A
Wanda, minha querida mãe, teve uma morte muito legal. Sem grandes sofrimentos,
embora os últimos seis meses de vida dela tenham sido um tanto sofridos, mas
também sem grande consciência. Como ela mesma dizia, não sabia mais o que era
sonho e o que era realidade. Mas ela teve uma grande vida, uma vida maravilhosa,
apesar da tristeza eterna pela condição do meu irmão Alfredinho, doente mental.
E
morreu abraçada comigo. A sua última filha. A última a nascer e a última a
morrer.
Um dos
contos do meu livro das bruxas foi escrito por inspiração da juventude dela:
Aurora, a Sufragista. É bem o pensamento das mulheres de vanguarda do começo do
século passado. E foi o conto que ela mais gostou quando, há uns três ou quatro
anos, leu os originais.
Ela
teve a felicidade de viver 60 anos com o meu pai, o grande amor da juventude
dela. Ele fazia serenatas para ela e o meu avô o odiava, o achava um
almofadinha, um "dandy", como se dizia nos anos 1920, que jamais seria nada na
vida.
Ele se
vestia na moda, todo elegante, patinava, nadava no Clube de Regatas Tietê e dava
saltos mortais. Desafios para ele, sempre foram fichinha. Assim, a Wanda, na
vida dele, devia ser mais um desafio. Levaram seis anos para conseguir casar.
Casaram-se em 1933, então devem ter se conhecido em 1927. Minha mãe tinha 15
anos. Já tocava piano e costurava. Ajudava a mãe dela, Amélia, que era modista e
"punha o figurino na janela" da casa quando precisava de dinheiro.
Minha
avó Amélia (na foto com a Wanda em 1916) nasceu na Ilha da Madeira, veio para o
Brasil com a família, que se instalou numa fazenda em Juiz de Fora, MG. Não sei
como ela veio parar em S.Paulo. Talvez pelo seu primeiro casamento, do qual não
teve filhos, talvez por ter ficado viúva muito cedo ou ter se separado, não sei.
Mas o fato é que, um dia, talvez em 1910, conheceu um dentista baiano - José
Clemente de Souza - e teve um caso com ele. Ficou grávida da minha mãe. E ele
foi assassinado, em plena Rua Direita, pela sua outra amante, que descobrira a
gravidez da minha avó. A mulher se aproximou dele com uma arma (seria um
revólver, uma garrucha, uma faca?) escondida sob seu xale e... pum! Acabou com a
vida do meu verdadeiro avô materno. Depois disso, minha avó Amélia escondeu sua
gravidez, apertando a barriga em cintas muito apertadas. Pegou um navio, foi pra
Portugal com os pais, sempre escondendo a gravidez. Minha mãe nasceu em Juiz de
Fora, na fazenda e, quando Amélia voltou, contou uma história aos pais, dizendo
que pegara a menina pra criar. Só a irmã dela, Maria, de Juiz de Fora, sabia a
verdade.
Desde
pequena, minha mãe se revelou, como a mãe dela, um incrível talento para cortar
e costurar os mais belos trajes. Nunca a vi usar um molde. Ela estendia o tecido
numa mesa grande e mandava ver com a tesoura. Nunca errava.
Quando
a minha mãe tinha 10 anos de idade, Amélia se casou com José Basílio de Almeida.
Aí começou a ter um filho atrás do outro.
A
primeira filha, Janetinha, morreu com um ano de idade depois de comer jaboticaba
com leite (???).
Em
seguida minha avó engravidou da minha tia querida, a Jeannette. Mas estava tão
deprimida que mal se alimentava e a tadinha da Jeannette nasceu tão pequena que
a aliança da minha avó entrava no pulso dela. Jeannette nasceu em 1923.
Em
24, nasceu o José. Em 25, a Maria. Minha mãe ajudou a criar todos, por isso
todos a consideravam como uma segunda mãe.
A
Wanda e o Alfredo(meu pai), depois de um longo namoro não aceito pelo meu avô
postiço, se casaram em 23 de dezembro de 1933. Meu avô não foi ao casamento.
Mas
ele estava errado. Meu pai já era um brilhante fotógrafo e fazia fotos para
empresas, fotos de produtos e imobilárias. Era apaixonado pela tecnologia
daqueles tempos mágicos do começo do século XX. Sozinho, estudava ótica, rádio,
mecânica, cinema.
Começou
a construir as máquinas que não podia importar. Tiveram dois filhos: Alfredinho,
que nasceu em 1934 e Alvan, em 1935.
No
começo dos anos de 1940 meu pai foi contratado pelo Consulado Americano para
fazer a sua divulgação cinematográfica. Viajou por todo o país, dirigindo uma
perua americana, fazendo projeções em praça pública dos documentários dos
Estados Unidos. Ganhava em dólar, tinha acesso às maravilhas importadas.
Minha
mãe foi fazendo uma freguesia de costura na classe alta paulistana. A irmã de
meu pai, Bebé (a outra Isabel Vasconcellos), era casada com um industrial
italiano. Meus pais começaram a frequentar os milionários da colônia italiana,
Ramenzonis e Caravelas da vida. Logo meu pai estava filmando casamentos (uma
coisa sofisticadíssima na época) milionários.
Assim,
foi montando seu laboratório de cinema e ficava horas e horas construindo
máquinas. Foi o primeiro sul americano a conseguir revelar filmes de 16mm
coloridos. Ele construiu a máquina. Construiu também a máquina de gravar som
ótico em película. Minha mãe na alta costura, meu pai filmando a vida da alta
sociedade e ganhando em dólar... Foram ficando ricos. Mudaram-se para um casarão
na Rua Vergueiro onde, inclusive, foram morar as minhas duas avós e os irmãos da
minha mãe.
Desde
os cinco anos de idade, o filho mais velho da minha mãe,
Alfredinho, apresentava
problemas mentais. Sem um diagnóstico, meus pais pensaram que poderia ser
congênito e a Wanda decidiu que não teria mais filhos. Naquele tempo não havia a
pílula e ela fez 12 abortos. No último, quase morreu. Então prometeu a Deus que
não faria mais abortos. Foi por isso que, em 1951, eu nasci, na casa da Rua
Vergueiro.
Alguns
anos mais tarde, a ciência médica conseguiu diagnosticar o caso do Alfredinho:
ele tivera encefalite aos 5 anos de idade. Não era, portanto, congênito. Minha
mãe poderia ter tido os seus 12 filhos...
Mas
eu nasci sob a sombra da televisão, que muito mais tarde, seria a coisa mais
importante da minha vida. Nasci em casa, pelas mãos de uma parteira, que se
chamava Amélia, como a minha avó. Mas, no momento em que nasci, todos, na casa
dos meus pais, estavam muito ocupados assistindo uma partida dos jogadores de
basquete, os Globe Trotterrs, pela recém-inaugurada TV Tupi de São Paulo. Meu
pai queria que eu me chamasse Hazel, mas Alvan, meu irmão disse que, já que eu
nascera em 13 de maio, deveria me chamar Isabel, em homenagem à Redentora Isabel
de Bragança, que, em 13 de maio de 1888, libertara os escravos.
Meu
pai filmou (como filmava todos os eventos familiares) o meu primeiro dia de
vida. O filme foi narrado pelo seu amigo Pedro Paulo, vinte anos mais novo que
ele, que até hoje é nosso amigo e frequenta a nossa casa. Rimos, quando digo que
o Pedro Paulo é uma “herança” que meu pai deixou para mim. Pedro Paulo é
produtor de cinema e video, com prêmios internacionais, é locutor e ator (fez 17
filmes, estrelou alguns, na Vera Cruz) e uma das pessoas mais queridas da minha vida, sempre
presente, embora tenhamos passado uns 20 anos (de 1970 a 1990, mais ou menos)
sem nos ver.
Em
1955, meu pai construiu uma casa em Santo Amaro, num terreno que comprara para
morar perto do seu irmão Raul, que se mudou antes de a casa ficar pronta...
risos. A casa era uma lingüiça. Ia de um quarteirão a outro. Na frente, a casa.
Com um monte de quartos, porque moravam muitas pessoas lá. Depois, o atelier de
costura da minha mãe e o laboratório de cinema do meu pai, com entrada
independente.
Minha
infância foi maravilhosa. Cresci ouvindo minha mãe dizer, sobre os homens: “por
que que é um direito para eles e outro para nós?”
A
Wanda me vestia, com as roupas maravilhosamente cortadas e costuradas por ela.
Ela me vestia por dentro de por fora. Era uma mulher generosa, amorosa e
absolutamente prática. Se o mundo caía, ela pedia uma alavanca porque precisava
levantar o mundo. Ela administrava as finanças da família. Meu pai nem sabia
quanto ganhava e quanto gastava. Perguntava para ela:
-
Wanda, será que posso comprar um carro novo? Um barco?
O
barco era um pesadelo pra ela, que nunca aprendeu a nadar. Ficava nervosa, vendo
a gente esquiar.... risos. No clube, armava uma rede, nas árvores da praia, e se
sentava de costas para a represa do Guarapiranga, onde nós, campeões de esqui
aquático, levávamos nossos tombos.
Nos
natais, a família, espalhada pelo Brasil, vinha inteira para a nossa casa.
Era
uma festa! Na enorme sala de projeção do laboratório do meu pai, armávamos uma
mesa enorme, para 40 ou 50 pessoas. Foram anos de alegria e prosperidade. E a
minha mãe comandava os natais, que, até hoje, são lembrados com carinho por toda
a minha legião de primos.
Havia
uma outra personagem na casa: a Leca.(clique
aqui para saber mais
sobre a Leca!) Ela fora uma “agregada” na fazenda da
minha avó. Veio morar com os meus pais não sei quando. Cuidava da casa,
cozinhava almoços para 15 pessoas, administrava os empregados e ajudou a me
criar. Dormia no meu quarto e quando morreu, em 1960, eu costumava vê-la na
escuridão do aposento. Nunca tive medo do fantasma da Leca, eu a amava.
No
fim dos anos de 1960, meu pai vendeu seu
laboratório de cinema. Já não se podia
importar sequer a matéria prima, os filmes, e ele estava cansado. Depois vendeu
a casa. Meu irmão Alvan estava fora de S.Paulo, fazendo sua carreira na TV.
Alfredinho passava quase todo o tempo internado em algum instituto para doentes
mentais. Minhas avós haviam morrido. A Leca também. E estávamos, apenas nós
três, naquela casa enorme. A venda foi um péssimo negócio: vendeu a prazo, sem
correção monetária e, no mesmo ano, começou o inferno da inflação galopante.
Eu fui
para a Bahia, com meu irmão,
Alvan, que dirigia lá a TV Aratu, porque ele temia pela
minha integridade, já que eu estava metida nos movimentos estudantis da esquerda
e vivíamos a ditadura militar.
Quando
voltei, descobri que meu pais haviam empobrecido. Morávamos de aluguel, numa
casa muito boa e meu pai só tinha seu salário de diretor do serviço de Filme
Patrulha do Jockey Club de São Paulo. Minha mãe ainda costurava, mas suas
freguesas ricas haviam sumido. Foi nesta época, anos de 1970, que o dinheiro
começou a ser um pesadelo na vida da minha mãe.
Mas,
sinceramente, ela soube administrar o pesadelo.
Vivi,
com meus pais, na casa alugada por uma década. Com uma interrupção, quando morei
e trabalhei na Bahia, em Salvador.
Trabalhava como publicitária, era boêmia, revoltada com a ditadura e com um
monte de coisas. Sei que eles ficavam acordados até eu chegar, alta madrugada.
Mas nós fomos felizes.
E
minha mãe jamais perdeu a dignidade.
Quando
eu chegava do trabalho na agência de propaganda, invariavelmente, todos os dias,
de segunda a sexta, encontrava meu tio Raul (que também saíra de seu trabalho e
ia para lá) tocando cavaquinho, a acompanhar minha mãe ao piano e meu pai ao
saxofone.
Em
1983, conheci o Caetano e fui morar com ele. Dois anos depois nos mudamos para a
Paulista, onde estamos até hoje.
Em
1984, fui para a TV e lá fiquei.
Em
1987, meu pai morreu.
Minha
mãe se comportou com toda a dignidade e continuou na casa, onde também viera
morar meu irmão Alvan, divorciado e trabalhando como diretor da TV Gazeta.
Já não
existiam os natais memoráveis e prósperos, mas continuaram existindo as festas,
os natais menos concorridos, os almoços de domingos.
E lá
estava ela, que aprendera a cozinhar com 60 anos, fazendo seus cozidos
portugueses, suas feijoadas e seus inesquecíveis bifes.
Em
1990, meu irmão Alfredinho veio passar um tempo em casa, saindo do hospital
psiquiátrico, e nunca mais voltou para lá. Ficou vivendo com a minha mãe, que
cuidava dele.
Em
1998 meu irmão Alvan se mudou para Campos de Goitacazes, onde mora o filho dele,
e eu achei que era demais deixar minha mãe, então com 86 anos, morando sozinha
com meu irmão doente. Batalhei, encontrei um apartamento lindo no prédio onde
moro e aluguei pra ela. Morri de trabalhar para deixar o apartamento (que estava
fechado havia anos) em ordem. Mas ela não gostou. Dizia que eu a trouxera aqui
para morrer. Dois anos depois, meu irmão Alvan, deprimido e sem trabalho, também
veio morar com ela.
Ficaram
os três aqui no prédio até 2003., quando eu não tinha bons patrocínios na TV e não podia
mais ajudar a pagar a conta dos três. Então eles se mudaram para um apartamento
de férias que minha tia Jeannette tinha na Praia Grande. Minha prima Beth, filha
da Jeannette, já morava na Praia há alguns anos. Alvan adorou a idéia de morar
na praia, afinal ele morara anos no Rio e em Salvador, quando fora um bem
sucedido diretor de várias TVs. Mas minha mãe sempre odiou morar lá, reclamava
muito. Em 2004, Alvan morreu de câncer.
Em
2005, num fim de semana, fui para lá e encontrei minha mãe desesperada. Disse
que não aguentava mais morar lá, que os vizinhos discriminavam o Alfredinho, que
ela estava cansada e que queria ir “para um asilo” e queria que eu internasse o
Alfredinho.
Minha
mãe estava com 93 anos. Era natural que estivesse cansada.
Quase
morri. Encontrar uma clínica psiquiatrica hoje em dia não é fácil. Mas
encontrei, depois de muita batalha, em Hortolândia. Conversei com meus amigos
médicos. Minha mãe estava começando a ficar mentalmente confusa. Internei meu
irmão em Hortolândia e trouxe minha mãe para morar numa casa de idosos,
absolutamente maravilhosa, no Brooklin. Lá, ela tocava piano, fazia ginástica,
tinha todos os cuidados profissionais e era a interna que mais visitas recebia.
Além de que vivia saindo, para ir a casa dos meus primos, vir almoçar aqui em
casa, vir nas festas. Mas, mesmo assim, parte da minha família moveu uma
verdadeira "campanha de difamação" contra mim, via internet, porque eu a colocara
numa casa de idosos.
Lá,
ela era conhecida por “pimentinha”, porque sua energia continuava sendo muita.
Em 22
de fevereiro de 2007, quando ela completava 95 anos de idade, passou mal e a
levamos para o hospital. Teve a perna direita amputada e, daí pra frente, nunca
mais, graças a Deus, voltou a ter completa lucidez.
Eu ia
vê-la todos os dias, tomávamos café no jardim, mas ela não estava bem, não
raciocinava mais e me disse um dia que sonhava muito mas que já não sabia mais o
que era sonho e o que era realidade.
No
dia 6 de maio de 2007, meu irmão Alfredinho morreu subitamente de enfarte.
Então
eu soube que ela finalmente estava livre para partir.
No dia
16 de junho fui vê-la e a encontrei muito prostrada, quase não falava, mas ainda
me dava seus beijinhos.
No dia
17, um domingo, ela já não me dava mais beijos. Fiquei horas com ela, consegui
dar-lhe um café e só vim embora porque as enfermeiras me garantiram que ela
estava bem, pressão 12x8, sinais vitais ok. Entrei no carro, liguei o rádio.
Estava tocando uma música que eu nunca ouvira. A letra dizia: “por que é que
você não me beija mais? Por que me olha como se não me visse? Acho que é hora do
adeus”.
Quase
dei meia volta com o carro, mas pensei que as enfermeiras iam me achar louca.
Vim pra casa. Meia hora depois a enfermeira dela me ligou:
-
Isabel, venha pra cá. Os sinais vitais da sua mãe desapareceram. Estou fazendo
massagem cardíaca e ela está no oxigênio. Traga uma ambulância.
Cheguei lá antes da ambulância. A enfermeira da ambulância disse:
-
Não vou levá-la. Não adianta mais.
Perguntei:
- Ela
está morrendo?
Estava.
Eu a
abracei e disse: Mãezinha, vai com Deus.
E ela
morreu.
Foi
uma morte linda. Assim como foi linda a sua vida.
Minha
amiga, Fátima Turci, que só esteve com ela uma vez, quando ela já tinha 94 anos,
reconheceu a sua força.
Minha
amiga Leda, que a conheceu, com 90 anos, também.
No seu
enterro, parentes e amigos queridos, muitos que desfrutaram de seus melhores
tempos.
Minha
mãe viveu uma vida maravilhosa. Era uma mulher forte, corajosa, e eu devo a ela
o meu feminismo, que é o melhor de mim, e a minha capacidade de amar, que, entre
outras coisas, me mantém com o meu amor, Caetano, há tres décadas. Aprendi tudo com
ela. E a tive a felicidade de vê-la morrer em meus braços.
Isabel, 5
de julho de 2007
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