muito mais tempo com os filhos e com Marla.
Certa noite, para a surpresa da Almirante, o Chefe apareceu em sua casa:
- Réa, quero ir embora de Cornos. Marla, eu e os meus filhos decidimos
que queremos viver na Terra. Isso é possível, não é?
- Nunca nenhum corniano pediu isso, Tutôr. Mas é claro que é possível.
Desde que você não se importe em sofrer esterilização definitiva, você e
Marla. As crianças poderão fazer suas vidas como se fossem cidadãs da
Terra. Mas como você vai sobreviver? Terá que trabalhar, provavelmente
vocês dois. É claro que existem muitas coisas que vocês estão
habilitados a fazer e não faltam empregos na Terra hoje em dia. Mas lá
você será apenas um cidadão comum, sem os privilégios que tem aqui. Além
disso, vai abandonar seu povo?
- Ele é que me abandonou Réa. Mais de metade do meu povo já fugiu do meu
governo para a aldeia de Pautros. Talvez ele esteja certo e eu, errado.
Talvez eu seja mesmo um traidor e tenha me deixado maravilhar pelos
conhecimentos e pelo estilo de vida de vocês. Então, penso eu, se me
tornei um terráqueo e já não sirvo mais para chefiar o meu povo, devo ir
para a Terra.
- Mas e os que ficaram? Você vai abandoná-los?
- Ouça-me, querida, eles não ficarão por muito tempo. Mais cedo ou mais
tarde, todos se unirão aos selvagens. Essa é a nossa maneira de viver:
selvagemente. Mesmo que tenhamos conhecido a civilização da Terra, esse
é o nosso verdadeiro estágio. Só mesmo eu e Marla é que não queremos
retornar à velha vida. Mas, entre os que ficaram, adivinhamos o desejo
de ir. Está nos olhos deles. De todos. Réa, arrume um lugar para mim na
Terra.
- E eu? Você vai me deixar?
- Toda a Área Neutra perderá o sentido. Você também vai perder o
sentido. Sua missão aqui está terminando, Réa, pode acreditar. Nos
encontraremos um dia, quando você também voltar à Terra.
- Não, Tutôr. Isso não vai acontecer. Você está enganado. Há muitos
cidadãos cornianos que estão felizes aqui e tudo isso aqui vai continuar
e progredir.
Tutôr apenas deu-lhe um beijo na testa e disse:
- Vou embora agora. Promete que vai arranjar as coisas para a minha
transferência, a de Marla e a de meus filhos para a Terra?
- Se é o que você quer. Pense melhor.
- Já pensei. Prometa.
- Está bem, eu prometo.
Réa
dormiu mal à noite
e chegou ao gabinete acreditando que Tutôr estava errado e que muitos
dos cornianos que se bandearam para a aldeia de Pautros acabariam se
arrependendo e, sentindo falta da vida confortável e rica, voltando. Mas
Arvos e Iala a esperavam.
- Almirante – disse Arvos – tenho passado todos esses anos entre os
terráqueos, aprendi muito e muito, estudei suas crenças, me apaixonei
por sua música, mas agora o meu povo, a maior parte dele, está entre os
dissidentes e sinto que é meu dever estar também entre eles. Assim, vim
me despedir. Acho que não teremos mais oportunidade de conversar e saiba
que essas conversas, assim como as máquinas de música, vão me fazer
muita falta. Mas o meu destino é estar entre o povo, prover-lhe as
necessidades espirituais e sou mais necessário hoje lá do que aqui.
- Eu também – adiantou-se Iala. – Sem os seus modernos medicamentos, sem
o conhecimento da Terra na arte da cura, nosso povo está sozinho lá na
aldeia e precisam novamente das minhas ervas.
O mundo de Réa parecia desmoronar. Sua proverbial segurança desaparecera
e ela balbuciou:
- Mas Iala...seu curso de medicina?
- É claro que os conhecimentos que adquiri me auxiliarão a encontrar
novas ervas e novos usos para aquelas que já conheço. Mas o meu povo se
foi e muitos, dos que ficaram, acabarão indo também. Lamento que seja
assim, Almirante. Ninguém, melhor do que nós, sabe o quanto você
trabalhou, o quanto sonhou e ousou para criar para o nosso povo uma vida
melhor. Mas não foi essa vida que eles preferiram. Lamento.
Iala tinha lágrimas nos olhos. Arvos também.
- Espero que compreenda, Almirante – disse ele. – Foi uma grande lição
para nós tudo o que aconteceu. Seu trabalho não foi em vão. Eu mesmo
tenho hoje uma outra visão do Universo, mas ainda assim nada me impedirá
de acreditar que a noite seja o manto dos deuses.
E, assim, dia após dia, os
cornianos foram
deixando a Área Neutra e se mudando para a aldeia de Pautros, agora seu
novo líder.
Tutôr realizou seu sonho e foi para a Terra, morar no Brasil, em
Salvador, Bahia.
A Área Neutra perdeu o sentido.
As casas e os estabelecimentos foram abandonados.
E a Frota Espacial decidiu manter os terráqueos longe daquele
continente, considerado propriedade dos nativos, e para estes instituiu
uma Fundação que investiria, no próprio planeta, os recursos financeiros
que os cornianos desprezavam, fruto de seus impostos recebidos pela
exploração dos outros continentes. Tutôr recebeu um alto posto nessa
Fundação, mas todos os outros membros pertenciam ao governo terráqueo de
Cornos e da própria Terra.
O que outrora fora uma aldeia transformada em cidade de sonhos, era
agora uma cidade fantasma.
Na sua última noite em
Cornos, antes da
viagem de volta para o seu planeta natal, Réa foi ao terraço de sua
casa, de onde tantas vezes mirara aquele Firmamento, e perguntou a Deus
por que e aonde fracassara. Mais uma vez, não obteve a resposta. Tinha
dedicado quase uma década de sua vida aquele povo e eles tinham
preferido voltar a ser o que eram antes.
Cornos era uma colônia em franco desenvolvimento, gerando riquezas para
si própria e para a Terra. Mas a Área Neutra fora um fiasco retumbante!
Fitando o céu, Réa pensou que a noite talvez não fosse de fato o
resultado do movimento de rotação do planeta, mas que pudesse ser um
manto, estendido pelos deuses, com o devido cuidado de deixar pequenos
furos no tecido, por onde passasse um pouquinho de luz, dando a certeza
de que, mais tarde, no tempo certo, toda a luz retornaria à vida,
banhando-a com seus ouros e pratas.
Era noite agora no coração de Réa e nunca, em toda a sua trajetória de
sucessos, ela se sentira tão pequena, tão só. Nesse momento, em todo o
infinito universo, ela estava só. Ela, o poder e as estrelas.
FIM São Paulo, 18 de agosto de 2002
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