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O Poder e as Estrelas livro de Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano |
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Noemy Ivanisky, Camninho das Hortênsias
"Deus sabe que eu também gostaria de dar prazer ao seu companheiro. Mas nós, da Terra, não somos como vocês. O nosso amor é exclusivista e, se eu fizesse isso, causaria uma grande mágoa ao capitão Narciso, com quem eu já vivo há 21 anos. Não posso fazer isso, Marla. Não posso entristecer o meu companheiro para dar alegria ao seu." |
Capítulo 9. A Obra
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Um enorme edifício fôra erguido na periferia da tribo de Tutôr, onde funcionava o QG da Frota Espacial em Cornos.
Dali eram controladas
as expedições exploratórias que se instalavam nos continentes
desabitados e ali alojavam-se não só os altos oficiais responsáveis
por toda a missão como, num pequeno anexo, a legião de casais que
tinham por missão ensinar aos cornianos os conhecimentos básicos de
informática, ciências, história da terra e conhecimentos gerais para
a vida prática, como culinária e nutrição, marcenaria e engenharia
básica. Ao contrário do que pensara o delegado americano, quando da conferência na Vênus Platinada, não se havia ainda instituído uma moeda nas tribos de Cornos. Ficara estabelecido que todos os nativos teriam direito a usufruir da energia elétrica, computadores e rede de comunicação, saneamento básico, água encanada, escola e hospital. |
Instalaram-se
lojas com todas as quinquilharias imagináveis, de roupas a
brinquedos e utensílios domésticos, que estariam ao alcance do cornianos mediante os vale-escola, que eram recebidos por eles de
acordo com sua evolução nos estudos e que podiam ser trocados por
mercadorias nas lojas. Era a introdução de um conceito de valor, de moeda. Mas como não havia naquele povo a idéia da posse o que ocorria na prática e que todos usavam tudo o que teoricamente seria de outros e ninguém se importava ou brigava por isso.
Junto ao anexo-residência dos professores, ficava a escola central,
mas existiam outras, estrategicamente localizadas perto das cabanas
que, lentamente, foram sendo substituídas por casas construídas
pelos colonizadores. Também foram instaladas usinas de geração de
energia elétrica e solar, bem como central de informática e estação
de tratamento de água. Os cornianos estavam deslumbrados. Em pouco menos de um ano
terrestre, as aldeias se transformaram em cidades e muitos dos
nativos, a exemplo de Tutôr, vestiam-se agora como os terráqueos. É claro que alguns nativos resistiram às mudanças e preferiram
manter seu velho estilo de vida. Mas mesmo esses acabaram cedendo
diante da primeira doença que tiveram curada pelos terráqueos, ou
diante dos filmes holográficos, que todos adoravam. Só Tutôr não era feliz. Desde o dia em que tentara, ainda na terra,
beijar e abraçar a general e ela o repelira, uma coisa começara a
comê-lo por dentro, angustiando a sua alma. Por que ela o repelia
se, ele tinha certeza, também o queria? Agora, que a cidade estava construída e os terráqueos controlavam
tudo, a ele cabia apenas o papel de líder decorativo. Era um porta
voz da decisão dos terráqueos, que, é verdade, viviam convocando-o
para reuniões onde se decidia isso e aquilo mas Tutôr sabia que a
sua liderança era nada mais do que fachada. Não que seu povo se
importasse com isso ou mesmo tivesse consciência disso. Ele ia
levando a vida. Seus dias eram passados entre reuniões com os
colonizadores e idas à escola, onde aprimorava seus conhecimentos
frequentando essa ou aquela aula, de acordo com a sua curiosidade.
Vivia com Marla, agora numa casa grande e confortável, e continuava
amando e respeitando a companheira que, nos três anos que ele
passara na terra, tão bem preparara seu povo para a vinda definitiva
dos terráqueos. Mas queria Réa. Queria amá-la e ela apenas insistia
em tratá-lo formalmente e em fingir que nada sentia por ele. Isso
Tutôr não podia entender e estava decidido a nunca, nunca mesmo,
aceitar.
Até agora haviam acontecido poucos casos sexuais entre terráqueos e cornianos mas nenhum deles, graças a Deus e às providências de Réa, resultou em gravidez. Em suma, todos estavam felizes, a mídia da Terra só tinha aplausos para a missão colonizadora, que encontrara pouquíssima, quase nenhuma mesmo, resistência entre os nativos e tudo ia às mil maravilhas. A única coisa que não ia bem era o coração de Réa. Ela agora era almirante.
Aos 46 anos, uma glória inédita na história da Frota. Era responsável por toda a missão colonizadora do planeta, respeitada e venerada ali e também na Terra. Mas... Sempre há um mas, já diria o Mestre Arvos, a renúncia ao amor de Tutôr ainda lhe queimava a alma. Sonhava com ele e acordava chorando, ao perceber que tinha sido apenas mais um sonho. Sonhava que caminhavam, de mãos dadas, pelas alamedas ladeadas de hortênsias. Aquelas flores já estavam se tornando um símbolo e um cartão postal da nova cidade que se erguera na aldeia. As mulheres terráqueas haviam trazido mudas da terra e descobriu-se que as hortênsias floresciam magnificamente no solo de Cornos. Elas estavam em toda parte, agora, e delimitavam as principais alamedas asfaltadas construídas recentemente. Era por essas alamedas que ela frequentemente caminhava com Tutôr, assumindo o seu amor por ele, em sonhos. Sonhos que sempre terminavam com a angústia de estar traindo Narciso.
Nesse ano, o capitão passara seis
meses em Sirius e, ao retornar, veio a Cornos e ficou com ela uma
boa temporada. Frequentemente se encontravam, em Cornos ou na Terra,
e continuavam a sua relação, sem nunca falar em Tutôr, a não ser por
razões políticas, conversas sobre a evolução da colonização onde ele
eventualmente aparecia. Réa o repelira, com dor no coração.
Renunciara a viver esse amor porque não queria por tudo a perder com
Narciso. No entanto, tinha que reconhecer que amava os dois. De
formas diferentes, mas era amor, sim. E o pior é que, por mais
formalmente que tratasse Tutôr quando se encontravam nas reuniões do
comando ou em ocasiões sociais, lia nos olhos dele a ansiedade por
um amor que ele não podia entender, como ela entendia, como
impossível.
- Tudo bem. Faça-a entrar. Era uma mulher lindíssima e ficara ainda mais bela vestida com os
trajes terráqueos, os cabelos muito bem cortados, uma elegância
natural e simples nos gestos: - Almirante, é um prazer vê-la novamente – disse falando com
perfeição, quase sem sotaque, a língua de Réa – e muito obrigada por
me receber tão prontamente. - Também é um prazer para mim – respondeu Réa – receber a mulher que
soube tão bem governar seu povo e prepará-lo para a nossa chegada.
Creio que ainda não tinha tido a oportunidade de dizer-lhe que seu
trabalho, baseado nas informações de Tutôr, abriu um caminho muito
mais suave para a nossa instalação aqui. - Obrigada, Almirante. Sinto-me lisonjeada com suas palavras. No
entanto – respondeu Marla, com aquela desconcertante franqueza tão
comum aos cornianos – o motivo de minha visita aqui hoje não diz
respeito, diretamente, às questões do meu povo. Na verdade, meu povo
está muito satisfeito, e eu também, com tantos novos conhecimentos
que os terráqueos tem nos proporcionado. Nossa vida, sob a sua
tutela, tem sido uma vida de sonhos, de alegrias, confortos e
descobertas. Mas uma coisa tem me preocupado, e tanto tem me
preocupado que eu decidi trazer o problema ao conhecimento da
Almirante. - O que posso fazer por você? - O que me preocupa é Tutôr. Ele fica alegre por ver seu povo
evoluindo, como ele mesmo diz, graças aos imensos benefícios que a
vinda dos colonizadores nos trouxe. Ele fica alegre com suas roupas,
seus brinquedos mágicos, seu computador e sua música. Mas, no fundo,
eu sinto uma grande tristeza na alma dele. Eu o conheço. Vivemos
juntos há muitos anos e eu sei que há uma grande angústia, como
nunca houve antes, dentro dele. Tutôr está perdidamente apaixonado
pela Almirante e, nunca, entre nosso povo, aconteceu uma paixão
assim não correspondida. É claro que às vezes uma mulher deseja um
homem que não a quer ou um homem deseja uma mulher que não o quer.
Mas isso é raro. Quase sempre dá tudo certo. E mesmo que aconteça um
amor não correspondido logo aparece outro amor e a pessoa esquece
aquele. Não é isso que está acontecendo com Tutôr. Ele é carinhoso e
gentil comigo mas os seus pensamentos, eu sei, frequentemente estão
com a Almirante. E ele está amargurado, como dizem os terráqueos.
Esse é um sentimento que eu mesma, como a maioria de nós, cornianos,
desconheço, mas estou aprendendo a conhecer através dele. Por isso
eu lhe pergunto, com todo o respeito, se seria assim tão difícil
para a almirante receber Tutôr em sua casa e dar-lhe algumas horas
de prazer e alegria? Eu sei que é tudo o que ele mais quer e isso o
acalmaria e faria com que ele fosse ainda mais útil para o nosso
povo, sendo de novo um homem alegre. Réa ouvia tudo, absolutamente desconcertada. Sabia que o amor era
livre entre os cornianos mas jamais pudera imaginar nada semelhante
a isso. Respirou fundo e respondeu: - Deus sabe que eu também gostaria de dar prazer ao seu companheiro.
Mas nós, da Terra, não somos como vocês. O nosso amor é exclusivista
e, se eu fizesse isso, causaria uma grande mágoa ao capitão Narciso,
com quem eu já vivo há 21 anos. Não posso fazer isso, Marla. Não
posso entristecer o meu companheiro para dar alegria ao seu. - Desculpe, Almirante, mas eu não consigo entender porque o seu
companheiro ficaria infeliz sabendo que você teve momentos felizes
com Tutôr. - Eu sei que é difícil de entender para você, Marla. A generosidade
de seu povo é superior a generosidade do povo da Terra, que exige
exclusividade no amor. Mas é assim que são as coisas. E eu não posso
atender ao seu pedido. Procure me perdoar. Eu também amo o capitão
Narciso e não posso magoá-lo. Tutôr é um homem maravilhoso e
atraente mas eu não posso consumar esse amor e, saiba, também dói
dentro de mim essa decisão. Mas da mesma maneira que posso viver com
essa dor, Tutôr também pode. - Tem sido difícil para ele. Talvez mais difícil do que para você.
Tão difícil que eu vim aqui para pedir-lhe isso. - Mas eu não posso atender, Marla. Sinto muito. Sinto mesmo. Leu nos olhos dela uma profunda decepção. - Prometo que vou pensar em conversar com o capitão sobre isso. Mas,
Marla, isso não é assim tão importante. - O líder do povo está entristecendo, Almirante. Isso é sim muito
importante. Até agora a Terra tem nos trazido apenas alegrias. Mas
quando o cornianos se apaixonarem por terráqueos e forem rejeitados,
em nome dessa tal exclusividade de vocês, talvez passemos a ter
problemas, problemas que antes jamais enfrentamos. Nós nunca
conseguiremos entender porque alguém poderia se recusar a viver o
amor, que é uma das melhores coisas da vida. Por enquanto, estamos
todos ainda deslumbrados e apaixonados por essas máquinas mágicas de
vocês, pela luz em nossas casas em plena noite, pelas naves que
cruzam os céus e a terra, pelas roupas, pelos brinquedos...Mas
quando tudo isso se incorporar a nossa rotina, quando crescerem as
nossas crianças, já acostumadas a tudo isso, quererão os terráqueos
nos impor a sua angústia dos amores limitados? Esse, penso eu, é o
caminho mais rápido para a tristeza do corpo e da alma. Se a
Almirante amasse Tutôr, terráqueos e cornianos poderiam celebrar o
amor, também, entre seus povos. Seria muito bom para o futuro. - Alguém já me disse isso, Marla. - Foi o sacerdote Arvos, não foi? - Sim. Foi ele, há mais de um ano. - Um ano é tempo demais para carregar a dor de um amor não
realizado. - Marla, eu vou pensar, prometo. De fato acho que essa conquista de vocês, do amor livre, da ausência do sentimento de posse, de posse de qualquer coisa, poderia ser uma grande contribuição à sociedade da Terra.
Mas como você quer que eu, apenas uma mulher, lute contra
milênios de crença cultural? Toda a história da terra é baseada na
luta pela posse. Posse de coisas, territórios e de pessoas. Como
romper isso, Marla? Toda a nossa sociedade foi construída em cima
disso, tudo o que você hoje chama de sonho, de revelação, nasceu
também disso, da posse. - Você tem poder, muito mais poder do que Tutôr. O que fizer será
imitado, ainda que contestado. Una-se a Tutôr. Assuma seu amor por
ele e mostre aos terráqueos que esse amor só faz bem, para você,
para ele, para mim e para nosso povo. De que me serve um homem
triste? De que serve, para seu povo, um líder triste? A alegria dele
só será completa se ele tiver você. Agora Réa contempla a noite que lentamente cai sobre Cornos e pensa
que jamais cogitara que o seu amor também pudesse ser uma questão de
estado. Certamente a Terra estava realizando uma grande obra em
Cornos. Poderia Cornos realizar uma grande obra no coração dos
terráqueos? |