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O Poder e as Estrelas livro de Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano |
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Capítulo 15. Primitivo |
Anselm Feuerbach, O Julgamento de Páris |
Eram alunos dedicados, atentos, aplicados. E pouco se importavam se a profissão que |
aprendiam ia levá-los aos escritórios de chefia ou às linhas de produção.A ausência de ânsia pelo poder, que havia nos cornianos, sempre desconcertava os instrutores terráqueos. Para a Terra, acostumada a lutar com unhas e dentes por qualquer espécie de poder, a singeleza e a honestidade daquele povo eram realmente surpreendentes.
Marisa Tourinho era repórter de uma importante rede feminista de
TV, acessada pela maioria dos computadores da terra, mesmo os
masculinos. Vendo ali uma oportunidade de furo, tratou de instalar-se em
Cornos, na aldeia, e começou a sondar. Em quatro horas, sabia de toda a
história e pediu uma entrevista com a Almirante. Foi prontamente
atendida:
- Estou – foi a pronta e surpreendente resposta de Réa.
- Mas a senhora não tinha um compromisso formal, de muitos anos, com o
Major Narciso?
- Ainda tenho.
- Como assim?
- O Major Narciso não é uma criança. Estamos juntos há 22 anos e ele
sabe que a nossa relação não será abalada apenas porque eu estou vivendo
um novo amor.
- O chefe Tutôr também tem uma companheira, não tem?
- Sim, ele vive com Marla há muitos anos e tem filhos com ela.
- E tanto o Major quanto Marla aceitam passivamente que a senhora tenha
um caso de amor com o chefe Tutôr?
- Aqui em Cornos não existe o amor possessivo que existe na Terra. Aqui
todos são livres para amar. Simplesmente ignoram os sentimentos
passionais que movem os amores terráqueos. Não existe ciúme, não existe
posse. Uma pessoa que ama a outra fica feliz com a felicidade dela e, se
essa felicidade também acontece através de um outro amor, está tudo mais
que bem. Penso que os cornianos sejam muito mais felizes e sadios do que
os terráqueos em matéria de amor. E, particularmente, fico satisfeita em
estar dando essa entrevista para um veículo tão importante e líder de
audiência como a sua Rede TV Mulher. Gostaria que nós, terráqueos,
pudéssemos aprender com o cornianos esse amor generoso. Nós que
ensinamos tanto a eles, teríamos, em contrapartida, a aprender com eles
como conseguir relações mais sadias entre os amantes hetero ou
homossexuais da terra.
- Isso tudo inclui, portanto, o sexo grupal?
- Eventualmente. Em Cornos ninguém faz amor contra a sua própria
vontade, como acontece na Terra em relações pervertidas em que uma das
partes é forçada, como nos estupros ou na pedofilia. A sociedade corniana não apresenta esse tipo de distorção comportamental.
Na manhã seguinte, a Rede entrou no ar com a picante chamada:
- “Embora a Almirante Réa afirme – era o comentário final da repórter –
que assumiu a postura dos cornianos em relação ao amor livre parece,
pelo que mostram as nossas imagens exclusivas, que o seu antigo
companheiro, Major Narciso, não compartilha com tranquilidade dessa
mesma postura. A almirante, maior autoridade na colonização de Cornos,
parece não se importar com milênios de moral de seu planeta e assume
publicamente uma atitude que, embora pareça ser natural para pouco mais
de mil cornianos, que até um dia desses viviam na Idade da Pedra, pode
ferir os sentimentos e os princípios de muitos de seus conterrâneos.
Talvez não seja suficiente para a nossa líder a fama conseguida com o
fato de ser a primeira mulher a assumir tão alto posto na Frota
Espacial.”
A reportagem ouviu ainda o Ministro das Relações Espaciais Exteriores
que foi irreverente como de costume:
Mas a mesma descontração e brincadeira não foi sentida nas lideranças
religiosas do planeta, que logo viram aí uma oportunidade para citar
trechos bíblicos, inclusive o Gênesis, que supostamente condenam a
relação sexual fora da benção sagrada do casamento. Choveram protestos
na imprensa e o principal argumento dos que reclamavam era o fato da
sociedade corniana ter sido encontrada ainda no equivalente à infância
da humanidade e, portanto, com a moral não devidamente desenvolvida. Os
desdobramentos foram inúmeros. E Réa se viu cercada de pedidos de
entrevistas e de depoimentos. O que mais a irritou foi ouvir o argumento
de que ela, que estava em Cornos para colonizar e civilizar aquele
planeta, tinha sido envolvida pela mentalidade primitiva de um povo
primitivo que ainda não tinha vivido história suficiente para
desenvolver conceitos de moral e bons costumes e que, portanto, ela se
tinha deixado levar pelos mais baixos instintos do ser humano.
A coisa estava pegando fogo quando ela recebeu, em seu escritório, a
comunicação de Mestre Arvos. A carinha simpática do líder religioso de
Cornos, estampada na sua tela, a animou:
- O pior, Mestre Arvos, é estarem dizendo que esse amor generoso de seu
povo é apenas primitivismo.
- Preocupa-me, Almirante, que a imprensa do seu planeta não tenha dado
a devida importância a Tutôr. Ninguém o procurou para ouvir a sua
opinião.
- Pois é, Mestre. Faz parte da arrogância da Terra. Ninguém vai querer
saber o que ele pensa, já que ele é o primitivo, o selvagem. Um homem
que acreditava que a noite era um manto, estendido pelos deuses, e cheio
de furinhos, não tem muita credibilidade no meu planeta.
- Não contávamos com esse argumento do primitivismo, não é verdade,
Almirante?
- Sim. Nem ponderamos essa possibilidade. Mas agora está aí, é um fato
e ainda não sei como lutar contra isso. Acredito que a erudição, o
conhecimento, não sejam ferramentas para se atingir a relação ideal
entre seres humanos. Os instintos, a intuição, também são importantes, o
que os cornianos têm de sobra.
- Eu estava pensando, Almirante. Talvez se a sua assessoria de
comunicação divulgasse alguns dos pontos importantes, e que a Terra
consideraria produtivos, da personalidade dos cornianos...
- Por exemplo?
- A ausência de luta pelo poder e também da competição que nossos
nativos têm demonstrado em sua recente aquisição de conhecimentos
profissionais, a pouca importância que damos aos sentimentos de posse...
Tudo isso poderia explicar melhor a nossa generosidade no amor,
colocando-a como alguma coisa mais elaborada do que o simples
primitivismo que nos tem sido atribuído.
- Vou colocar isso para os meus assessores, Mestre. E vejamos o que
eles podem fazer.
- Confio em você, Réa. Seria bom também se conseguissem algumas
entrevistas para Tutôr.
- Já tenho trabalhado nisso, Mestre Arvos. Eu o manterei informado.
- Obrigado, Almirante.
- Tenha uma boa tarde, Mestre.
Irritada, sentou-se diante da sua tela e redigiu ela própria um
comunicado à imprensa:
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