terra, mesmo os
masculinos. Vendo ali uma oportunidade de furo, tratou de instalar-se em
Cornos, na aldeia, e começou a sondar. Em quatro horas, sabia de toda a
história e pediu uma entrevista com a Almirante. Foi prontamente
atendida:
- Então a Almirante está vivendo um caso de amor com o líder político
das aldeias de Cornos?
- Estou – foi a pronta e surpreendente resposta de Réa.
- Mas a senhora não tinha um compromisso formal, de muitos anos, com o
Major Narciso?
- Ainda tenho.
- Como assim?
- O Major Narciso não é uma criança. Estamos juntos há 22 anos e ele
sabe que a nossa relação não será abalada apenas porque eu estou vivendo
um novo amor.
- O chefe Tutôr também tem uma companheira, não tem?
- Sim, ele vive com Marla há muitos anos e tem filhos com ela.
- E tanto o Major quanto Marla aceitam passivamente que a senhora tenha
um caso de amor com o chefe Tutôr?
- Aqui em Cornos não existe o amor possessivo que existe na Terra. Aqui
todos são livres para amar. Simplesmente ignoram os sentimentos
passionais que movem os amores terráqueos. Não existe ciúme, não existe
posse. Uma pessoa que ama a outra fica feliz com a felicidade dela e, se
essa felicidade também acontece através de um outro amor, está tudo mais
que bem. Penso que os cornianos sejam muito mais felizes e sadios do que
os terráqueos em matéria de amor. E, particularmente, fico satisfeita em
estar dando essa entrevista para um veículo tão importante e líder de
audiência como a sua Rede TV Mulher. Gostaria que nós, terráqueos,
pudéssemos aprender com o cornianos esse amor generoso. Nós que
ensinamos tanto a eles, teríamos, em contrapartida, a aprender com eles
como conseguir relações mais sadias entre os amantes hetero ou
homossexuais da terra.
- Isso tudo inclui, portanto, o sexo grupal?
- Eventualmente. Em Cornos ninguém faz amor contra a sua própria
vontade, como acontece na Terra em relações pervertidas em que uma das
partes é forçada, como nos estupros ou na pedofilia. A sociedade
corniana não apresenta esse tipo de distorção comportamental.
Na manhã seguinte, a Rede entrou no ar com a picante chamada:
- A partir das 20h00, você poderá acessar o emocionante depoimento da
Almirante Réa, autoridade máxima em Cornos, que admite fazer sexo grupal
com cornianos e está vivendo um picante caso sexual com o Chefe político
do planeta!
A Rede de TV bateu todos os seus recordes de audiência. Entremeando as
imagens da entrevista de Réa, outras cenas mostravam olhares e gestos
carinhosos entre a Almirante e o Chefe Tutôr, em várias ocasiões, além
de uma tórrida cena de amor filmada pela janela da casa de Réa, sabe-se
lá quando. Havia ainda uma cena em que o Major Narciso aparecia
claramente mal humorado em uma de suas recentes viagens à Cornos. Parece
que Marisa Tourinho e sua equipe estavam já há algum tempo de tocaia em
volta de Réa.
- “Embora a Almirante Réa afirme – era o comentário final da repórter –
que assumiu a postura dos cornianos em relação ao amor livre parece,
pelo que mostram as nossas imagens exclusivas, que o seu antigo
companheiro, Major Narciso, não compartilha com tranquilidade dessa
mesma postura. A almirante, maior autoridade na colonização de Cornos,
parece não se importar com milênios de moral de seu planeta e assume
publicamente uma atitude que, embora pareça ser natural para pouco mais
de mil cornianos, que até um dia desses viviam na Idade da Pedra, pode
ferir os sentimentos e os princípios de muitos de seus conterrâneos.
Talvez não seja suficiente para a nossa líder a fama conseguida com o
fato de ser a primeira mulher a assumir tão alto posto na Frota
Espacial.”
A reportagem ouviu ainda o Ministro das Relações Espaciais Exteriores
que foi irreverente como de costume:
- Réa está fazendo um ótimo trabalho em Cornos. Por que se importar que
a menina se divirta? A vida sexual é uma coisa de foro íntimo,
individual e não devemos perder tempo com isso.
Mas a mesma descontração e brincadeira não foi sentida nas lideranças
religiosas do planeta, que logo viram aí uma oportunidade para citar
trechos bíblicos, inclusive o Gênesis, que supostamente condenam a
relação sexual fora da benção sagrada do casamento. Choveram protestos
na imprensa e o principal argumento dos que reclamavam era o fato da
sociedade corniana ter sido encontrada ainda no equivalente à infância
da humanidade e, portanto, com a moral não devidamente desenvolvida. Os
desdobramentos foram inúmeros. E Réa se viu cercada de pedidos de
entrevistas e de depoimentos. O que mais a irritou foi ouvir o argumento
de que ela, que estava em Cornos para colonizar e civilizar aquele
planeta, tinha sido envolvida pela mentalidade primitiva de um povo
primitivo que ainda não tinha vivido história suficiente para
desenvolver conceitos de moral e bons costumes e que, portanto, ela se
tinha deixado levar pelos mais baixos instintos do ser humano.
A coisa estava pegando fogo quando ela recebeu, em seu escritório, a
comunicação de Mestre Arvos. A carinha simpática do líder religioso de
Cornos, estampada na sua tela, a animou:
- A Almirante está levando, como dizem os terráqueos, chumbo grosso?
- O pior, Mestre Arvos, é estarem dizendo que esse amor generoso de seu
povo é apenas primitivismo.
- Preocupa-me, Almirante, que a imprensa do seu planeta não tenha dado
a devida importância a Tutôr. Ninguém o procurou para ouvir a sua
opinião.
- Pois é, Mestre. Faz parte da arrogância da Terra. Ninguém vai querer
saber o que ele pensa, já que ele é o primitivo, o selvagem. Um homem
que acreditava que a noite era um manto, estendido pelos deuses, e cheio
de furinhos, não tem muita credibilidade no meu planeta.
- Não contávamos com esse argumento do primitivismo, não é verdade,
Almirante?
- Sim. Nem ponderamos essa possibilidade. Mas agora está aí, é um fato
e ainda não sei como lutar contra isso. Acredito que a erudição, o
conhecimento, não sejam ferramentas para se atingir a relação ideal
entre seres humanos. Os instintos, a intuição, também são importantes, o
que os cornianos têm de sobra.
- Eu estava pensando, Almirante. Talvez se a sua assessoria de
comunicação divulgasse alguns dos pontos importantes, e que a Terra
consideraria produtivos, da personalidade dos cornianos...
- Por exemplo?
- A ausência de luta pelo poder e também da competição que nossos
nativos têm demonstrado em sua recente aquisição de conhecimentos
profissionais, a pouca importância que damos aos sentimentos de posse...
Tudo isso poderia explicar melhor a nossa generosidade no amor,
colocando-a como alguma coisa mais elaborada do que o simples
primitivismo que nos tem sido atribuído.
- Vou colocar isso para os meus assessores, Mestre. E vejamos o que
eles podem fazer.
- Confio em você, Réa. Seria bom também se conseguissem algumas
entrevistas para Tutôr.
- Já tenho trabalhado nisso, Mestre Arvos. Eu o manterei informado.
- Obrigado, Almirante.
- Tenha uma boa tarde, Mestre.
Marisa Tourinho, a repórter da Rede de TV Mulher, iniciou uma minuciosa
investigação sobre os hábitos dos cornianos, sempre partindo da tese de
que aquele era de fato um povo primitivo. Colocou seus informantes para
colher todo o tipo de evento ocorrido que pudesse corroborar a sua tese.
Assim, ficou sabendo que muitos cornianos haviam dormido com suas roupas
terráqueas e que haviam usado máquinas de limpeza para tentar limpar os
corpos de suas crianças e que haviam cortado as telas de seus
computadores para conseguir ver o que estava além dos limites das
próprias telas, no ângulo de visão. Descobriu que muitos cornianos
tentaram, em vão é claro, interagir com os filmes holográficos, fazendo
perguntas ou comentários ou tentando interferir no rumo da história.
Como não tinha imagens desses acontecimentos, produziu simulações com
atores e o resultado foi uma seqüência de cenas ridículas que arrancaram
gargalhadas homéricas dos terráqueos e mostravam os cornianos como um
povo estúpido. Para não faltar com a verdade, ou pelo menos a repórter
pensava assim, no final da matéria veio o comentário: “Por esses
acontecimentos pode-se perceber o quanto a população de Cornos estava
despreparada para usufruir as nossas conquistas. É verdade que, dois
anos depois de iniciada a colonização do planeta e graças aos redobrados
esforços dos preceptores terráqueos, a maioria dos cornianos já se
acostumou aos confortos da nossa civilização. No entanto fica no ar uma
pergunta: deveríamos nós acreditar que, de tal população ingênua e
primitiva, poderiam vir exemplos de conduta social ou moral que viessem
somar alguma coisa ao atual estágio de evolução da Terra?”
Réa ficou uma fera. Aquilo era com ela e com a cruzada que promovia
para tentar fazer com que os terráqueos compreendessem o que os
cornianos tinham de melhor: sua extrema generosidade, sua ausência de
luta pelo poder, o compartilhamento das posses e das funções, com cada
um simplesmente contribuindo para o funcionamento da máquina social e a
maravilhosa liberdade para amar, crescer, trabalhar, prosperar. E já não
lhe bastassem as ferinas declarações do general Apolo, agora vinha
também essa jornalista a trabalhar na contramão de seus anseios.
Irritada, sentou-se diante da sua tela e redigiu ela própria um
comunicado à imprensa:
“É inaceitável às autoridades, aos colonizadores e ao povo da Colônia
do Planeta Cornos que certos setores da Imprensa venham a público com
tentativas baixas de reduzir os nativos cornianos a pouco mais do que
seres idiotizados. Nós, que moramos aqui na Área Restrita, e temos o
enorme privilégio de conviver com este povo sabemos o quanto eles nos
têm ensinado em matéria de relacionamento humano. Os nativos de Cornos
não possuem, como nós terráqueos, o individualismo pouco generoso que
caracteriza a maioria das nossas sociedades. Não tendo sentimento de
posse, alcançaram uma organização social onde cada um trabalha pelo bem
de todos, pensando que também cada um será beneficiário das conquistas
coletivas. Para um povo que mal elaborara uma escrita, o nível de
conhecimento adquirido nesses dois anos é surpreendente. Na verdade,
Cornos realiza o que na Terra sempre foi utopia: o compartilhamento das
riquezas, o ideal comunitário, a ausência de luta pelo poder e a
liberdade no amor. Ao menos nesses itens são eles, os cornianos, que têm
sim muito a ensinar a nós, terráqueos, com a extrema generosidade deles,
quase sempre ausente das nossas relações sociais.
A prepotência dos que tentam denegrir publicamente a imagem da
sociedade corniana deve ser resultado de um profundo sentimento de
frustração por identificar num grupo humano a realização pura e simples
do que, na nossa História, sempre classificamos como utopia, ideais
sonhadores e sem possibilidade de concretização. A sociedade corniana, a
despeito de seu atraso técnico em relação à terráquea, alcançou um grau
de civilidade que nós nunca conseguimos na longa trajetória dos humanos
sobre a Terra. Ou, talvez, num passado distante, tenhamos perdido, ao
comer os saborosos e envenenados frutos das árvores do conhecimento.
Almirante Réa, Comandante da Missão Colonizadora da Área Neutra de
Cornos.
Alto Escalão da Frota Espacial.”
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