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O Poder e as Estrelas

livro de Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano   

 

 Capítulo 10.

O Povo Eleito

 

Debret, aldeia

 

Em Pequim, a capital financeira da Terra, as bolsas de valores viviam ora dias de glória ora dias de pânico. A chegada de tantas novas ofertas de investimentos, que ocorriam em Cornos, com sua quase completa ausência de riscos, atraiu inúmeros novos investidores do mundo todo, mas, às vezes, fazia balançar seriamente companhias que antes eram consideradas exemplos de solidez. Cornos fornecia inúmeras novas matérias primas, oferecia novos minerais que os cientistas pesquisavam com fúria e, a cada dia, surgiam aplicações, antes impensáveis, para a riqueza que estava vindo do planeta recém explorado. Isso sem contar a área farmacológica e química.

A cada descoberta de novas potencialidades dos vegetais de Cornos, a bolsa fervia, o mundo se agitava. Dos pequenos aos grandes investidores, todos sonhavam enriquecer do dia para a noite com novas descobertas vindas de Cornos. Empresas surgiam e sumiam com a mesma rapidez. Era uma verdadeira revolução econômica. E tudo isso apenas em troca de educar e “civilizar” pouco mais de mil indivíduos.

 

Parte da riqueza obtida pelos exploradores de todas as áreas em Cornos, ia para o próprio planeta, que possuía um subgoverno internacional e, inclusive, para o que os terráqueos apelidaram de “área neutra”, onde viviam as tribos e, agora, oficiais da frota, cientistas e professores. Réa logo viu-se administrando uma fortuna considerável e não faltavam recursos para o que quer que fosse preciso construir ou estabelecer nas aldeias e imediações.

 

Cornos tinham assim uma qualidade de vida muito superior à maioria dos países da Terra. Todas as suas necessidades básicas estavam supridas e todos os seus caprichos de consumo estavam ao alcance do poder aquisitivo de seus vale-escola.

Certa manhã, depois de mais um sonho angustiante com Tutôr, Réa abriu seu computador preparando-se para um dia de rotina administrativa e a tela a avisou que havia uma notícia, reproduzida pelos principais veículos de comunicação da Terra, em que ela e o planeta eram os principais assuntos.
Mal pode crer no que seus olhos viram, quando mandou abrir a notícia.


Apolo, o general que ela derrotara na luta pelo almirantado, fazia sérias críticas à sua administração da área neutra e também à sua atuação no Conselho Consultivo do subgoverno da Terra em Cornos. Ele dizia, entre outras coisas, que os percentuais recebidos pelo subgoverno para administrar a colônia e pela área neutra eram absurdamente altos, que estavam criando, no planeta, uma sociedade muito mais rica do que a própria terra. Atacava duramente o processo de educação e assimilação dos cornianos chamando-os de “povo eleito”, clamando contra os privilégios que colonos e nativos tinham diante da real situação da absoluta maioria dos povos da Terra. Propunha que o Congresso Internacional revisse as leis que regiam as relações econômicas em Cornos e que se fizesse uma devassa na administração do planeta. Sua fúria era principalmente dirigida ao Almirante Réa, que, segundo ele, tratava os nativos como garotinhos mimados, que tinham tudo de mão beijada e previa que as próximas gerações de cornianos, acostumadas a ter tudo sem precisar se esforçar para nada, resultasse num bando de indolentes, que não necessitam ganhar a vida com o suor do próprio rosto. Propunha, ainda, que se estabelecesse moeda real no planeta e que se designassem atividades produtivas para os Cornianos e que estes, afinal, se acostumassem com as regras de sobrevivência no mundo capitalista, uma vez que já tinham se acostumado – e rapidamente – a usufruir do que a humanidade lutara por milênios para conquistar. Referia-se à situação como O Mundo de Mamãe Réa e Seus Tutelados Malandros do Paraíso.


Réa mal podia acreditar que um general, da importância de Apolo, tivesse se referido ao trabalho de oficial de patente superior com tal descaso e ironia ferina. Pediu uma ligação para o seu tio, irmão de sua mãe, que era Ministro das Relações Espaciais Exteriores (cargo este que, até a descoberta de Cornos tinha sido pouco mais do que uma teoria) e também uma reunião com o alto comando da frota. Imagine, que afronta! Um subordinado não só contestando o trabalho da corporação e as decisões do mais alto comando da frota e dos Cinco Grandes como também se dando o direito de falar de um almirante naqueles termos baixos e pejorativos! Aliás, uma almirante, do sexo feminino... Porque, pensava Réa, se ela fosse um homem ele não teria coragem de atacá-la naqueles termos. Apolo era um velho decrépito, nascido numa cultura ainda profundamente machista, pois era ele no começo do século XX e já estava com 136 anos de idade.


- Ministro, meu querido tio – disse ela, quando a conexão foi estabelecida – eu apenas queria deixar claro que estamos, no subgoverno, conduzindo a colonização de Cornos conforme o que foi acordado internacionalmente na Conferência da Vênus Platinada e que, particularmente, tenho governado a área neutra também segundo os mesmos princípios.


O ministro era conhecido por seu bom humor. Era mesmo um tipo bonachão e caiu na risada, seus olhos brilharam e Réa, ante a imagem dele na tela, sentiu-se ridícula.


- Apolo conseguiu finalmente uma pequena vingança contra a Almirante Réa, hein? Não se importe com isso, minha filha. Cornos é um sucesso, a terra ficou mais rica com o trabalho de vocês, todos apóiam e está tudo certo. Mas, convenhamos, alguma oposição é sempre necessária e pode fazer o Congresso Mundial refletir sobre os rumos que se traçarão para o planeta daqui para frente.


Era incrível! Ele não só a tratava como se ela fosse uma colegial ofendida como achava bom que o Congresso repensasse as diretrizes para a colônia. Sentiu seu rosto avermelhar-se e esperou que o ministro não pudesse, pela tela, perceber o seu rubor:
- De qualquer maneira eu reafirmo que estamos conduzindo as atividades da colonização em Cornos dentro dos parâmetros que nos foram estabelecidos.


- Eu não poderia esperar outra coisa de você, minha cara Almirante e sobrinha. Não se preocupe com a velha raposa do Apolo. Deixe que ele espume a sua raiva pela boca. Na verdade, ele está morrendo de inveja de você. É bom ir se acostumando a isso, Almirante. Tenha um bom dia.
E desligou.


Quem espumava agora era Réa, de raiva e por estar arrependida de ter incomodado um ministro, ainda que fosse seu tio, com uma questão que ela deveria ter deixado passar despercebida. Dera importância demais a Apolo. Precipitara-se e merecia ser tratada como uma colegial. Logo ela, sempre tão ponderada em suas decisões.
A reunião com o comando, dois dias depois, não foi melhor. Eles julgaram que Apolo, embora sendo um membro da corporação, tinha todo o direito de fazer suas críticas e muitos eram mesmo favoráveis a vários pontos de vista do general. O máximo que ela conseguiu foi uma advertência formal ao general quanto à rispidez de suas palavras com relação a um superior hierárquico.

Sentindo-se tola, solitária e criança, naquela noite, quando voltou da Terra ao planeta e deitou-se em sua confortável cama, fitou as estrelas do firmamento de Cornos e pensou que gostaria de ter ao seu lado naquele momento os braços fortes do companheiro para envolver seu corpo cansado. Mas, estranhamente, não era a imagem de Narciso que ocupava seus pensamentos. Os braços imaginários eram os braços de Tutôr.
Desacostumada às críticas, ela que em toda a sua vida só colecionara sucessos, sentia-se extremamente só naquele momento.
 

O tempo, porém, provaria que Apolo não estava totalmente errado.
 

Próximo capítulo - 11 - A Árvore do Conhecimento

 

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