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Um Pequeno Mundo que se Foi
Momentos, contextos e
circunstâncias criam mundos que, como bolhas de sabão, duram um
breve instante e se vão para sempre. |
A Hansa Borg-Ward e eu, no quintal da casa da Rua Vergueiro, em 1954. E ela, verde garrafa, maravilhosa... a SUV dos anos 1950! |
Memória de Isabel Fomm de Vasconcellos |
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Meu pai, o Velho Vasco, tinha uma perua Borg-Ward, linda, verde,
brilhante. Hoje seria uma SUV. Mas não tinha essa cara de caminhão de
lavanderia que tem as SUV de hoje. Acho que, nos anos 1950, o bom gosto,
mesmo no design automotivo, era bem maior. As chapas dos carros não
tinham letras. Era apenas 2-82-68.
Pouca gente tinha carro na São Paulo dos anos 1950. E eu,
pequenininha assim como era nessa foto, em 1954, já tinha orgulho do
“meu” carro. Sim, ele era meu, explicava meu pai, porque o comprara para
que eu parasse de chorar a cada vez que tinha que sair com ele e com
minha mãe, num antigo Fiat Topolino que fazia barulhos mil, barulhos
suficientes para me assustar até as lágrimas. Naquele tempo São Paulo era uma cidade muito fria. As paredes viviam emboloradas, era muito úmido. Afinal, o padre José de Anchieta fundara a cidade no alto da serra do mar, em 1554, onde havia muita neblina, muita chuva e muita mata. |
Aqui estão os links para outros textos sobre os temas citados (em itálico) nessa página. Para saber + sobre eles, clique nas palavras grifadas:
- um clubinho para adolescentes dos anos 1960
- Filme da construção do nosso barco e cenas da represa e de esqui
- laboratório de cinema do meu pai
- Na TV Paulista trabalhava o meu irmão Alvan
- Alvan
- 60 Natais (página com vídeos)
- Leca
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Ainda não tínhamos conseguido, 400 anos depois, quando meu pai comprou a Hansa Borg-Ward, transformar a cidade na sucursal do deserto do Saara que ela é hoje.
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Em 1954 também os nossos bens de consumo eram diferentes. Eram feitos para durar. Tínhamos, por exemplo, uma geladeira Philips americana (que meu pai comprou quando trabalhava no Consulado dos EUA) que é de 1949 e minha mãe usou até morrer, em 2007.
Por isso a Borg-Ward,
Hansa, como nós a chamávamos, durou quase 10 anos, até meu pai se
apaixonar pelo Dauphine francês *, e assim trocou a Alemanha pela
França, pelo menos em termos de indústria automobilística. Em 1964, quando o Brasil caiu na escuridão da ditadura, nós já não morávamos no velho casarão da Rua Vergueiro, onde nasci, mas sim naquela casa famosa, que virou um clubinho para adolescentes dos anos 1960, na Rua Antônio das Chagas, quase em Santo Amaro.
Em 1959, meu pai
comprou um título do Clube de Campo do Castelo, que acabara de ser
inaugurado pela diretoria do prestigiado Clube Piratininga**. Comprou
porque, em 1937, estivera lá como hóspede e se apaixonara pelo lugar,
então residência do dono da Cervejaria Brahma. Era um clube de campo,
hoje é um clube de periferia. Por causa do clube, construiu, em segredo,
uma lancha no estaleiro Florio, que ficava às margens da barragem da
Represa do Guarapiranga, onde também ficava o Castelo. Um barco
artesanal, feito de ripas de madeira coladas sobre uma forma... Leve
como uma pluma, que atingia a velocidade de 30 milhas por hora com um
motorzinho de popa de 40 cavalos... (Tem o
Filme
pra provar)
Minha mãe era
modista, tinha um pequeno atelier de costura, que funcionava entre a
nossa casa e o laboratório de cinema do meu pai, que era “a
continuação” da casa, com uma entrada independente e lateral. Antes da
explosão do pret-a-porter e das então chamadas boutiques, as
endinheiradas senhoras paulistanas levavam as fazendas (tecidos) para
que a tesoura e o talento da Wanda, minha mãe, as cortasse e
transformasse nos mais lindos trajes da moda, sempre inspirados na
importada e badalada Revista Burda. E dá-lhe seda, chantung, albene...
Naquele tempo não havia
gente feia nas ruas. Todo mundo, mesmo com recursos financeiros
limitados, se vestia bem, procurava falar bem, portar-se bem,
informar-se bem. O rádio era o veículo popular e falava português
corretamente. TV ainda era para poucos. E muitas das atrações da TV eram
criadas a partir de clássicos da literatura mundial. |
Na TV Paulista
trabalhava o meu irmão Alvan. Quinze anos mais velho do que eu,
Alvan foi quem me apresentou à literatura e aos clássicos e me fez virar
esse “rato de biblioteca” (como se chamavam os fanáticos por leitura)
que sou até hoje. Lembro-me dele me dizendo que 1961 era um ano que
levaria não sei quantos para se repetir, porque podia ser lido tanto de
trás para a frente como de cabeça para baixo e continuaria a ser 1961.
Ele adorava essas pegadinhas inteligentes.
Nos fins de semana,
depois das manhãs esquiando na Guarapiranga, meu pai ia para o
Jockey Club (onde dirigia o serviço de filme patrulha, que, um dia, eu
conto o que era) e minha mãe e eu costumávamos ir ao cinema. Se fossemos
ao Astor, na Avenida Paulista, tomaríamos chá (eu preferia os sundaes de
chocolate) no terraço do Fasano e se fossemos ao Olido, o chá seria no
salão chiquíssimo do Mappin.
Eu sabia que era
privilegiada, que tinha acesso ao conforto, à diversão, à cultura e
a muitas coisas que nem todos tinham. Por isso tive uma infância alegre
e generosa, com cada ano (que demorava uma eternidade a passar) coroado
por maravilhosas festas de Natal, onde se armava uma imensa mesa
para a ceia na sala de projeção do laboratório do meu pai e uma enorme
árvore na sala da frente, que amanhecia cheia de presentes. Todos os
meus primos, de São Paulo e de outras cidades, estavam lá, era uma
grande folia.
Porque cresci num
ambiente intelectualizado, onde, nos almoços do dia a dia, os adultos
que frequentavam o laboratório de cinema – desde produtores, atores,
câmeras até figuras da intelectualidade paulistana como Joaquim Eugênio
de Lima Neto, Cláudio e Sergio Martins Marques e outros – compartilhavam
a excelente comida feita pela Leca e as excelentes discussões
sobre política, arte, cultura, que rolavam diante da única criança
presente naquele ambiente: eu.
Esse mundo dos anos 1950,
na provinciana cidade de São Paulo, SP, Brasil, já se findou. Assim como
todas as pessoas citadas nominalmente nesse texto já se foram para o
outro lado da vida. Momentos, contextos e circunstâncias criam mundos
que, como bolhas de sabão, duram um breve instante e se vão para
sempre.
É uma grande ilusão humana
acreditar que o mundo é um, o planeta é um, a realidade é uma. Somos um
grande arquipélago de mundos díspares sobre a terra. Em Goa ou em Paris,
na Idade Média ou na era digital, nos iates ou nas favelas, cada ser
humano vive sua aventura. Não uma única aventura, mas várias, em vários
tempos, alguns alegres, outros trágicos. Ninguém, ninguém mesmo, escapa
da alegria ou da tragédia, independentemente de qualquer coisa, de sua
origem, escolaridade, posição social ou econômica.
Quando todas as crianças da Terra
forem amadas e culturalmente ricas, quando todas nascerem com as mesmas
oportunidades, ninguém pensará em destruir museus, países, povos ou
vitrines. Isabel Fomm de Vasconcellos |
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Sheila Santos Muito bom e muito certo
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Pericles Pontes Talvez V. Não saiba mas esse carro é um Borg ward 1949 ou 1950....é isso? Abraço Isabel Isabel Fomm de Vasconcellos Pericles, leia o texto e você vai ver o quanto eu sei que é uma borg-ward 1953. Rsrsrs... vc não leu, né? Clique no link e leia. Bjos. Pericles Pontes Isabel, acabei de ler p seu delicioso texto. V. Tinha razão, fiz o comentário sobre o Borg ward apenas observando a foto. Isabel Fomm de Vasconcellos Oba, Pericles! Que bom que vc leu!! Bjo! Cara Isabel, como o tema " coxinha" está voga, lembrei - me da primeira vez que tive contato com uma hehehe ...e foi no Fazzano. Tinha na ocasião talvez uns 7 anos. Meu pai comentava sobre seu encantamento com o tal petisco e, num dia, juntamente com seu amigo Macedo Graça ( nossa lembrei o nome e sobrenome) levou-me ate lá. A tal "coxinha" na realidade era literalmente uma coxa inteira de frango empanada e V. a segurava no próprio osso...Nunca mais esqueci.Em tempo, o Fazzano nessa época era na Av. Paulista. Isabel Fomm de Vasconcellos Ah! Eu me lembro, Péricles! Era assim mesmo no Fasano: uma coxa de frango empanada. E me lembro ainda do susto que levei quando, em algum dia dos anos 1960, me serviram uma coxinha que era uma massa com pedaços de frango dentro... rsrsrs... Depois virou uma massa suspeita só... Quais das três variedades estarão na Paulista amanhã? kkkk.... |
Sheila Santos A melhor herança e as pessoas estão ficando cada vez mais pobres.
Luiz Fernando Walther de Almeida Belo texto!!!!! |
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