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O Poder e as Estrelas

livro de Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

 

Capítulo 18. Traições

 Edward Munch, 1924, céu estrelado

 

A segunda reportagem da TV Vitória, sobre os continentes colonizados e explorados pelos terráqueos em Cornos não foi tão sensacional quanto a primeira, sobre os próprios cornianos. Mas, nesta, a Almirante Réa recebeu uma atenção maior, por suas declarações sobre as regras importas para a extração de matérias primas e sobre os altos impostos que o resto do planeta pagava à Área Neutra.

 

Muitos na terra, liderados pelo General Apolo, tinham sérias dúvidas sobre essas cifras, que consideravam absurdamente altas e Réa era acusada de estar favorecendo descaradamente a Área que governava, principalmente, diziam, depois de seu envolvimento com o chefe Tutôr.
 

O documentário, esse de apenas uma hora e meia de duração, mostrava a riqueza também dos colonos, muitíssimo bem instalados em agrupamentos humanos com todo o conforto e condições técnicas para realizar suas atividades extrativas ou de plantio. Em apenas dois anos e meio a Terra tinha conseguido transformar o solo de Cornos e já possuía até organizações ecológicas não-governamentais que tinham se instalado no planeta para medir as conseqüências, para o eco-sistema, de toda aquela súbita mudança. A cada dia novos grupos de humanos se instalavam lá, em busca de uma rápida prosperidade. E isso realmente estava ocorrendo.

 

A rede de TV concorrente, a TV Mulher, resolveu, diante do sucesso de sua oponente, fazer também uma grande e sinistra reportagem com os ecologistas instalados em Cornos, prevendo trágicas modificações no clima e em todo o sistema do planeta. Mas ninguém prestou muita atenção a isso, o que deixou Marisa Tourinho, que agora é editora da Rede, em fúria.
 

Réa estava se preparando para deixar o Gabinete quando a Major Mel entrou para repassarem a agenda do dia seguinte. E, entre outras coisas, comentou:
 

- Marisa, a editora da Rede de TV Mulher, ligou para mim esta tarde. Ela quer uma exclusiva com você para discutir os movimentos de oposição ao seu desempenho que existem no Congresso da Terra.
 

- Não estou muito a fim de dar prestígio a essa repórter.

 

- Ela disse que a matéria poderia ajudá-la a enfrentar as críticas e insinuou que você está ficando numa posição mais frágil agora que se vai instalar a moeda na Área Neutra e insinuou que já há rumores sobre uma possível transferência sua, de volta à Terra.
 

- Essa mulher inventa qualquer coisa para atingir seus objetivos.

 

- Não acredita, então, nessa possibilidade? – perguntou Mel com uma ruga de preocupação na testa – Acho que você poderia considerar que a oposição talvez seja mais forte do que você imagina.
 

- O que é que você sabe, Mel, que eu não sei?
 

- De concreto, nada. Mas se você não fosse tão inflexível, se aceitasse ceder um pouco... Veja, esse povo já tem a melhor qualidade de vida possível, você sabe tão bem quanto eu que está sobrando dinheiro na Área Neutra e os impostos da colonização são mais altos do que qualquer taxa praticada em nosso planeta. Não vai poder ser assim para sempre.


- Acha, então, que estou errada? Pelo que eu saiba, também há muito dinheiro nos continentes que estão sendo colonizados e as bolsas da terra só mostram índices favoráveis aos investimentos feitos em Cornos. Por que deveria eu trair o povo nativo, apenas para agradar aos instintos gananciosos e devoradores dos meus conterrâneos?
 

- Ora, Almirante, me perdoe a liberdade, mas eu não veria uma pequena redução nas taxas pagas aos nativos como uma traição. Afinal, os benefícios que trouxemos a eles foram imensos. E eles já têm uma qualidade de vida superior a de muitos povos na própria Terra. Sua moeda terá um alto valor, ainda que as taxas caiam um pouco.
 

- Você não concorda comigo, realmente, Major Mel.
 

- Permissão para falar francamente.
 

- Permissão concedida.
 

- Acho que a Almirante não está sendo diplomática, nem mesmo política. Penso que a paixão que este planeta despertou em seus sentimentos a está impedindo de ver com clareza o delicado equilíbrio que é preciso manter aqui entre nós e a Terra. Penso que deveria negociar com os congressistas e penso ainda que o alto escalão da Frota feria com bons olhos essa negociação.
 

- Você acredita que o meu caso com Tutôr esteja me cegando?
 

- Não. O chefe Tutôr pode ser detentor do símbolo de seu amor por esse povo. Durante todo esse tempo em que convivemos com a sinceridade e singeleza dos cornianos todos nós estivemos sendo influenciados por isso e aqui está uma coisa que a Terra, tão distante da nossa realidade, aqui, dificilmente compreenderá. É o momento de ceder, ao menos um pouco, Almirante.
 

- Ainda falando francamente major, seus conselhos sempre têm sido de utilidade para mim e eu prometo pensar com cuidado no que está me dizendo.
 

- E quanto à entrevista? Nesse momento também seria de utilidade.
 

- Depois da minha decisão, voltaremos a falar com essa repórter.
 

- Está certo, Almirante.
 

- Dispensada, Major.
 

- Boa noite, Almirante.
 

Não foi no entanto uma noite exatamente boa para Réa.
Quando entrou em casa, lá estava o Major Narciso que mudara seus planos e aparecera sem avisar. Réa alegrou-se por vê-lo:
 

- Meu amor! Que surpresa!
 

- Ainda sou mesmo o seu amor? – perguntou ele, enquanto a abraçava.
 

- Claro. Sempre será.
 

- Você parece preocupada.
 

- E estou mesmo. Todos parecem acreditar que eu deva aceitar um corte nas taxas que a colonização tem pago à área neutra.
 

- E você, o que acha?
 

- Acho que estamos tirando riquezas sem fim desse planeta que, de fato, pertence aos nativos. Eles têm que ser bem pagos por isso. Além disso, não sei porque se importam tanto comigo. Eu não tenho poder para desobedecer a uma decisão do Congresso. Se querem tanto assim reduzir os impostos que o façam! Não precisam da minha anuência.
 

- Mas também não precisam comprar uma briga com a toda poderosa almirante em comando da colonização.
 

- Terei eu sentido uma certa ironia em suas palavras?
 

- Seria tudo mais fácil se você os ouvisse e abrisse um diálogo nesse sentido.
 

- Até tu, Brutus! – exclamou Réa, afastando-se dele.
 

- Tenho ouvido muitas coisas sobre isso. A Terra não vai permitir que um bando de nativos acumule tanto dinheiro e, conseqüentemente, tanto poder. É mais fácil entregar a liderança do planeta a alguém mais disposto a dialogar.
 

- Narciso!
 

- É verdade, Réa. A imagem que você criou não é exatamente de uma líder terráquea numa colônia, mas de alguém da própria colônia com todo o poder do almirantado da Frota Estelar. Nossos conterrâneos sentem-se traídos. Você parece mais preocupada com a riqueza de mil cornianos do que com a economia da Terra. E, para ser sincero, eu concordo com os seus críticos. Em tudo tem que haver equilíbrio. A Terra deu milênios de conhecimento a eles. Sem nós, continuariam morrendo e cresceriam muito devagar. Se houvesse uma maneira de calcular a renda per capita dos cornianos – e em breve, haverá- ela seria cem vezes, no mínimo, a dos suíços. Você está cometendo o erro de governar para mil pessoas, esquecendo-se de que, aqui, a sua missão é integrar essas mil pessoas ao governo maior que é o da Terra.
 

- Narciso!
 

- É verdade, Réa. Eu posso ser apenas major e você a almirante mas eu estou certo e a nossa convivência pessoal me permite lhe dizer isso, como seu amigo
que sou.
 

- Vou ter que ceder, então?
 

- Vai ter que dialogar e rever sua posição.
 

- Vamos jantar. Quero ir dormir cedo, estou cansada e confusa e preciso pensar em tudo isso.
 

- Não, minha querida, só passei para lhe dar um beijo. Tenho um compromisso no clube dos oficiais, na aldeia.
 

- Você nunca mais dormiu comigo.
 

- Réa, nós agora somos amigos. Eu ainda amo você, mas você preferiu Tutôr.
 

- Por que não posso ter os dois?
 

- Porque somos terráqueos e não cornianos. Se bem que quanto a você, minha cara, talvez seja mais corniana hoje do que terráquea, não é verdade?
 

Deu-lhe um beijo e se foi.
 

Réa ficou sozinha com suas dúvidas. Meteu-se na cama, esquecendo-se do jantar, ligou o computador do quarto, mas nada, nem notícias, nem filmes, nem documentários, pareciam prender-lhe atenção.
Levantou-se e foi à varanda olhar as estrelas. Sentia-se, de repente, solitária e culpada. Deveria discutir com Tutôr, Arvos e Iala, a questão da redução de seus impostos? Como eles reagiriam? Réa acreditava que todo o dinheiro do mundo ainda seria pouco para pagar aos cornianos pela expropriação de todo o planeta que um dia, ainda que milênios depois, seria naturalmente deles e não desse povo invasor. O diabo é que “esse povo invasor” era o seu próprio povo que agora a estava julgando como uma traidora, uma vira-casaca, que se postara ao lado de mil nativos, quando deveria defender os interesses de sua própria gente. Estava traindo a terra, que lhe dera tudo, que fizera dela a maior autoridade naquela colônia? Estava traindo ao seu querido amor, de tantos anos, que preferia hoje um compromisso no clube dos oficiais a uma noite de amor com ela?
Sim, estava errada. Seu dever para com a Terra e para com a Frota era promover um ajuste, um maior equilíbrio naquela dinheirama da Área Neutra. Seu dever para com o seu amor era reconquistá-lo e esquecer essa aventura com o chefe nativo.
 

Seu coração, porém, parecia dizer o contrário.
 

As estrelas eram outras no céu de Cornos, mas, de repente, Réa viu o firmamento da Terra e pareceu-lhe estar ouvindo a prece de sua mãe, quase cinquenta anos antes, quando de seu próprio nascimento: “...te consagro agora, perante as estrelas e a imensidão do Universo, minha filha. Que ela sirva aos Teus propósitos e que seja a vida dela dedicada aos Teus Mistérios.”
 

Talvez fosse o tempo de voltar para as estrelas – pensou Réa.
 

Mas seus pés tinham criado raízes e se fincado àquele solo.

Próximo Capítulo

 

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