A Sala de Projeção (ou Projetando o Futuro) Memória de Isabel Fomm de Vasconcellos |
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Dia destes, Jussara (Pontes Cortez), uma recuperada amiga dos velhos tempos de colégio veio aqui em casa. Conversando sobre os anos sessenta, ela me disse que, na turma da escola, ser convidado para uma sessão de cinema na minha casa era uma deferência, um privilégio pelo qual todos ansiavam.
Nunca poderia eu ter imaginado isso.
Na minha casa havia mesmo uma grande sala de projeção, um mini cinema, com dois projetores 16mm, tela, muitos assentos. Era lá que eu dava nossas memoráveis festas adolescentes, onde rolava muita música, muita bebida e muito namoro, aliás, como rolam até hoje as mesmas coisas nas raves, nas baladas da garotada. Era lá também que minha mãe montava uma mesa enorme e comprida para receber a família em inesquecíveis ceias de Natal.
Mas, na época em que meu irmão Alvan trabalhava no departamento de cinema da TV Excelsior (então a líder de audiência) ele trazia latas e latas de filmes, aqueles rolos enormes de quase meio metro de diâmetro, para serem revisados.
Explico: filmes são imagens que tem por base a “gelatina” aplicada na fita de celulose perfurada – para que possa passar pelos rolos dentados dos projetores -- e essa fita é suscetível de sofrer riscos ou pequenas quebras na perfuração e outros defeitos. (Na foto abaixo: filme, perfuração à esquerda e trilha de som ótico à direita)
Ficou muito confuso?
Pois era mesmo incrivelmente confuso fazer filmes, diante da simplicidade com que se gravam e editam as imagens digitais de hoje. Por isso, ter um cinema em casa não era coisa muito comum.
Bem, mas dentro das latas que Alvan trazia, estavam episódios de algumas das mais badaladas séries de TV da época: A Feiticeira, Além da Imaginação, Quinta Dimensão, Os Intocáveis e outras. É claro que eu e meus amiguinhos adorávamos assistir a esses filmes antes que a TV os exibisse e, ainda por cima, numa tela enorme. Naquele tempo, era tudo em preto e branco. TV a cores no Brasil só na década seguinte. |
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A grande turma que frequentava a nossa casa – composta por alunos do Alberto Conte, esquiadores do Clube de Campo do Castelo, seminaristas do Verbo Divino e outros amigos dos amigos, sem contar alguns dos meus primos – era um pessoal “prafrentex”, como se dizia naquela época.
Era uma juventude dourada e privilegiada que estudava em colégios cujo nível de ensino era na estratosfera, se comparado ao de hoje, e tinha a cabeça bem aberta, ligada na revolução cultural e política que sacudia o mundo ocidental da década de 1960.
Éramos tão avançadinhos que talvez tenhamos sido os primeiros pichadores do Brasil. Um dia, conversando à toa sobre palavras compridas, resolvemos escrevê-las nas também compridas paredes da sala de projeção. E lá fomos nós (me lembro principalmente do Sergio Hamilton Angelucci liderando a travessura), munidos daqueles indeléveis “pincéis atômicos”:
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Ácido aceltilsalesílico ou Inconstitucionalissimamente, por exemplo. Depois das palavras compridas, liberou geral... Frases e citações, em todas as cores, com todas as formas de letras: “Virgem Maria, tu que concebeste sem pecar, ensina-nos a pecar sem conceber” ou “O Homem é bom; os homens são maus” (Rosseau) ou “O que torna belo o deserto é que ele esconde um poço em algum lugar” (Exupéry)ou ainda “Amar não é olhar um para o outro: é olharem ambos na mesma direção” (Michel Quoist) e muitas outras. Era uma espécie de mural do Facebook... |
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Quando meu pai foi pintar a sala, teve que fazer um novo reboque nas paredes, porque a tinta dos tais “pincéis atômicos” vazava, por mais demãos de tinta que o coitado do pintor aplicasse...
As nossas travessuras, porém, eram bem maiores do que isso. Contígua à sala de projeção, havia uma outra sala que tinha sido sala de gravação de som. Ela tinha uma “janela” vazada e com vidro dos dois lados (criando um “vácuo” da espessura das paredes) dando para a sala de projeção. Isso era para que o “speaker” (locutor) fosse falando em cima da imagem que rolava na tela da sala de projeção e, assim, gravasse a trilha falada do filme. Mais confusão...
Bem, quando tudo aquilo deixou de ser o laboratório do meu pai (Vascotécnica Filmes) sobrou pra nós. Na “salinha” em questão, cheia de almofadas e tapetes, para que todo mundo sentasse no chão, Lula (não o ex presidente, mas Luiz Augusto Campos Pereira, hoje artista plástico e plantador de alface) e eu resolvemos forrar o teto e as paredes com colagens. Usamos cola de farinha de trigo para fixar as imagens recortadas de revistas e, na porta, colocamos um enorme Pequeno Príncipe que Lula desenhara, igualzinho ao livro do Exupéry. Mas fizemos isso no inverno. Resultado: veio o verão e o calor “cozinhou” a farinha de trigo da cola, esticando tanto as imagens coladas que o efeito foi genial, parecia que as imagens tinham sido impressas nas paredes.
Naquele nosso “clubinho” histórias e mais histórias rolaram. Grandes paixões. Traições. Namoros. Intermináveis considerações políticas. Conversas de uma pivetada que pretendia salvar o mundo. Coisas marcantes: o Eduardo Bullara plantando bananeira – era Yoga – no tapete da salinha, ouvindo jazz. O Tom (Antonio Carvalho do Nascimento, um dos irmãos que a vida me deu, na época seminarista) ouvindo o disco gravado por atores da época, inclusive Paulo Autran, que narrava o Pequeno Príncipe. Lusimar (Monteiro Álvares) e eu traduzindo o Sgte Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. Todos os meninos querendo namorar a Vera Donadio. Os meus primeiros namorados (adivinhe quem???). Muitos de nós reunidos em torno de um circulo formando o alfabeto (com letrinhas de plástico que meu pai usava para compor os letreiros dos filmes) com o indicador em cima de um copo americano emborcado... O copo “andava” e, indicando as letras, formava respostas às nossas profundas indagações existenciais... Muito divertido! Todos acreditávamos poder construir um mundo e um país melhores e mais justos, governados pela paz e o amor. Esse era o nosso projeto para o futuro. Um futuro que nunca chegou, porque o sonho acabou. |
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Em 2016: |