Anos 1950: Esperança Memória de Isabel Fomm de Vasconcellos |
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Nat King Cole
23.12. 1958 Alfredinho, Wanda, Vasco e Alvan, Bodas de Prata dos meus pais.
João Gilberto em 1959, sucesso com a música "Chega de Saudade"
Rádio Vitrola, bisavó dos Ipod
Represa do Guarapiranga, torres do Castelo ao fundo, foto de Lusimar Monteiro Álvares
A Ponte Pênsil, na Baía de São Vicente, SP
O Restaurante Fasano, no Conjunto Nacional da Avenida Paulista, "point" nos anos 1950
A Avenida Paulista ainda com muitos casarões e as árvores na calçada, antes do alargamento.
Meu irmão Alvan e eu na Chácara dos tios Bitelli. 1955.
1956, no Jockey Club, minha mãe Wanda (excepcionalmente robusta), eu (de casquete... alguém se lembra?), minha prima Sônia e minha tia Jeannete. |
Wanda e a Flor Estava ouvindo um velho disco do Nat King Cole, em Espanhol. E a música – que, entre outras coisas, pode ser uma máquina do tempo – me levou de volta ao final dos anos de 1950. Eu era, então, apenas uma garotinha mas me lembro muito bem do meu irmão Alfredinho que passava horas ouvindo, na sala de som do laboratório de cinema do nosso pai, o Nat cantar: “toma chocolate, paga lo que deves”. Alfredinho, apesar de sua doença mental, sempre foi um cara de bom gosto.
Em 1958 meus pais fizeram bodas de prata. Deram uma grande festa para comemorar os seus 25 anos de feliz união. Clique para assistir o filme da festa!
Minha mãe usava um vestido estampado com uma flor de tecido na lapela. Assim como as flores que eu uso, todos os dias, há muitos anos.
Em 1920, quando as americanas, depois de quase 100 anos de lutas, conquistaram o direito de votar, todas as mulheres e todos os homens que estavam na sessão do congresso que aprovou o voto feminino, usavam uma flor vermelha na lapela. Para mim, a flor na roupa significa a luta das mulheres e significa também um tributo à castigada natureza. Para a minha mãe, em 1958, talvez fosse apenas um adorno da moda. Mas eu me lembro de ver, muitas vezes, aquela flor rosada guardada numa caixinha de jóias, por anos e anos a fio. Naquele tempo não havia a fartura de ofertas de produtos que há hoje e seria impensável ter, como tenho hoje, quase 300 flores na gaveta. |
COMENTÁRIO De: "Maria
José Speglich" <speglich@yahoo.com.br> |
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No final dos anos 1950 as escolas nos ensinavam que o Brasil era uma terra abençoada: não tinha furacão, nem vulcão e era o país que acolhera todas as raças e culturas do planeta, para formar uma sociedade justa e progressista. Havia uma euforia no ar. Nosso presidente, Juscelino Kubitschek, prometera 50 anos de desenvolvimento em apenas 5 de mandato. Brasília estava nascendo. A indústria automobilística estava nascendo. O Brasil prometia. Aqui, não havia preconceito de cor, como nos Estados Unidos. Vivíamos, afinal, numa democracia, depois de ter amargado os terríveis anos da ditadura de Vargas.
Em 1959, João Gilberto lançava seu disco (a bolacha negra de 78 rotações por minutos, com uma música de cada lado) que se tornaria o grande marco do surgimento da Bossa Nova. Então foi a minha vez de ficar, como o meu irmão fazia com Nat King Cole, ouvindo horas e horas, seguidamente, o João cantar “Chega de Saudade” na minha vitrolinha portátil e à pilha. Haja pilha! A Bossa Nova também estava nascendo. Um ritmo que contagiaria, e contagiou, todo o planeta. Todo mundo se apaixonava pela poesia. Vinicius de Moraes. Drummond. E até Casemiro de Abreu e Catulo da Paixão Cearense.
O Brasil era criativo, poético, cheio de esperança! A Televisão também acabara de nascer. Ainda era um aparelho caro, como o automóvel, disponível para poucos. Mas já conquistara a todos. Surgiram os chamados “televizinhos” que iam assisitr a TV na casa dos outros, principalmente aos domingos à noite, quando a TV Tupi exbia alternadamente seus “TV de Vanguarda” e “TV de Comédia”. Tudo ao vivo. Ninguém nem sonhava com a revolução do videotape, que só viria quinze anos mais tarde. Grandes atores e diretores do teatro brasileiro estavam na TV.
E havia o cinema. As grandes companhias de cinema nacional: Atlântida, com suas chanchadas. Vera Cruz. Todo mundo gozava o cinema brasileiro, até Anselmo Duarte conquistar a Palma de Ouro em Cannes, com o seu Pagador de Promessas. Mas em matéria de cinema, os americanos levavam, como levam até hoje, a maior fatia do mercado. A vitória dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, em 1945, estava bem viva em todas as mentes do planeta. E os americanos eram mestres em propaganda. O enredo de seus filmes trazia sempre a vitória do bem contra o mal. Vinham cheios de lições de moral, a vantagem de se agir correta e honestamente. E todos os galãs da época tinham um cigarro pendurado nos lábios. Na música, o jazz ia sendo substituído pelo rock. Bill Halley e Seus Cometas e, logo depois, Elvis Presley.
Para uma menina, como eu, de classe média alta, a vida era uma festa. Morávamos numa casa bem grande, na Chácara Santo Antonio, em Santo Amaro, onde funcionava também a empresa de cinema 16mm do meu pai e o atelier de costura da minha mãe. A casa vivia cheia de gente. Na hora do almoço, a mesa da copa reunia, por baixo, de dez a doze pessoas. Eram as minhas duas avós, os meus dois irmãos (Alfredinho e Alvan) os meus pais, e, eventualmente, primos, tios, o Pedro Paulo, ou amigos ou clientes do meu pai ou da minha mãe que eram convidados a desfrutar do almoço doméstico, preparado pelas mãos mágicas da Leca, uma filha “adotiva” da minha avó materna que fazia as vezes de governanta e cozinheira. A empresa se confundia com o lar. Posso me lembrar, com clareza, das acaloradas discussões políticas que aconteciam nesses almoços. Tinha a turma pró- Jânio Quadros e a turma pró-Adhemar de Barros. Lembro-me bem de uma frase da minha mãe, alegre e despreocupada: “Imagine, se o comunismo vier ao Brasil, os brasileiros avacalham com ele”. Sim, os brasileiros dos anos de 1950 tinham esse poder. O de avacalhar com as coisas sérias, o de levar a vida na flauta, na brincadeira, no bom humor.
Eram, pelo menos para nós, tempos felizes. No fim dos anos 1950 e começo dos 1960, nos fins de semana íamos para a represa do Guarapiranga, onde, no Clube de Campo do Castelo, passávamos horas e horas esquiando e ensinando todos os parentes e amigos a esquiar. Nas férias, íamos para a praia de Itararé, em São Vicente, onde nos instalávamos no apartamento da minha tia Bebé (a outra Isabel Vasconcellos) e levávamos a nossa lancha, de motor de popa, para esquiar na Baía de São Vicente. A lancha ficava guardada num estaleiro logo depois da Ponte Pênsil. Não havia filas de carros na Ponte Pênsil. De manhã, íamos de carro até o estaleiro e voltávamos de barco. No fim do dia, ao contrário.
Ainda hoje, quando vou para aquelas bandas, me lembro da minha alegria ao passar esquiando sob a Ponte. Teve um dia que eu caí do esqui bem em frente à praia das Vacas. Quando me preparava para sair esquiando de novo, senti uma pancada na coxa. E outra. E outra. Alguma coisa queria me empurrar para a praia. Meu pai se aproximou com o barco e logo estava rindo. Gritou para mim: - Bel, não se preocupe. São os botos. Eles vão levar você para a praia. Os botos queriam me salvar.
Naqueles tempos, o domínio sobre a natureza é que ia nos salvar. Ninguém imaginava o mal que esse domínio causaria ao planeta. Ninguém nem sonhava com poluição ou mudanças climáticas drásticas ou a extinção de inúmeras espécies de animais e de plantas, como o que estamos vivendo hoje, consequência do domínio do ser humano sobre a natureza.
São Paulo era uma cidade que se orgulhava de ser “a que mais cresce no mundo”. As ruas eram tranquilas. Congestionamentos, impensáveis. Pouca gente podia comprar um automóvel. Hoje eles são acessíveis à maioria, mas pagamos o preço da falta de obras urbanas, ruas, passagens de nível, que fizessem com que a cidade pudesse absorver o incrível número de 500 novos veículos/dia. Naqueles tempos, em São Paulo só chovia. Lembro-me muito bem do quanto a gente ansiava por um dia de sol para esquiar. Esquiávamos sempre com chuvinha, garoa, céu cinza, roupa de borracha. Um dia de sol era um milagre. Muito diferente do clima que temos hoje em São Paulo. Hoje, em qualquer estação do ano, acontecem semanas e semanas de sol escaldante e umidade do ar parecida com a do Saara. A cidade cresceu demais. Não há mais cinturão verde na periferia, só há casas, carros, asfalto... Nos anos de 1950 e 1960 São Paulo era uma cidade úmida. E, no inverno, fazia muito frio.
Também havia o saudável hábito de tomar chá, ou sorvete, depois da sessão de cinema. E cinema era, no mínimo, no Cine Astor, do conjunto Nacional, da Av. Paulista, esquina com Augusta. E, depois do filme, que tal um chá ou um sundae logo ali no terraço do conjunto, no Fasano? Incontáveis vezes fui “segurar vela” da minha prima que vinha de Belo Horizonte para namorar o seu também primo, um jovem jornalista que se projetava no colunismo social e no jornalismo econômico .
Havia também a chácara. Ela pertencia ao meu tio, o industrial Augusto Bitelli, casado com a irmã do meu pai, a Bebé. Durante os anos de 1940 e 50, a chácara reunia a família para memoráveis almoços que acabavam sempre em música. Meu tio Raul no cavaquinho, meu pai no violão, minha prima Dudu no acordeon e todo mundo – 20 ou 30 pessoas – cantando debaixo das árvores. Naqueles tempos, quase todo mundo sabia tocar um instrumento musical e todos cantavam. Clique para assistir o filme de 1948, Cantoria na Chácara, Dudu Zocchi canta e toca sanfona
Para se ter uma idéia, a chácara ficava na Rua Sete de Setembro, no Alto da Boa Vista. É claro que, quando meu tio a construiu, aquilo era “campo”, era fora da cidade. Mas a cidade chegou lá. Hoje, onde estava a chácara, está um enorme condomínio residencial e todo aquele bairro é densamente povoado.
Ah, a vida era tão diferente! Não havia poluição. Não havia congestionamento. Não havia violência urbana. Mas também não havia computador, TV a cabo, telefone celular, câmeras digitais. O mundo ainda não era a aldeia global, antevista por McLuhan, que é hoje. Fui feliz naqueles tempos, mas também sou feliz hoje. De uma maneira diferente. Não posso imaginar mais a minha vida, por exemplo, sem o computador, que é o meu maior companheiro e o meu instrumento de trabalho. Tudo o que o meu pai fazia, com muito esforço e horas de trabalho, em seus filmes, eu faço hoje, em poucos minutos, no windows movie maker. Ainda ouço Nat King Cole, mas agora é em som digital e perfeito, sem os chiados da velha agulha. Todos os filmes domésticos do meu pai foram convertidos primeiro para vídeo, nos anos de 1990, e depois para DVD e agora estão no pen drive. Suas máquinas maravilhosas de filmar e de fotografar viraram peças de museu e estão guardadas numa vitrine, na sala do nosso apartamento.
Tudo mudou. Não existem mais políticos como Juscelino Kubitscheck e estamos mergulhados num oceano de corrupção. No entanto, apesar da violência, da poluição, da corrupção, eu não trocaria os tempos de hoje pelos tempos daquele tempo. Tudo caminha, na vida. E caminha para um mundo melhor e mais justo. Apesar das aparências.
Nat King Cole canta no meu som: “Someday soon I’ll find you, somewhere along the way”. De um jeito ou de outro, nós sempre nos encontraremos, ao longo dos caminhos. Errando, fazendo guerras, lutando, a humanidade vai caminhando, em todas as épocas, saboreando o encanto de cada uma delas. E, olhando a longa distância, só se pode concluir que esse é o caminho da evolução. Para que e para onde, ah... isso eu não sei.
Os anos cinquenta -- com suas mulheres chiques, que usavam chapéus, estolas de pele natural, flores na lapela, com seus homens elegantes que fumavam muito e não dispensavam o terno e a gravata -- desembocaram na revolução mundial dos anos sessenta. E tudo mudou. A ingenuidade deu lugar a uma maior compreensão do jogo político internacional. Os jovens começaram a se politizar e a se mobilizar. A elegância acabou na calça jeans. Vieram os Beatles, o “faça amor, não faça a guerra”, o “não confio em ninguém com mais de 30 anos”, a era do sonho, o sonho do amor e da paz.
Mas isso é uma outra história que fica para uma outra vez. |
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