Agora teremos que dar a eles também preciosas horas dos nossos dias? Quem me
garante que eu vou gostar disso que eles chamam de trabalho? Por mim, estou
muito bem como estou. Gosto de ir às escolas deles, aprendo coisas, gosto de
assistir filmes holográficos e de usufruir todo o conforto que hoje têm as
nossas casas. Não está me faltando nada. O que eu acho é que eles agora querem
se aproveitar de nós. Como eu já disse, não bastam as riquezas que eles estão
tirando do planeta? Por que teríamos que dar-lhes também o nosso trabalho?
- Os terráqueos não precisam do nosso trabalho – explicou pacientemente Tutôr –
Nós, como força produtiva, fazemos pouca ou nenhuma diferença para eles. Veja
bem: ao todo, contando as crianças, somos mil e poucos seres humanos. Na terra,
eles tem isso trabalhando num edifício médio e existem centenas de milhares de
edifícios. Existem onze bilhões de pessoas na Terra, que é um número acima da
imaginação de muitos de nós. Nosso trabalho será um bem para nós mesmos, para
que não nos tornemos um povo sem sentido, sem razão para lutar. O que será de
nossas crianças, num futuro próximo, crescidas numa aldeia em que não é preciso
fazer absolutamente nada para ter garantidos a sobrevivência, o conforto e até o
luxo? Nós não deixaremos de usufruir os impostos que a Terra paga às aldeias
pela exploração de nossos recursos naturais. Apenas teremos uma vida produtiva e
cada corniano, como acontece com os terráqueos, será pago numa medida
equivalente ao que ele produzir. Com essa paga poderá adquirir todo o necessário
para a sua vida, tudo o que hoje adquirimos com os nossos vale-escola.- E mais ainda – explicou Iala –
Deveremos pagar também pelos serviços que a aldeia nos presta: a luz que
ilumina nossas casas, a energia que faz funcionar as máquinas, a água
pura e livre de doenças que sai das nossas torneiras, os transportes que
nos levam rapidamente aonde queiramos ir, os serviços de saúde que nos
livraram de tantos sofrimentos... Todos esses são chamados serviços
públicos e são administrados hoje pela Frota. Depois, nós mesmos
elegeremos pessoas que serão responsáveis por arrecadar esses valores –
que fazem as coisas funcionarem - e também por administrar todos esses
serviços. Nós mesmos faremos tudo e os terráqueos, aos poucos, se
afastarão das nossas aldeias. Seremos donos de nossos próprios narizes.
Seremos adultos e não essas criancinhas tuteladas que somos agora, deu
pra entender?
- E as escolas? – perguntou um conselheiro – Quem será responsável pelas
escolas?
- Os adultos que quiserem continuar estudando e aprofundando seus
conhecimentos poderão ser os mestres daqui a alguns anos – explicou
Arvos - Ainda não sabemos nada, embora para muitos de nós esse nada já
pareça uma infinidade de coisas. Na educação ainda dependeremos dos
terráqueos por alguns bons anos. Ainda há muito que aprender. Mas as
nossas crianças, que já crescerão estudando, terão grande chance de
adquirir o mesmo nível de conhecimento dos terráqueos cultos. Eu insisto
em lembrar a todos que a Terra não precisa de nós. Já disse e vou
repetir: eles, com o poder que têm, seriam perfeitamente capazes de
explorar o nosso planeta sem que sequer desconfiássemos disso. Poderiam
eles ter nos mantido como estávamos e descer em nossos outros
continentes, fazendo o que bem entendessem com o nosso mundo. Poderiam
até ter nos matado, nos exterminado. No entanto, nos deram todas essas
coisas maravilhosas: a saúde, o conhecimento, o bem estar e as máquinas.
- E agora querem nos dar a independência! – exclamou Tutôr.
- Como independência? Vamos ser escravos desses relógios, teremos que
dar seis horas do nosso dia para o trabalho? Que espécie de
independência é essa? – exclamou outro conselheiro.
- Veja bem – respondeu Tutôr – Nós, hoje, somos totalmente dependentes
dos terráqueos. São eles que nos ensinam, são eles que fazem funcionar
todas as coisas em nossas aldeias. Se, por absurdo, eles nos
abandonassem, de nada serviriam as nossas casas, nossos computadores não
funcionariam e nem mesmo a luz acenderia porque nós não saberíamos fazer
nada com os objetos deles. Nós vamos, aos poucos, aprender a fazer
funcionar tudo, através do nosso trabalho. Cada um poderá escolher uma
atividade, de acordo com as suas aptidões e seu gosto. É claro que vai
demorar um pouco. Tentaremos isso e aquilo até encontrar o nosso
trabalho ideal. Mas, todos juntos, faremos tudo funcionar e, como já foi
dito aqui, um dia, não precisaremos mais dos terráqueos para nada.
Seremos responsáveis, novamente, pelos destinos das nossas aldeias e
pelo nosso próprio destino como povo. Isso é independência. Antes,
também tínhamos que trabalhar e vocês hão de convir que trabalhávamos o
dia todo para ter uma vida muito inferior a que temos hoje.
- Dependíamos – disse uma conselheira – da vontade dos deuses. Hoje
sabemos que os deuses não existem e eu mesma já aprendi na escola que
uma boa colheita depende das condições de plantio, do alimento que se dá
às plantas e dos remédios que combatem as doenças da plantação e não dos
deuses. Hoje já sei que a nossa saúde ou doença não é um capricho dos
deuses mas depende do que comemos ou desses bichinhos invisíveis que
estão no ar e, ainda, de outros fatores, além das nossas próprias
emoções. Hoje dependemos da bondade dos terráqueos. Portanto, acho uma
boa idéia que, um dia, possamos usufruir tudo isso que eles nos
trouxeram dependendo apenas de nosso trabalho. Acho que Tutôr tem razão.
É o trabalho que nos tornará independentes.
- Mas ainda dependeremos de Deus para nascer e morrer – acrescentou
Arvos.
- É verdade – disse uma conselheira. – Nem os terráqueos podem explicar
porque se morre um dia e porque ninguém passa dos 144 anos deles e muito
menos o que acontece depois da morte.
- São os mistérios de Deus – disse Arvos. – Por isso não devemos também
nos afastar da religião, do culto ao Deus.
- Mas que Deus será esse? – desafiou o mais velho conselheiro – Na
escola aprendemos que os nossos deuses não passavam de fenômenos
naturais e aprendemos ainda que, entre os terráqueos, também existem
vários deuses e embora muitos digam que, no fundo, Deus é um só, eles,
lá na terra, também não se entendem sobre isso.
- Estávamos realmente enganados quanto à natureza dos nossos deuses –
disse Arvos – mas não estávamos enganados quando acreditamos que tudo o
que existe no mundo, a terra, o céu, a água, os animais, as plantas, nós
mesmos e até os terráqueos e as estrelas, foram criados por Deus e só
Ele pode nos dar a vida e a morte.
- Bom, estamos nos desviando do assunto principal desse encontro –
interrompeu Tutôr. – A proposta da Frota é começar a treinar, nas
escolas, os cidadãos de Cornos para que possamos, aos poucos, ir
assumindo posições produtivas e nos tornemos, por fim, responsáveis
pelas nossas próprias aldeias. Mais alguém quer fazer alguma observação
antes de votarmos?
Todos votaram pela adoção do trabalho. Foi a primeira votação unânime na
história dos conselhos da aldeia.
Tutôr ficou radiante de alegria e não via a hora de poder contar a Réa
que seu povo queria sim aprender a ser independente.
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capítulo 14
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