Instintivamente levou a mão ao rosto, na altura dos olhos,
imaginando que estava com óculos virtuais, que alguém estava lhe pregando uma
peça, que a paisagem era uma projeção..., mas não estava.
O homem gentilmente a conduziu:
-- Senhorita, venha até a casa, vou pedir que lhe sirvam um copo
d’água, quem sabe um chá, vamos sair debaixo desse sol que
certamente não está lhe fazendo bem...
-- Não entendo... – disse ela – De repente a paisagem parece ter
se transformado... Onde estamos afinal? Não estamos no Castelo,
na represa do Guarabitinga?
-- Sim, estamos, é claro – respondeu ele. E continuou:
-- A senhorita deve ser a amiga da minha irmã, ela me disse que
viria nos visitar – e enquanto falava, subia com ela a rampa de
pedras em direção à porta principal do Castelo -- e estava muito
contente em poder mostrar-lhe a nossa nova residência –riu –
Minha mãe fez todos os marceneiros a nosso serviço assistirem
filmes que ela trouxe da Alemanha para que pudessem reproduzir
os móveis exatamente como eram em sua terra natal. Mas eu, eu
nasci aqui, sou paulistano e brasileiro, sou urbano e,
sinceramente, preferiria morar naquela avenida onde estão se
instalando, em mansões ecléticas, as mais nobres famílias dessa
cidade, em vez de morar aqui, nesse final de mundo, no meio do
mato...
-- Mas o Castelo é um lugar maravilhoso—disse ela --numa
localização privilegiada, no topo dessa leve colina, no meio
dessa península maravilhosa, quase uma ilha, cercado de água e
com esse gramado que desce até a praia, com essas árvores
magníficas... O senhor certamente é um ser privilegiado! Deveria
ser grato por morar aqui – respondeu ela, já assumindo que, em
sonhos ou não, tinha recuado 100 anos, ou mais, no tempo.
-- Ainda assim, eu preferiria ir morar nessa Avenida
Paulista..., Mas a senhorita ainda não me disse seu nome.
-- Sou Susana Expedito – respondeu.
-- E eu sou George Meyer – disse ele e já acrescentando – mas aí
vem minha irmã... Evelyn, encontrei a sua amiga aí na alameda.
A moça sorriu.
-- Meu irmão querido, não é essa moça que eu estou esperando...
Quem é ela?
-- Senhorita Susana Expedito, essa é Evelyn Meyer, minha irmã.
Trocados os cumprimentos formais, Susana percebeu que teria que
improvisar.
-- Desculpem-me... Estou de fato confusa, não me lembro de como
vim parar aqui... Eu lamento se os estou incomodando..., Mas
estou mesmo confusa.
Evelyn sorriu:
-- Uma dama de sua classe é sempre benvinda em nosso lar...
descanse um pouco, talvez tenha sido esse sol, tão pouco comum
na província de São Paulo... Logo se lembrará... Venha, a mesa
do chá está posta. Vamos nos servir.
Susana foi conduzida à grande sala de vidros, que, do lado
oposto à porta do Castelo, se descortinava para a grande grama
verde que descia até a praia, com algumas árvores à direita, o
corredor formado pelas grandes árvores à esquerda e outras,
também majestosas, árvores bordando as margens da represa. Uma
grande mesa de jantar, com 12 cadeiras, estava sendo abastecida,
por criados, com pães, bolos, manteiga, finos doces austríacos e
chá num samovar russo.
-- Seu vestido é deveras interessante – disse Evelyn – Diferente
de tudo o que já vi... Esse tipo de seda e essa estampa... E
essa sua bolsa... Deve ter sido comprada fora do Brasil, não? –
e suspirou corrigindo-se – Oh, me perdoe, a senhorita ainda não
está lembrada...
Susana deu graças a Deus por estar usando um vestido comprido,
com estampa de flores, e saia godê, que poderia ter sido usado
no tempo em que estava... Imagine se ela tivesse ido parar no
início do século XX com uma daqueles mini saias ou calça
jeans...
Sim, Susana já compreendera que estava no início do século XX.
Como a Claire, do Outlander. A diferença fôra que não passara
through the stone, mas by The Mists of Avalon... Sorriu ao
pensamento e sentou-se à mesa com seus gentis anfitriões, para o
chá.
-- Meu Deus – exclamou a jovem Úrsula, ao ser apresentada à
Suzana e depois de desculpar-se com Evelyn e George pelo atraso
– Mas a senhorita é igualzinha à minha amiga Carmen. Nossa. Se
eu não a conhecesse bem, diria que são gêmeas! Devem ser, no
mínimo, da mesma família... O sobrenome dela, no entanto, é Fomm
de Vasconcellos.
Susana deu um pequeno salto, surpresa e quase deixa escapar:
“Claro, ela é minha bisavó”
Disse apenas:
-- Sim... Creio que possamos ser parentes, embora distantes. O
nome me parece familiar.
-- Posso contar, Susana? – perguntou Evelyn e recebeu um olhar
duro, reprovador, de George.
-- Hum... algum segredo? – fez Úrsula com um muxoxo.
-- Susana não se lembra de muita coisa além de seu nome. Nem
sabe como veio parar aqui.
-- Oh... – disse Úrsula – sinceramente constrangida – Mas
certamente deve ser uma amnésia temporária... Então está
hospedada aqui?
Susana balançou a cabeça, confusa, sem saber o que dizer, mas
George respondeu por ela:
-- Sim, é claro! Susana ficará conosco pelo tempo que precisar.
Mas, certamente, alguém há de procurar por ela, ficaremos
atentos aos anúncios de O Estado de São Paulo, amanhã e nos
próximos dias.
-- Vocês certamente assinam também O Diário Popular... – disse
Úrsula --Minha amiga Carmen (deve ser sua parente, minha cara
Susana) escreve lá, crônicas semanais.
-- Escreve-as, inclusive, muitíssimo bem-- disse George.
E Úrsula, toda coquete:
-- Um passarinho me contou que aqui mesmo nessa mesa temos um
grande talento literário, que se isola no escritório que montou
na torre de seu Castelo para escrever e escrever...
-- Apenas um passatempo, querida amiga – respondeu George— A
senhorita bem sabe que passo meus dias no escritório da firma da
nossa família e nosso pai não aprovaria um filho escritor.
-- Ele está escrevendo um romance sensacional – disse, toda
animada, Evelyn – Eu leio cada capítulo e depois tenho que
esperar que ele tenha tempo para escrever outro, fico ansiosa,
querendo saber a continuação da história...
-- Não é um romance – protestou George – É apenas ficção, uma
história talvez bem escrita, mas indubitavelmente sem nenhum
talento literário.
-- Bobagem – respondeu Evelyn – Ele é um escritor nato. Imagine,
está escrevendo uma história que se passa daqui a 110 anos, no
ano de 2019.
Susana estremeceu na cadeira.
-- Está se sentindo bem, senhorita? – preocupou-se Úrsula --
Gostaria que chamássemos um médico? Meu pai é um excelente
médico. Posso pedir ao nosso chauffeur que nos leve diretamente
ao consultório dele, agora mesmo. O consultório tem telefone,
nossos amigos aqui também, uma linha absolutamente exclusiva,
aliás...
-- Não é necessário – respondeu Susana – e a senhorita é muito
gentil ao preocupar-se com a minha saúde. Mas, tirando essa
amnésia temporária, tenho certeza que não existe mais nada
errado comigo.
-- Mas a senhorita – respondeu Úrsula – certamente não é
paulistana de origem, seu sotaque me é muito estranho, nunca
ouvi ninguém falar dessa maneira e olhe que conheço o Brasil
todo, pelos menos as capitais mais importantes, e nunca ouvi
esse sotaque.
-- Será de algum país de língua portuguesa, alguma colônia de
Portugal em África? – arriscou Evelyn.
-- Sim... – fingiu Susana – agora me lembro vagamente...
Moçambique... Se não nasci lá, vivi lá.
George olhou para ela, com surpresa e reprovação no olhar, e os
olhos dela captaram-lhe o pensamento. Ele sabia que ela estava
mentindo. Mas não disse nada.
Susana lembrava-se muitíssimo bem de sua bisavó, Carmen Fomm de
Vasconcellos Expedito. Conhecia muito bem as fotos dela. E era
voz comum na família que Susana era a cara dela, parecia ser um
clone dela. Lembrava-se de uma vez, num baile à fantasia, ter se
vestido exatamente como sua bisavó estava vestida em 1915, ter
se maquiado e penteado exatamente como a antepassada aparecia
numa foto e, para gaudio de sua costureira, de seu cabeleireiro
e de seu maquiador, e também do fotógrafo, ela ficara
absolutamente igual e se deixara fotografar, mas a cores, num
ambiente muito semelhante ao que aparecia na foto de sua bisavó.
A foto de 2015 parecia apenas ser a versão em cores da foto de
1915. Mas agora, por causa do comentário de Evelyn sobre o livro
do irmão, ela sabia que estava em 1910. Sua bisavó, naquele
momento, era solteira, não se casara ainda com aquele que viria
a ser seu bisavô e nem se tornara a escritora famosa que fôra,
lida e relida, principalmente depois da segunda metade do século
vinte. Susana sempre se compadecia ao lembrar-se de que, em
vida, Carmen Fomm de Vasconcellos Expedito jamais encontrara o
reconhecimento verdadeiro de seu talento, embora tenha sido
relativamente bem-sucedida, na carreira de escritora, em sua
própria época. Certamente, porém, estava à frente do seu tempo.
Duas gerações a sucederam até que fosse plenamente compreendida.
-- Por falar em continentes – disse Úrsula – os pais de vocês
ainda estão na Europa?
-- Já estão no navio – afirmou Evelyn – Nos telegrafaram
avisando e também recebemos maravilhosos cartões postais deles.
Mas só chegarão ao porto de Santos em três semanas.
...
Naquela noite, vestida com a camisola e peignoir da Evelyn,
preparando-se para dormir em lençóis de cetim e enorme cama, com
dossel e cortinado do mais fino tule, no grande quarto de
hóspedes do Castelo, Susana afinal lembrou-se que não apareceria
no escritório na manhã seguinte, que seria segunda-feira, em
2019, e que seus sócios ficariam extremamente preocupados se ela
não comparecesse à audiência do milionário divórcio que estava
capitaneando... Bem – pensou com esperança – talvez amanhã de
manhã eu acorde em minha própria cama.
Capítulo 2 - São Paulo,
1910
Os Bem-Te-Vi de peito amarelo cantavam ao amanhecer. Um raio de
sol, enviesado, entrou no quarto de hóspedes do Castelo e
despertou Susana de um sonho maravilhoso, onde ela, vagando por
entre as estrelas, era capitã de uma nave estelar.
Bem, acordara, afinal, entre lençóis de cetim, e sabia que ainda
estava no Castelo de 1910.
Evelyn prometera levá-la ao centro da cidade de São Paulo, ainda
nas primeiras horas da manhã. Iriam providenciar roupas e
sapatos e mais o que fosse necessário ao bem-estar de Susana.
Mas Evelyn imaginava que a visita à cidade talvez pudesse
despertar na amiga (sim, Evelyn a sentia, já, como uma amiga)
algumas lembranças.
Uma criada bateu à porta do quarto. Para atender Susana, trouxe
um vestido de Evelyn, uma bacia com uma jarra d’água para que
ela pudesse lavar o rosto e avisou que o café seria servido, na
sala de vidros, dali a vinte minutos.
Susana sentiu falta de George à mesa do desjejum.
-- Ah – explicou Evelyn – ela já foi para a firma. Quando nosso
pai não está, ele faz questão de estar lá, desde a hora em que
chegam os operários, para mostrar a estes que eles não estão
sozinhos. George tem um amigo, chamado Edvard Stretti, que tem
ideias muito avançadas sobre as relações patrão-empregado. Hoje
eles já tinham combinado de tomar juntos o café na casa da
família Stretti, na Avenida Paulista. Você já deve ter percebido
o quanto meu irmão admira esse empreendimento de Joaquim Eugênio
de Lima. Quando ele, o Sr. De Lima, morreu, em junho de 1902,
George tinha apenas 20 anos e ficou profundamente abalado.
Eugênio de Lima, você sabe, era um empreendedor de grande visão,
à frente do seu tempo, tinha ideais progressistas, escrevia
muitíssimo bem... Era um ídolo e um modelo para George.
Para Susana, no entanto, Joaquim Eugênio de Lima era apenas o
nome da Alameda que cruzava a Paulista e exatamente onde ficava
o edifício do escritório de advocacia do qual ela era uma das
sócias. Sabia vagamente quem era ele, pois lera algo na Internet
sobre um romance que falava de um suposto fantasma desse senhor,
que viajava no tempo, sempre na Paulista. Por sorte, Evelyn era
do tipo que fala muito e, em sua fala, lhe deu as informações
que lhe faltavam.
-- Ah... Havia muitos que duvidavam do sucesso da Avenida criada
por Eugênio de Lima. Diziam que era uma obra grandiosa demais
para uma cidade como São Paulo. Acharam absurdo que ele tivesse
aterrado o vale para unir as duas pontas do alto do Caaguaçú,
reclamaram quando ele chamou o tal paisagista francês para
preservar as espécies nativas do local num parque... E George o
defendia com unhas e dentes. Chegou a brigar seriamente com um
dos seus amigos de infância, defendendo a obra de Eugênio de
Lima. Mas, por fim, menos de duas décadas depois da inauguração,
passear na Avenida Paulista e ver algumas das mansões que já
erguidas lá, se tornou uma atração de domingo para as famílias
paulistanas.
Aqui, Susana pensou: E ainda é assim, uma grande atração de
domingo para muitas famílias paulistanas...
-- Hoje – continuou Evelyn – é o metro quadrado mais valorizado
da cidade.
Susana pensou de novo: E continua assim até o meu hoje de
2019...
Nesse momento, a governanta da casa, Matilde, veio avisar que o
chofer – que fora levar George à residência dos Stretti e,
depois ao seu escritório, na fábrica, no distante bairro da
Mooca, já retornara e estava à disposição da Srta. Evelyn.
...
-- Reconhece o caminho? – perguntou Evelyn.
Estavam -- percebia Susana – na antiga Estrada de Santo Amaro,
um trilha no meio da mata, com algumas chácaras e que, 109 anos
depois, seria a movimentadíssima e povoadíssima Avenida Santo
Amaro. Tinham saído da represa por ruas sem calçamento, e ela só
conseguira reconhecer a velha e abandonada (em 2019) ponte sobre
o Rio Pinheiros. Reconhecia a topografia. Logo acima, seria
construído o Autódromo de Interáguas, em 1940. No entanto, ali
onde a paisagem era toda verde, com algumas poucas casas e
chácaras, algumas plantações, em pouco mais de um século todo o
entorno da ponte seria um enorme paliteiro de prédios
residenciais e, mais para a o norte, modernas torres
corporativas e o rio, que corria absolutamente azul, seria um
escuro, quase preto, esgoto a céu aberto.
Passaram também pelo centro da então cidade de Santo Amaro, com
sua Igreja Matriz, ou Catedral, que Susana percebeu bem
diferente da dos anos 2000, parecendo muito imponente com sua
torre já erguida, seu relógio doado por Manoel de Borba, mas sem
parte das alas que, certamente, foram sendo acrescentadas como
passar dos anos. Em 2019, a Igreja, embora bem maior, estava
sufocada entre tantos edifícios que fazia com que essa, erguida
quase solitária sobre a colina, parecesse muito maior.
A Estrada de Santo Amaro terminou numa rua muito larga, de
paralelepípedos, que passava pelo antigo matadouro (o mesmo
prédio onde está, em 2019, a Cinemateca Brasileira no Largo
Senador Raul Cardoso... – pensou Susana -- Daqui a 38 anos o
prédio será restaurado e se tornará um importante ponto
cultural). Logo depois do matadouro se iniciava uma subida, onde
as casas estavam, em ambos os lados, poucos metros acima do
leito de pedras por onde o carro dos Meyer subia derrapando um
pouco, na lama ocasional e nos dejetos deixados pelos bois que
carroceiros conduziam ao matadouro. Aqui será a Avenida
Brigadeiro Luiz Antonio – pensou Susana. Para ir ao centro,
teremos que cruzar a Avenida Paulista... Como seria essa
Paulista de grandes mansões, uma avenida que ela conhecera
apenas admirando as antigas fotos que muitos estabelecimentos
comerciais da avenida estampavam em suas paredes, como a
Drogasil, aquela em frente ao Edifício Paulicéia.
-- Sim – respondeu Susana à Evelyn – Estou reconhecendo parte do
caminho.
-- Ótimo – disse Evelyn – e percebo que você deve estar
acostumada aos automóveis, sua família certamente deve ter um,
porque você não fez nenhum comentário. Quem nunca andou num
desses, faz muitos comentários – e riu -- Sabe, apesar da carta
de Bilac ao diretor da Light, já existem quase duas centenas de
automóveis circulando por São Paulo.
Susana sorriu. Era famosa a carta que o poeta Olavo Bilac
escrevera, em 1908, reclamando da “invasão” das carruagens
motorizadas que sujavam o ar puro da cidade e ofendiam aos
sensíveis olfatos dos cidadãos paulistanos e que deveriam ser
detidos, antes que se tornassem uma verdadeira praga. Ela até se
lembrava dos termos da carta: “máquina inadequada e indesejável
ao bem-estar do povo paulistano”.
Passaram toda a manhã na costureira de Evelyn, cujo atelier
ficava no ponto mais chique da cidade, o chamado “triângulo”,
formado pelo caminho da três principais ruas do, no tempo em que
Susana nascera, chamado Centro Histórico de São Paulo: as ruas
Direita, São Bento e XV de Novembro. No atelier, tomadas as
medidas de Susana, Evelyn encomendou três trajes de meia
estação: um vestido elegante com casado de albene, um tailleur
de casimira com duas blusas de seda e um vestido de festa.
Susana protestava, não poderia aceitar...
-- Depois, quando você descobrir quem é de fato, você pode me
dar algum belo presente também – retrucou Evelyn – Mas por
enquanto, eu vou cuidar para que você se apresente à altura de
uma moça com a sua educação e cultura. E é melhor aderir também
ao espartilho. Notei que você não está usando nenhum, embora
tenha o corpo muito firme. Mas ficamos muito mais elegantes com
eles...
Madame Celina, a costureira que dirigia o atelier, olhou para
Susana, espantada:
-- A senhorita certamente é da família Fomm de Vasconcellos.
Parece-se muito com a jovem Carmen, aquela que escreve em
jornal. Ela também se recusa a usar espartilhos... Oh,
desculpem-me, não pretendi ser indiscreta...
-- Sim, já me disseram isso, que sou parecida com ela, não sobre
os espartilhos – retrucou Susana, rindo.
-- Escute – disse Evelyn, enquanto escolhia os modelos de roupas
íntimas, anáguas e combinações para Susana – Vamos até a casa de
Úrsula. Ela pode nos levar até essa Srta. Carmen que eu,
infelizmente, não conheci ainda e, se vocês forem da mesma
família...
-- Não sei se estou preparada para isso – disse Susana.
Perdoe-me, Evelyn, eu não poderia ser mais afortunada do estou
sendo ao encontrar você e seu irmão nesse momento tão difícil
para mim... Tenho certeza que, aos poucos, minha memória voltará
e eu poderei retribuir...
-- Nem pense nisso! – exclamou Evelyn – Estou plenamente
convicta de que, se fosse o contrário, você faria o mesmo por
mim. Só falta agora escolher alguns pares de sapatos para você
e, depois, iremos almoçar nessa absoluta novidade trazida pelos
imigrantes italianos... Conhece? Uma cantina, aberta no ano
passado, a Cantina Capuano. Já comi lá, é uma comida diferente e
muito saborosa! Mas eles só abrem para almoço. Tomaremos chá na
Confeitaria Leão mais tarde, mas antes vamos passar pela Casa
Eclética, a melhor livraria de São Paulo, ali na Rua São Bento.
Não é possível que todos esses lugares tão tradicionais não
acabem por lhe despertar alguma lembrança... Lembranças são como
novelos de lã de tricô, puxa-se uma ponta e o resto vem – e
gargalhou, deliciada com sua própria comparação.
Susana teve que rir também. Jamais conhecera, em toda a sua
vida, na época agitada e individualista em que nascera, ninguém
tão alegre assim.
Capítulo 3 – Magia de Mulher
Na livraria, Susana surpreendeu-se com o interesse de Evelyn
pelas questões esotéricas. O livreiro – que importava
regularmente para Evelyn as mais respeitáveis obras lançadas
fora do Brasil – dissera às moças que tinha chegado, de navio,
dos Estados Unidos um livro lançado no mês anterior naquele
país: “Conceito Rosacruz do Cosmos”, de Max Heindel. É claro que
não havia tradução em língua portuguesa ainda, mas o livreiro
sabia que Evelyn era fluente em inglês e alemão. Saíram da
livraria carregando essa obra e mais uma, de Emmeline Pankhurst,
sufragista inglesa famosa em todo o mundo, “The Importance of
the Vote”, publicada na Inglaterra em 1908.
Susana havia se interessado pelas escolas esotéricas, mormente a
Ordem Rosacruz, na juventude. Também alinhara seu pensamento às
feministas brasileiras que se manifestavam nas redes sociais a
partir da segunda década dos anos 2000 e fôra, por isso, estudar
a história das mulheres, desde aquela que era considerada a
primeira feminista, Mary Wollstonecraft no século XVIII, até as
brasileiras, como Bertha Lutz e Eva Blay, que brilharam em
congressos internacionais de mulheres no século XX.
Depois de ter lido, no original, num velho e estragado livro de
bolso de mais de 1000 páginas, que pertencera à Isabel, sua mãe,
“The Mists of Avalon”, finalmente compreendera porque o feminismo
e o esoterismo tinham tanto a ver um com o outro. Ambos
pertenciam, na raiz, ao lado direito do cérebro humano, o lado
onírico, intuitivo e a intuição era, nas mulheres, muito maior
do que nos homens. Agora, para sua absoluta surpresa, estava em
1910 ao lado de uma brasileira, de origem austríaca, esotérica e
feminista. Ah! Que maravilha era a vida! De fato, uma aventura.
Por causa de seus interesses em comum, Evelyn e Susana passaram
horas, numa mesa da Confeitaria Leão, naquela tarde, conversando
sobre feminismo e esoterismo.
-- Só um ponto eu não compreendo – dizia Evelyn – como você
relaciona o feminismo, que para mim sempre foi algo extremamente
material, político, racional mesmo, com o esoterismo e a
intuição feminina?
-- As feministas – explicou Susana – buscavam uma igualdade
social na diferença. Homens e mulheres são naturalmente
diferentes (embora as feministas dos anos 2000 – acrescentou ela
em pensamento – queiram ser iguais aos homens no mundo
corporativo e queiram que eles sejam iguais a elas na vida
sexual). Mas foi o advento do cristianismo, do catolicismo em
primeiro lugar, que colocou a mulher um passo atrás dos homens.
Tornou a mulher o tal “sexo frágil”, cujas únicas competências
eram procriar e servir aos homens, na cama e na mesa. Veja, há
apenas 20 anos em 1889, Emmeline Pankhurst fundou sua Liga para
o Progresso Feminino, na Inglaterra. Nos Estados Unidos,
feministas históricas como Elizabeth Stanton davam seus
primeiros passos em termos de visibilidade, apenas, da luta
sufragista, pelo direito de votar, de opinar nos rumos da
política e da sociedade. As mulheres foram, por mais de dois
milênios, consideradas incapazes. A nossa legislação no Brasil e
hoje, em pleno século XX, ainda nos compara aos silvícolas e às
crianças...
-- Sim, compreendo – interrompeu Evelyn – Mas...
-- O que tem a ver o feminismo com o esoterismo e a intuição
feminina, é isso que você quer saber, desculpe, eu sempre me
entusiasmo quando falo na luta das mulheres. Veja bem, Evelyn,
as mulheres desse século estão brigando para conseguirem o que
já tiveram antes, antes dos cristãos classificarem povos
culturalmente diferentes deles como “bárbaros”, antes de
começarem a queimar, vivas, nas fogueiras da Inquisição, as
mulheres sábias e poderosas que, em suas respectivas sociedades,
desmentiam completamente o mito dessa mulher moldada pelo
cristianismo: frágil, dependente, incapaz. As celtas, por
exemplo, ocupavam altas posições em suas sociedades e eram
respeitadas politicamente, tinham poder de fato. Mas, além de
poder, elas tinham conhecimentos que hoje seriam considerados
mágicos, ou feitiçarias, e eram apenas fruto de sua capacidade
intuitiva e de conhecimento empírico. Por isso, eu creio que,
quando as mulheres de hoje lutam para conseguir um lugar de
igualdade social e política com os homens, elas estão lutando
para recuperar as suas capacidades mágicas e esotéricas, que,
num passado distante, lhes conferia o poder.
-- Mas que capacidades seriam essas, afinal? – perguntou Evelyn.
-- A visão, coisa que Santa Clara, companheira de São Francisco,
também tinha – disse Susana – (e quase deixa escapar que a santa
foi, por isso, eleita pelo Papa Pio XII, a Padroeira da
Televisão... Imagine... Evelyn nem sonharia com televisão em
1910...)— A visão, a capacidade de manipulação de ervas
medicinais para cura e alívio das dores do corpo e doenças em
geral, os segredos do parto, a aplicação da intuição na tomada
de decisões racionais (Coisa que, em 2019, muitas startups estão
usando, acrescentou em pensamento).
-- Você acredita que a luta pela igualdade social das mulheres
desembocará numa retomada desses esquecidos, ou sufocados,
poderes femininos? – perguntou Evelyn.
-- Sim – respondeu Susana – acredito que as mulheres
conquistarão o seu lugar no mundo produtivo e no mundo político,
mas logo depois perceberão que esses mundos não são exatamente o
que elas almejavam, já que foram construídos e estruturados por
valores estritamente masculinos e, então, voltar-se-ão para a
reconquista dos velhos poderes femininos que a religião sufocou.
Eu vi, inclusive, no canteiro que ladeia uma das paredes do seu
Castelo, aquela flor que alguns chamam de beladona, outras, de
trombeta-dos-anjos. Aquela é a flor típica dessas sábias bruxas
que os cristãos eliminaram. Passaram 600 anos queimando
mulheres...
-- Minha amiga, você é mesmo surpreendente. Não se lembra de sua
própria identidade, mas lembra-se tão bem de fatos históricos e
considerações filosóficas! – exclamou Evelyn.
Nesse instante o garçom se aproximou, pediu licença para que o
motorista se aproximasse, pois necessitava falar com sua patroa.
Estava na hora de ir buscar George na fábrica.
-- Mas já? – espantou-se Evelyn – Nossas conversa estava tão
boa! Há momentos em que o tempo parece não passar.
E há outros, pensou Susana, em que nós é que passamos por ele...
...
Saíram do centro, foram à Mooca buscar George e voltaram para a
represa. Em 2019, com o trânsito paulistano, um trajeto desses
poderia levar de 3 a 5 horas. Em 1910, apesar das vias pouco
convidativas para o tráfego dos automóveis e da baixa velocidade
conseguida por estes, levou apenas uma hora e meia. Mas a
conversa – e a magia – com a presença de George no carro, passou
para assuntos mais racionais, mais masculinos, como as
adaptações que ainda estavam sendo feitas no funcionamento da
fábrica dos Meyer, não só operacionais como principalmente
econômicas e financeiras, devido à conquista, no ano anterior,
pela Federação Operária de São Paulo, da jornada de trabalho de
apenas 8 horas.
-- Mas, que eu me lembre – disse Evelyn – e até por influência
do seu amigo Edvard Stretti, que já tinha feito isso em sua
fábrica, papai e você já tinham reduzido essa jornada, muito
antes de serem forçados por Leis.
-- Sim – respondeu George – Nossas tecelagens com suas máquinas
modernas, que trouxemos da Áustria, são mais eficientes e
lucrativas do que a maioria das velhas fábricas que nos fazem
concorrência. Pudemos, sem prejuízo, reduzir para 10 horas a
jornada dos nossos operários (que, aliás, são operárias na sua
maioria, mulheres). Fizemos isso em 1907. Mas não devemos ter
conversas tão maçantes diante da nossa encantadora hóspede. Já
ouviram que São Paulo teve, recentemente, fundado o primeiro
Automóvel Clube do país? Para ver a importância que os
automóveis ainda terão em nossa sociedade.
De volta ao Castelo, foram todos para seus aposentos,
prepararem-se para o jantar. O vestido que Susana usara no dia
anterior, com o qual viera do ano de 2019, estava limpo e
estendido sobre sua cama, mas, na lavanderia, que funcionava
numa edícula mais para perto da praia, entre as árvores (onde,
depois estariam as piscinas, um bar, os vestiários principais –
pensara Susana quando a vira) as empregadas comentavam o
estranho tecido do traje da hóspede, que secara muito
rapidamente e não precisou sequer ser passado a ferro.
Depois do jantar, os dois irmãos e Susana, foram para a bem
iluminada, por gasogênio, sala principal, onde cada um pegou um
livro para ler. Havia muitos, nas estantes sob a escada, mas
eram poucos os exemplares em português e Susana escolheu
Luzia-Homem, do escritor brasileiro Domingos Olímpio, pois lhe
parecera ter muito a ver com a conversa que tivera, horas antes,
com Evelyn.
De repente, é Evelyn quem solta um “Oh!!!” de surpresa e pede
licença à George e Susana para ler um parágrafo da obra que
adquirira antes, Conceito Rosacruz do Cosmos, de Max Heindel. E
exclama, antes de iniciar a leitura: -- Susana, preste atenção.
Parece, em palavras completamente diferentes, o que você estava
falando nesta tarde sobre a diferença do mundo racional dos
homens e do mundo intuitivo das mulheres. Escutem:
“Em nossa civilização, o abismo que se abre entre a mente e o
coração torna-se maior e mais profundo e, enquanto a mente voa
de uma a outra descoberta nos domínios da ciência, o abismo
aprofunda-se e amplia-se ainda mais, ficando o coração cada vez
mais distante. A mente busca com ansiedade e satisfaz-se apenas
com explicações materialmente demonstráveis acerca do homem e
demais seres do mundo fenomenal. O coração sente instintivamente
que algo de maior existe, e anela por aquilo que pressente como
verdade de ordem tão elevada que só pode ser compreendida pela
mente. A alma humana subiria nas asas etéreas da intuição e
banhar-se-ia na eterna fonte de luz espiritual e amor; mas os
modernos pontos de vista científicos cortaram-lhe as asas,
deixando-a acorrentada e silenciosa, atormentada por aspirações
insatisfeitas, tal como o abutre em relação ao fígado de
Prometheus. É necessário que seja assim? Não haverá um terreno
comum onde possam encontrar-se cabeça e coração, a fim de que,
ajudando-se mutuamente, possam tornar-se mais eficientes na
investigação da verdade universal, satisfazendo-se por igual?”
George olhou, surpreso, para as moças, enquanto elas caíam
naquela risada feliz como quem encontra uma confirmação ao seu
próprio ponto de vista. Então explicaram a ele tudo o que haviam
conversado.
-- Não sei – disse ele, ao término das explicações – Parece
difícil ver mulheres, por exemplo, no comando da nossa fábrica
ou mesmo dirigindo automóveis ou qualquer outra atividade
tipicamente masculina.
-- Que tal uma mulher discursando no Parlamento? Uma mulher na
presidência da República? – provocou Susana
-- Depois da regência da Princesa Isabel, já não soa tão
absurdo. Mas é preciso lembrar que a princesa foi educada como
um homem, para reinar, já que Pedro II perdeu seu único filho
varão.
-- Pois então – respondeu Susana – É mesmo uma questão de
educação. Num futuro nem tão distante, meninas e meninos
receberão o mesmo tipo de educação e poderão exercer as
profissões para as quais suas vocações os dirigirem,
independentemente de gênero... – e corrigiu-se – digo,
independente de serem de qualquer um dos sexos.
-- Seria possível? – perguntou George – Mas com as mulheres
atuando no mundo fora do lar, a quem caberá a criação dos
filhos?
-- A ambos, pais e mães, e também às instituições – respondeu
Susana, mas pensando que, de fato, a mudança do papel social das
mulheres, em seu próprio tempo, havia deixado a desejar no
quesito “criação das crianças” e só muito recentemente estavam
sendo preparados adequadamente profissionais, como cuidadores e
recreadores, que pudessem suprir essa lacuna.
O café foi servido e George convidou:
-- Queridas moças, vamos dar uma volta lá fora? A grama está
coalhada de vagalumes, parece um céu na terra e é noite de lua
cheia, estrelas acima de nossas cabeças, um mar delas... Isso é
raro na nossa cidade.
Evelyn, que estava completamente absorta na visão Rosacruz do
Cosmos, respondeu distraída:
-- Vão vocês dois, eu não quero parar a leitura.
Capítulo 4
-
Verde Mar dos Vagalumes
Lá fora, já que era verão, um resto de crepúsculo ainda tingia
de vermelhos as águas da Represa do Guarapiranga. George e
Susana desciam lentamente a rampa de pedras, cercada pelas
árvores que, no dia anterior, para Susana, já não estavam mais
ali, as majestosas árvores da sua infância, no começo dos anos
1990...
-- Venha – disse George dando-lhe a mão – vamos descer pelo meio
da grama, podemos apreciar melhor a dança dos vagalumes.
Jamais, em lugar algum em que estivera, no mundo, Susana tinha
visto uma cena como aquela: milhares de vagalumes, voando baixo
sobre a grama, piscavam, cintilando como estrelas. Era mesmo
como se eles estivessem caminhando no Cosmos. Imediatamente, ela
lembrou-se do sonho que tivera, quando estava na ponte de uma
nave estelar e o infinito era o espetáculo à sua frente. Como
que adivinhando-lhe os pensamentos, George disse:
-- Agora que o sol já se foi de vez, olhe para o céu, senhorita.
Ela já se esquecera de como o firmamento podia ser denso,
coalhado de estrelas. As luzes das cidades normalmente escondiam
isso, mesmo nas cidades menores. Lembrou-se de que vira, em
algum lugar na Internet, uma cidade europeia, pequena, que
fizera com que as luzes das suas ruas fossem colocadas em postes
menos altos do que as próprias pessoas, para não estragar a
beleza do céu.
-- É interessante imaginar que a senhorita não sabe, no momento,
quem é, não consegue se lembrar de nada da sua vida particular,
mas discorre tão bem sobre as questões mundanas – disse George.
Parece também tão segura com relação ao futuro das mulheres na
nossa sociedade...
Susana titubeou antes de falar. No bolso da saia de seu vestido,
seu celular desligado, mas, ela sabia, ainda com carga
suficiente na bateria. Riu para ele:
-- Sua irmã fez uma observação semelhante... E se eu lhe
dissesse que não pertenço a esse tempo, apenas a esse lugar?
-- Desculpe-me. Creio não ter compreendido o que disse.
-- Viajei no tempo – ela afirmou – olhando bem diretamente nos
olhos dele.
Ele riu:
-- A senhorita, já percebi, é uma amante da leitura e certamente
está brincando comigo, baseada em A Máquina do Tempo, de H.G.
Wells. – respondeu ele.
-- Não estou brincando – disse ela, com seriedade. Você é um
especialista em tecidos, não é?
-- Sim, trabalho com eles há anos e anos...
-- Já viu algum como esse, do meu vestido?
-- Com licença – pediu ele – e tocou de leve uma prega do godê
do vestido, esfregando-a entre dois dedos da mão. -- Não –
respondeu – Nunca vi nada igual.
-- É porque ainda não foi inventado – disse ela. Assim com um
telefone que tenho aqui no bolso...
-- Um telefone sem fio? – perguntou ele, espantado, sem saber
bem que tipo de peça ela estava tentando lhe pregar.
-- Muito mais do que isso. Chama-se telefone celular. Com ele
falo com e vejo qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. Mas
evidentemente, só funciona no meu tempo.
Ele riu, um riso debochado:
-- Evidentemente.
-- No entanto, ele não é só isso. Ele também é máquina
fotográfica e faz filmes, na verdade agora se chamam vídeos. Ele
funciona com uma bateria que está apenas com 24% da sua
capacidade e eu preciso de eletricidade para carregá-la. Veja.
E sacou seu Iphone, do bolso.
Ele olhava, espantado.
-- Que espécie de truque é esse? É uma caixinha luminosa...
-- Veja – mostrou ela – aqui estão as minhas últimas fotos. Essa
sou eu, esse aqui é meu sócio, temos um escritório de advocacia
numa travessa da sua querida Avenida Paulista, num prédio na
Alameda Joaquim Eugênio de Lima, que faz esquina com a Paulista.
Esse aqui é o nosso escritório. Essa aqui é a avenida Paulista
como ela é hoje. Vê ali? Sobrou um casarão antigo que não pode,
por lei, ser demolido. Mas tudo hoje são prédios na avenida...
-- Moça – disse ele com ar sério – eu já vi fotografias
coloridas à mão e já vi também caixas luminosas com projeções de
imagens, mas isso que você está me mostrando é bem novo e bem
mais nítido do que tudo o que já vi...
-- Veja – disse ela – isso aqui é um filme, do batizado da minha
sobrinha... está vendo? Estou aqui ao lado dela... Ficou uns
quinze minutos mostrando imagens e mais imagens para ele e
disse: -- Esse aqui é o meu carro. É um Ford Focus, Ford como o
seu, mas 110 anos mais avançado... E agora, veja – ligou a
câmera e fez uma selfie com ele e lhe mostrou. Então ainda acha
que é um truque?
Ele olhou estarrecido... Fotografia colorida e no escuro, com
uma nitidez sem tamanho... Não poderia, de jeito nenhum, ser
alguma espécie de truque. Era técnica. E do futuro!!
-- Você está dizendo que veio de 2019 para cá? Se eu acreditar –
e estou quase acreditando, depois de ver a mim mesmo registrado
nessa pequena máquina mágica... Se eu acreditar, devo supor que
vocês construíram então uma máquina do tempo?
Susana riu:
-- Infelizmente não. Eu sinceramente não sei como vim parar aqui
e nem sei se poderei voltar ao meu tempo. Para ser exata, eu
estava no domingo, 6 de janeiro de 2019 e vim parar – sei porque vi
os jornais quando Evelyn me levou à cidade – no domingo, 10 de janeiro
de 1910...
O luar e os vagalumes compunham uma sinfonia de luz na paisagem,
as estrelas agora diminuídas pela luz da lua que nascera
radiante, cheia.
Lágrimas brotaram nos olhos de Susana, ao imaginar que talvez
não pudesse voltar. Tinha seus pais, seus irmãos, sua vida, as
aulas que ministrava na faculdade São Francisco, seus alunos,
seus clientes, amigos, família... Com voz embargada, ela
continuou:
-- Eu estava aqui, na alameda do Castelo. Eu cresci aqui nesse
Castelo...
-- Você é minha descendente, então? É alguém da nossa família
futura?
Ela balançou a cabeça em negativa:
-- Infelizmente a sua família acabará vendendo essa propriedade.
-- E construirão mais um desses monstros compridos que você me
mostrou, caixas com centenas de janelinhas? – conseguiu ele rir,
zombando.
Susana teve que rir também.
-- Não. O Castelo se transformará numa escola e, por fim, num
clube. O clube será fundado em 1959 e, em 2019, estará meio
decadente, como todos os clubes na cidade, mas ainda vivo. Eu
estava aqui, na tarde de ontem, para mim, em 2019. Como eu
disse, passei minha infância e juventude nesse clube, tínhamos
barcos, havia festas, quadras de esporte, piscinas... era lindo.
Mas, em 1999, minha família mudou-se para a região mais próxima
da Paulista e o clube ficou distante demais da minha casa...
-- Distante como? – espantou-se ele -- São apenas vinte e poucos
quilômetros.
-- Mas com trânsito. As ruas e avenidas são entupidas de carros
e mais carros e todos andam muito devagar. Com esse trânsito, eu
levaria mais de uma hora para vir, nas horas de maior movimento,
quase três horas...
-- Isso é uma insanidade! – exclamou ele. – Você está me dizendo
que todas as vias são tomadas por automóveis e que eles andam
tão devagar por isso?
-- Às vezes nem andam... – riu ela. Mas te explico melhor
depois.
-- Sim, perdão – disse ele – você ia me contar como chegou aqui,
no passado.
-- Pois é. Eu vim ao Castelo depois de ter ficado 20 anos sem
pisar aqui. E estranhei muito essa alameda de árvores. Vê como
ela é maravilhosa, majestosa? São árvores enormes, de copas
frondosas e troncos fortes... Ainda eram assim quando eu deixei
o Castelo. Mas 20 anos depois, em 2019, eram apenas uma
fileirinha de pinheirinhos mirrados...
-- A senhorita sabe que essa rampa de cimento, do portão até a
represa, ladeada por eucaliptos, esse corredor verde e
maravilhoso foi uma sugestão de um amigo do meu pai, Aristotele
Latino Malagola, foi ele quem quem sugeriu a sua criação. Ele
ficaria triste em saber que, um dia, seus eucaliptos nõs estarão
mais aqui -- explicou George.
-- E eu então fiquei tão triste quanto ele ficaria...Senti muito a falta das
minhas árvores. Eu as amava. Desde criança me acostumei a
abraçá-las e nelas medir o comprimento dos meus braços. Cresci
abraçando essas árvores até que, um dia, finalmente minhas duas
mãos quase se encontraram do outro lado... E riu... Estava
pensando que, 20 anos antes, as pessoas que circulavam por aqui
talvez fossem outras, majestosas como o eram as árvores e que,
em 2019, talvez as pessoas fossem assim, almas pequenas,
pinheirinhos tímidos e nada sábios... Pensava que a realidade
refletisse nossos pensamentos quando fui envolvida por uma densa
neblina, que não sei explicar de onde veio e, quando a neblina
se dissipou, as árvores majestosas estavam de volta e você
estava ao meu lado...
Num impulso, ele a abraçou. Estavam sentados num dos bancos de
pedras, exatamente sob uma daquelas árvores.
-- Você é a personagem que criei – disse ele. Venha, vamos subir
até a torre e eu lhe mostrarei como imaginei o mundo exatamente
em 2019, no ano em que você estava. Na verdade, não é muito
diferente desse mundo do qual vi um pouco aí nessa sua
maquininha mágica.
-- No meu celular – riu ela. – Mas poderíamos ver muito mais se
pudéssemos ir até uma tomada elétrica para eu recarregar a
bateria dele.
-- Nós temos um gerador elétrico. Nessa semana os técnicos virão
instalar lâmpadas elétricas nos lustres – afirmou George.
-- E poderão fornecer energia para o meu telefone!
-- Sim -- disse ele. – Mas na fábrica temos energias e
conectores para fios...
-- Tomadas? Buracos na parede para conectar aparelhos movidos à
eletricidade?
-- Isso mesmo. E então você me mostrará mais do seu mundo. Por
enquanto, venha conhecer a heroína que criei na minha máquina de
escrever, que se chama Ana e vive num mundo de grandes invenções
técnicas, com automóveis que voam e caixas enormes de concreto,
cheias de janelas... como alguns prédios que já se pensa em
erguer aqui mesmo, em São Paulo. Os Guinle estão com um projeto
arquitetônico ousado, para construir um prédio de 7 andares, mas
a prefeitura teme que ele não seja estável.
Ela riu:
-- Eu conheço a história, o edifício Guinle é o primeiro
edifício de São Paulo. Terminado em 1913. Depois, vieram muitos
outros. Em 1924, o Sampaio Moreira, na Rua Libero Badaró, foi
considerado o primeiro arranha-céu da cidade, com apenas 12
andares...
-- Apenas? Arranha-céu... que expressão maravilhosa e poética!
-- Depois te conto a história dos prédios de São Paulo. Na
Paulista, por exemplo, o maior deles tem 42 andares!
-- É inacreditável! – disse George – Talvez tudo isso seja
apenas um sonho... Sim, devo estar sonhando.
Impulsivamente, ela lhe deu um beliscão na barriga, por sobre a
camisa.
Pensou que ele fosse rir, mas, em vez disso, George a olhou bem
dentro dos olhos e, ato contínuo, beijou-a, um beijo apaixonado,
cinematográfico, ao qual ela correspondeu, percebendo que estava
desejando isso desde que o vira pela primeira vez:
-- Ana – disse ele – Agora sei que não é sonho e que você não é
apenas um personagem. De alguma maneira, quando comecei a
imaginar o romance que estou escrevendo, eu a estava chamando,
pedindo que você viesse do futuro para me encontrar.
E ali mesmo, sobre a grama, entre a luz dos vagalumes, sob as
estrelas e sob as majestosas árvores, Susana, ou Ana, e George
se amaram.
Capítulo 5 – O Futuro Presente
Susana passou grande parte do dia seguinte a ler o livro de
George. No livro, a descrição de uma grande crise planetária no
ano de 2019. As geleiras dos pólos derretiam, enormes
tempestades se abatiam sobre os cinco continentes. Maremotos.
Terremotos. Incêndios florestais. Tudo, no livro, sem maiores
explicações. Era como se a terra tivesse enlouquecido. Os
animais, expulsos de seus habitat naturais, pelas catástrofes
climáticas, invadiam as cidades e isso acontecia nos cinco
continentes. Eram, no Brasil, jacarés, expulsos pela falta de
água nos rios do Pantanal, aparecendo em quintais; eram, nos
países gelados do Hemisfério Norte, ursos que migravam para os
centros urbanos, por causa do derretimento das geleiras do pólo;
eram bugios e macacos que fugiam das florestas queimadas pelo
intenso calor...
Susana viu, assustada, o quadro de horror que começava, de fato,
no tempo em que ela própria vivia (ou deveria dizer vivera?),
quadro causado pelo Aquecimento Global, coisa que George
desconhecia. No livro – cujo título era “Quando o Homem
Desequilibrou a Terra” – George não poderia mesmo, em 1910,
imaginar que o progresso do século seguinte causasse algo como o
Aquecimento Global, então ele certamente atribuiria todos esses
fenômenos a outra causa.
Dizia ele que o clima da Terra mudara, que havia altas
temperaturas nas capitais europeias, coisa jamais vista, como
40ºC em Paris ou Roma e invernos inéditos nos Estados Unidos e
Canadá, por causa do vento gelado que se formava pelo
desequilíbrio das geleiras. São Paulo, por exemplo, que sempre
fora a Terra da Garoa e do tempo frio mesmo no verão, alcançava
picos de 37º à sombra... e tinha aqueles dias de sol pleno,
coisa raríssima, pela qual, inclusive os paulistanos de 1910
ansiavam grandemente, já que por ali só chovia e garoava, quase
que o ano todo.
Susana lia avidamente, querendo até pular alguns capítulos, para
tentar descobrir a que George atribuiria esses fenômenos,
afinal. Achava incrível que ele tivesse tido essa premonição,
110 anos antes de começarem de fato os efeitos climáticos
severos do Aquecimento Global.
A personagem principal do livro era a Dra. Ana, advogada como a
própria Susana, que liderava um movimento para forçar os
governos da América a instituir uma comissão científica, com
membros de todas as áreas do conhecimento, que se encarregaria
de investigar as causas de todas essas mudanças.
A partir do que 1910 conhecia do progresso científico, George
imaginava automóveis voadores cruzando os céus, telefones com
imagem, aviões e navios gigantescos fazendo rotas regulares de
transporte por todo o globo.
Susana não podia deixar de pensar que George tinha o mesmo tipo
de premonição de Júlio Verne, com seus livros que anteviam
grande parte dos progressos científicos futuros.
Começara a leitura, acomodada num dos bancos de pedra sob o
corredor de árvores, logo após o café da manhã.
Evelyn quisera que Susana a acompanhasse à cidade, onde iria a
uma conferência de mulheres sufragistas, seguida de um almoço
num dos mais conceituados restaurantes da provinciana São Paulo
de então. Susana declinara do convite, pois temia que sua bisavó
– Carmen Fomm de Vasconcellos Expedito – estivesse presente à
reunião. Sabia que, além de intelectual, sua bisavó fôra uma
perspicaz crítica da condição social das mulheres de seu tempo.
Temia esse encontro. Temia não conseguir controlar a emoção,
diante da ilustre antepassada.
Só interrompeu a leitura quando uma das empregadas da casa veio
chamá-la para almoçar e almoçou sozinha na enorme mesa para 12
pessoas. Logo depois do almoço, a garoa gelada substituiu o
morno sol que aparecia entre as nuvens, pela manhã. Com frio,
Susana voltou à sede do Castelo e foi continuar a leitura na
sala de vidros, com vista para o gramado e para a represa.
No fim da tarde, quando o carro da família apontou na entrada do
Castelo, trazendo George e Evelyn, Susana terminara de ler o
manuscrito, no ponto em que George parara de escrever, mas ainda
não sabia, afinal, a que causas ele atribuiria os trágicos
fenômenos que estava descrevendo.
....
-- Você está lembrada, Susana, do que me disse sobre o corredor
das árvores? Você disse que as árvores eram grandiosas enquanto
as pessoas que circulavam pelo corredor eram também grandiosas e
que elas se tornaram mirradas quando as pessoas que passaram a
circular por ali, eram também, de alguma forma, mirradas – disse
George, quando Susana lhe perguntou sobre a causa dos tais
desastres descritos no livro dele.
-- Pois bem – continuou George – eu acredito que a realidade é
moldada por nossos pensamentos, ou melhor, pela somatória de
todos os pensamentos de todos os seres viventes sobre o nosso
planeta. Por isso chamei o livro de “Quando o Homem
Desequilibrou a Terra”. Imaginei que o progresso científico e
técnico alcançado até o ano de 2019 teria tornado os seres
humanos excessivamente racionais, distantes dos segredos da alma
e do coração. Mais ou menos como as palavras daquele autor
Rosacruz que Evelyn nos leu ontem à noite. Então, concentrados
apenas no progresso material, os homens teriam se tornado
extremamente individualistas e cruéis, como o são todos os seres
excessivamente individualistas. Mais ou menos como os psicopatas
descritos pelos psicanalistas, incapazes de empatia, incapazes
de sentir ou de imaginar a dor do próximo. Nessa condição,
haveria muita violência, muito descaso, muito ódio e
incompreensão. Esse ódio moldaria a realidade. Esse ódio
tornaria o planeta desequilibrado e começaria a causar fenômenos
naturais atípicos, coerentes com as almas e os corações
atípicos.
-- Sim – respondeu Susana – isso também, certamente. Mas a
verdade é que, no meu tempo, em 2019, estão começando a ocorrer
todos esses fenômenos que você descreve em seu livro. As
geleiras dos pólos derretendo, os furacões, as tempestades, o
calor excessivo, o frio excessivo..., mas a causa disso tudo é
mais material do que os pensamentos e sentimentos humanos. Agora
me ocorre que isso também entra em conta.
-- Existe um fenômeno natural capaz de causar tais
desequilíbrios? – perguntou ele, não sem um certo ar assustado.
-- Não. Nunca é natural... A real causa – que quase todos
reconhecem no ano de 2019 – é o que se convencionou chamar de
Aquecimento Global. Lembra quando eu te falei dos automóveis, do
trânsito congestionado em todas as cidades do mundo? São Paulo,
por exemplo, terá, em 2019, mais de 12 milhões de habitantes. As
cidades incharam. O mundo tem, no meu tempo, quase 8 bilhões de
pessoas. Para fabricar coisas como o meu telefone celular e
milhares de outros produtos que todos consumimos então, os
veículos, as indústrias, toda a infraestrutura necessária acaba
lançando no ar inúmeros poluentes que resultam num aquecimento
brutal da atmosfera, além da destruição da camada de ozônio.
Isso sem contar o acelerado desmatamento. Áreas enormes, tanto
rurais quanto urbanas, onde destrói-se a vegetação nativa,
diminuindo drasticamente as árvores, as florestas... Tudo isso é
causa do tremendo Aquecimento Global. E o pior é que muitos
negam a existência desse aquecimento, inclusive o presidente da
mais poderosa nação do mundo, os Estados Unidos da América do
Norte. Não veem, ou não querem ver, que os oceanos estão se
enchendo com o derretimento das geleiras dos polos e que várias
cidades litorâneas estão sendo lambidas pelas ondas e pelo
aumento do volume das águas dos mares. No nordeste brasileiro
mesmo, muitas edificações que estavam à beira mar, têm sido
destruídas pelo avanço das ondas.
-- Mas como, não querem ver? Não está evidente? – perguntou
George.
-- Reverter isso causaria enormes danos econômicos – respondeu
Susana. — Os países se unem para lutar contra o Aquecimento
Global, fizeram um pacto de redução da emissão de poluentes do
ar, o Acordo de Paris, mas Donald Trump, ao assumir a
presidência dos Estados Unidos, pulou fora do acordo.
-- Susana, eu ouvi direito? Você disse que São Paulo, terá,
daqui a um século, mais de 12 milhões de habitantes? Como isso
será possível?
-- Essa São Paulo da garoa, que você conhece, desapareceu. São
Paulo é hoje uma cidade tórrida, com verões extremamente quentes
e grandes tempestades que causam enchentes constantes, com um
inverno com poucos dias de frio e clima extremamente seco,
desértico mesmo. Nesses dias de inverno, secos, existe uma
absurda amplitude térmica. De manhã cedo, 9 ou 10 graus C, à
tarde, 28 ou 29. A cidade tornou-se um grande centro de produção
e negócios. Sua população inchou, migrantes e imigrantes
chegaram aqui em busca de melhores oportunidades na vida, de
trabalho, de estudo. Nas próximas décadas, imigrantes italianos,
alemães, japoneses virão aos milhares e formarão colônias,
bairros próprios e muita contribuição cultural legarão à cidade,
inclusive. Na Segunda Guerra Mundial virão os judeus, fugindo
dos nazistas alemães que, sob o comando de um aloprado chamado
Hitler, queriam exterminar todos os judeus e criar uma raça
pura, ariana. Depois, nos anos 1950 e 1960, atraídos pela
expansão imobiliária da cidade, virão os migrantes nordestinos,
em massa, para trabalhar na construção civil. Entre eles, virá
um menino muito pobre que se tornará líder operário e, mais
tarde, presidente do Brasil, o Lula. Ele hoje... ops, quero
dizer em 2019, está preso, acusado de corrupção. Todo esse
chamado “progresso” foi destruindo o cinturão verde que agora
ainda cerca a cidade. São Paulo se impermeabilizou, com milhares
de quilômetros de ruas asfaltadas e com calçadas de concreto,
milhares de arranha-céus... Ocupa hoje uma área de mais de 1.500
quilômetros quadrados...
-- Você vai me enlouquecer, Susana. Eu sempre imaginei que a
minha cidade cresceria, se expandiria..., mas isso que você está
me contando... tudo isso parece uma absoluta insanidade. E essa
história de um alemão querer exterminar judeus para criar uma
raça pura... Eu descendo de alemães, jamais poderia imaginar um
futuro tão vergonhoso para o país dos meus ancestrais...
-- A Alemanha é hoje, quero dizer em 2019, uma das maiores
potências mundiais. Saiu da II Guerra destruída e derrotada. Mas
isso foi em 1945. O povo alemão reergueu-se e ao seu país. É
governada por uma mulher, chamada Ângela Merkel.
-- Uma mulher? Uma mulher à frente do que você chama de uma das
maiores potências mundiais?
-- As mulheres ainda têm, na Terra, um vasto caminho a percorrer
para superar dois milênios de condição social de inferioridade.
No mundo ocidental e também em alguns países do Oriente, como o
Japão, elas chegam sim ao poder e competem, no mercado de
trabalho, com os homens. Estão avançando em todas as carreiras,
todas as profissões, mas ainda são vítimas de discriminação e
violência doméstica e sexual. Tivemos uma mulher presidente no
Brasil, mas ela foi deposta. Elegeu-se pelo prestígio e força
política de Lula – o tal migrante nordestino que chegou à
presidência – mas não tinha articulação política nem competência
para o cargo. Mas, por exemplo, na longa história da monarquia
britânica, além dos 64 anos que a Rainha Vitória esteve no
poder, hoje, em 2019, temos outra monarca, no poder há muito
tempo também, a Rainha Elizabeth II que tem mais de 90 anos de
idade...
-- Você falou em Segunda Guerra Mundial... Portanto, deve ter
havido uma primeira...
-- Sim, de 1914 a 1919, com um número recorde de mortos.
-- Daqui a 4 anos apenas... Meu Deus! E o Brasil? Também estará
nessas guerras?
-- No final da segunda, sim, mas com um contingente de apenas 25
mil homens. Não precisa se preocupar muito, George, seu mundo
não será destruído por essas guerras. O Castelo continuará aqui,
com toda a sua beleza, embora as margens da Guarabitinga já não
terão tantas árvores e sim prédios enormes até a barragem e,
depois, na margem oposta ao Castelo, grandes loteamentos de
casas residenciais e também no entorno do Castelo, muitas
bonitas residências. Quando eu era criança, nos anos 1980, havia
apenas uma residência construída vizinha ao Castelo. Mas agora,
em 2019, são muitas e muitas, formando um condomínio chamado
“Parque Castelo”.
George e Susana haviam começado essa conversa, logo após o
jantar, quando ele foi fumar seu charuto no grande terraço do
segundo andar, que fica exatamente sobre a sala de vidros.
Depois, ele mandou abrir um vinho, dois, três... Passaram toda a
noite conversando sobre a história do século XX, mas Susana
sabia que, por mais que falasse, por mais que tivesse mostrado
centenas de imagens em seu celular, enquanto este ainda tinha um
resto de carga, jamais conseguiria explicar a ele (e, de fato,
nem mesmo a si própria) toda a evolução tecnológica, todo o
avanço e, paradoxalmente, todo o retrocesso social que separavam
1910 de 2019.
Os primeiros raios de sol ainda surpreenderam os dois a
conversar.
George disse:
-- Vá dormir, minha amada – Eu vou me preparar para sair para a
fábrica. Mas não sei se conseguirei simplesmente seguir a rotina
depois de saber tudo o que o futuro nos reserva. E,
sinceramente, passarei todo o dia temendo que, ao voltar ao
Castelo, não a encontre mais. Por favor, não volte para 2019,
não agora, não ainda...
Ela riu:
-- Não faço a mais mínima ideia de como vim parar aqui e também
não sei como voltar. Na verdade, nem mesmo sei se quero
voltar...
Capítulo 6 –
Tempo e Espaço São Ilusões
Quando desceu para o café, George encontrou Evelyn à mesa e ela
perguntou:
-- Onde está a nossa Susana? – e acrescentou com uma risada
maliciosa – Vocês dormiram juntos de novo?
George corou até a raiz dos cabelos, aquela diaba da sua irmã
percebia tudo ao seu redor, por mais que se tentasse esconder
qualquer coisa dela.
-- A nossa hóspede pode estar desmemoriada, mas isso não seria
motivo para que eu me aproveitasse...
Evelyn deu uma risada franca e pousou sua mão sobre a dele:
-- Meu querido irmão, não há nenhum problema em se apaixonar.
Vocês dois juntos são o casal mais apaixonado que eu já vi. Fico
feliz que tenham encontrado o amor. E não sou puritana, como
muitas das minhas amigas. Só me preocupa o fato de que talvez
ela já tenha compromissos amorosos na vida que esqueceu e,
quando se lembrar...
George a interrompeu:
-- Ela se lembra muito bem de tudo.
-- Mas que boa notícia! A memória voltou?
-- Na verdade, ela nunca perdeu a memória. Teve que inventar
isso para justificar sua presença aqui, entre nós.
-- Mas como?! – perguntou Evelyn, já indignada por ter sido
vítima de um engodo – Ele mentiu todo o tempo? Por que?
-- Porque, se dissesse a verdade, naquele primeiro momento, nós
a levaríamos para o manicômio mais próximo.
-- Não entendo, George! O que você está dizendo, afinal?
-- Prepare-se, minha irmã. Susana é uma viajante do Tempo. Ela
veio de 2019 para cá.
Evelyn riu:
-- Que espécie de brincadeira é essa? Algum laboratório para o
seu livro?
-- É sério. Eu também não acreditei quando ela me contou. Mas aí
ela tirou do bolso do vestido uma pequena caixinha...
E, assim, George contou tudo à Evelyn, inclusive que ele e
Susana haviam passado aquela noite no terraço, ela lhe contando
muitos dos fatos corridos desde 1910 até 2019.
-- Você é uma Rosacruz – disse George diante da incredulidade
que via nos olhos da irmã – Você sabe que o tempo e o espaço são
apenas ilusões. Susana não sabe como veio parar aqui, estava na
nossa alameda das árvores, no tempo dela, quando uma névoa a
encobriu e, quando esta se dissipou, ela estava aqui, nesse
tempo, e eu, ao seu lado, imaginando que ela fosse a Úrsula, sua
amiga.
-- Mas uma mulher de 2019 em 1910... Tem tudo a ver com o seu
livro.
-- Sim. E ela me confirmou que a Terra sofrerá as mesmas
mudanças que imaginei, mas não porque a mente dos homens criará
essa trágica realidade e sim porque o progresso técnico e a
enorme expansão causarão um fenômeno que será chamado de
Aquecimento Global, que mudará o clima do planeta, causando
grandes problemas ambientais, subindo a temperatura no verão,
descendo no inverno, derretendo as geleiras dos pólos...
-- George, essa mulher é uma impostora! Ela inventou isso
porque, de alguma maneira, alguém lhe contou sobre o livro que
você está escrevendo! Eu vou chamar o Delegado Almeida para
tirá-la da nossa casa!
-- É verdade, minha irmã. Você também acreditaria se visse a tal
maquininha que ela trouxe do futuro. Chama-se telefone celular
e, segundo ela, com ele é possível se comunicar instantaneamente
com qualquer pessoa que tenha um igual, em qualquer lugar da
terra. Esse aparelhinho tem armazenadas centenas de fotografias
e ela me mostrou todas. Ela própria, no futuro, a avenida
Paulista, completamente transformada em um imenso corredor de
edifícios muito mais altos do que esse que os Guinle querem
construir em São Paulo agora. Ela até tirou uma foto de nós dois
e eu estou lá, com ela, guardado no aparelho...
-- Então eu também quero ver isso – disse Evelyn, irritada e
desconfiada.
-- O aparelho funciona com uma espécie de mínimo gerador
elétrico, chamado “bateria” e esta tem duração limitada...
-- Então não está funcionando, é claro, e vocês não podem me
provar nada dessa história insana.
-- Mas ele vai voltar a funcionar. Só precisa ser ligado à
energia elétrica. Eu já vi acumuladores de chumbo e você também,
afinal eles foram inventados há meio século pelo francês Gaston
Plante. Temos um desses na nossa fábrica. Mas o do aparelho de
Susana é menor do que uma caixa de fósforos e o carregador dele
é uma coisa pequena também, com um fio que liga o aparelho a uma
tomada elétrica. Podemos carregá-lo lá na fábrica e você verá
que não estou mentindo. E o vestido? Você viu a fazenda do
vestido dela? Eu fabrico tecidos, já vi todo o tipo de fazendas
com os mais diversos fios, mas nada igual ao do vestido dela.
Nesse momento a governanta da casa veio avisar que o chofer já
estava à espera de George.
-- Mande-o ir até a fábrica dizer ao Mendes que eu não poderei
estar lá hoje – respondeu George e logo emendou – Apenas aguarde
um pouco e mande-o aqui para que eu possa instrui-lo.
-- Como? Você não vai trabalhar hoje? —espantou-se Evelyn.
-- Eu não deveria ter contado, minha irmã. Você ainda não
acredita e temo que, se eu não estiver aqui, você a expulse,
tomando-a mesmo por uma impostora...
-- Bom, se ao menos essa tal maquininha, celular você disse? –
George fez que sim com a cabeça e Evelyn continuou: -- Se ao
menos eu pudesse ver e tocar essa coisa, talvez chegasse a
acreditar... Você não disse que hoje seria um dia decisivo para
o destino da nossa fábrica? Não é hoje a tal reunião com o
exportadores?
-- Sim, você tem razão. Eu tenho que ir. Mas você vai me
prometer que não a tratará mal, quando ela acordar. Você tem que
acreditar nela, Evelyn. É verdade! Ela veio mesmo do futuro.
Passou toda essa noite me contando como será esse século e o
início do próximo. Ela não seria capaz de inventar tudo o que me
descreveu.
-- Bem, talvez ela seja uma tão boa ficcionista quanto você.
Deveria escrever seu livro em coautoria com ela...
-- Evelyn por favor, eu tenho que ir, mas jure por Deus que você
não vai trata-la mal ou expulsa-la daqui... Procure dar um voto
de confiança a ela, depois, quando a tal maquininha, o tal
celular, voltar a funcionar, você acreditará nela, tenho
certeza. Você tem uma mente tão aberta, você estuda os mistérios
do Universo, não é possível que não possa entender que esse véu
que separara os tempos seja um desses mistérios. Foi você mesma
quem disse que os rosacruzes afirmam que o tempo e o espaço são
ilusões!
-- Ainda acredito que seja mais lógico entender que ela não
passa de uma vigarista e esse tal celular, um truque.
-- Evelyn! – exclamou exausto, George – Você está duvidando da
minha palavra?
-- Da sua palavra, não. Mas do seu julgamento. Você se apaixonou
por ela. Nessa condição, é natural que não consiga raciocinar
com clareza.
-- Santo Deus! – explodiu George – Por que, afinal, fui contar
tudo a você? Foi um erro!
-- Pense bem, meu irmão – disse Evelyn amansando a voz – Por que
ela contou a você e não a mim? Afinal, ela passou todo um dia
comigo, na cidade, conversamos muito, eu até já a estava
considerando com uma amiga...
-- Então! – exclamou ele – É isso! Fale com ela, peça a ela que
conte a você o que me contou, veja o vestido dela, você também
conhece bem os tecidos, vai ver que aquilo é feito com uma
técnica que ainda desconhecemos. Olhe para a pele dela, para o
cabelo brilhante... Muito diferente do que vemos nas mulheres do
nosso tempo... Ela me disse que, no tempo dela, há inúmeras
preparações químicas em forma de cremes e sabonetes que
conservam nos corpos humanos muito do viço da juventude. Ela tem
39 anos! E um corpo de 20.
-- Ela mentiu. Deve ter pouco mais de 20. Como você pode saber
que ela tem a idade que diz ter? – exclamou Evelyn – Quanto mais
você fala, mais eu me convenço que você está apenas cego de
paixão, que foi enfeitiçado por essa impostora. Tomei horror
dela.
-- Então eu não posso sair antes que ela acorde. Tenho certeza
que você a expulsará, minha irmã, com a melhor das intenções,
achando que é para o meu bem.
-- Pode ir, George. Essa reunião na fábrica é o mais importante
no momento.
Capítulo 7 – De Táxi
Susana acordou por volta da uma da tarde. Vestiu o elegante
casaco de albene, que Evelyn mandara fazer para ela e que o
chofer trouxera no fim da tarde do dia anterior, sobre o vestido
florido com o qual viajara no tempo.
Quando desceu as escadas, Evelyn estava ainda à mesa do almoço,
mas já tomando café.
-- Perdoe-me por não ter acordado a tempo para vir almoçar com
você. George e eu passamos toda a noite conversando no terraço.
-- Sim, eu sei – disse Evelyn com um tom de voz tão gelado que
fez Susana estremecer... Algo aconteceu, pensou ela e Evelyn
continuou: -- George me contou que você descreveu para ele muito
do que acontecerá no futuro.
-- Ah... – Disse Susana – Então você sabe e, pelo seu tom de
voz, percebo que não acredita em mim.
-- Oh, mas eu acredito – respondeu Evelyn, com ironia – Acredito
em você. Acredito que seja uma aventureira, uma impostora, que,
sabendo que George escrevia um livro que se passa em 2019,
forjou toda essa história para conquistá-lo e, com ele, nossa
fortuna e nossa posição. Eu não quero saber quem você é, se é
uma criada, uma operária, uma professorazinha de bairro. Que
você tem estudo, isso é inegável. Mas é inegável também que todo
o estudo do mundo não mudou o seu caráter. Você não presta,
mocinha. E vai sair daqui da minha casa imediatamente. Nossa
governanta já está descendo com a sua bolsa esquisita e só isso
e a roupa que está vestindo que você vai levar daqui. Há um
chofer de táxi esperando por você logo aí fora. Diga a ela para
onde quer ir e ele a levará. O serviço será pago, depois, por
nós. Estou pagando, como você pode notar, para me livrar da sua
vigarice.
Susana estava pálida. Nesse instante, Matilde, a governanta,
entregou-lhe sua bolsa e disse, com voz gélida:
-- Acompanhe-me, por gentileza, Senhorita Susana.
-- Não!! Espere!! – quase gritou Susana – O que George lhe
contou é verdade e, por isso, não tenho para onde ir...
Evelyn levantou-se e saiu da mesa, dando às costas à Susana que
não teve alternativa senão seguir a governanta e entrar no táxi.
-- Para onde devo levá-la, senhorita?
-- Para a Mooca, à fábrica dos Meyer.
-- A senhora Evelyn me disse para levá-la onde quiser ir, menos
à fábrica da família dela. Não posso desobedecê-la.
-- Mas eu não tenho para onde ir! – exclamou Susana – Eu perdi a
memória, não sei quem sou, onde moro, não tenho dinheiro, nem
documentos... Para onde iria?
O chofer sentiu a sinceridade no tom desesperado de Susana.
-- Olhe, moça, se perdeu a memória talvez seja melhor eu levá-la
para as irmãs da Congregação Santa Marianita. Elas dedicam sua
vida aos desamparados e aos doentes. Há quatro anos passados
fundaram, com o Dr. Waldo Song, um hospital e uma capela num
grande terreno bem no começo da Avenida Paulista. Eu a levo para
lá, a moça conta sua história e certamente elas a ajudarão, lhe
darão abrigo e, quem sabe, até os médicos de lá possam ajudá-la
a recuperar sua memória. Pelo jeito da moça falar, vestir-se,
logo se vê que é uma dama. As irmãs recebem auxilio financeiro
das grandes famílias aqui de São Paulo. Certamente a moça deve
pertencer a uma dessas famílias... Elas a ajudarão.
Assim, o chofer conduziu Susana até a Avenida Paulista, entrou
pelo vasto portão e conduziu Susana até um balcão, onde um
freira escrevia alguma coisa num grande livro. Explicada a
situação, o chofer se despediu e Susana foi conduzida à madre
superiora da Congregação que escutou a versão da história da
perda de memória e da expulsão de Susana do Castelo, por Evelyn,
expulsão essa que Susana atribuiu aos ciúmes de Evelyn por seu
flerte com George.
-- Muito me admira que um membro da honrada família Meyer a
tenha deixado desamparada!
-- A madre conhece os Meyer?
-- Por sua reputação. Augusta Waltman Meyer é uma mulher muito
generosa, faz muita caridade, é católica... Como permitiu que a
filha a expulsasse?
-- No Castelo, atualmente, estão apenas George e Evelyn. Os pais
deles estão voltando da Europa, estão no navio.
-- E George?
-- Ele nunca me expulsaria. Está na fábrica a essa hora,
trabalhando. Eu pedi ao chofer do táxi que me levasse até ele,
mas Evelyn já o tinha alertado para não fazer isso.
-- Bem, teremos que descobrir quem é você, minha filha. Mesmo
que você não se lembre de nada, acolhida no seio de sua família,
certamente sua memória voltará, ainda que aos pouquinhos.
Enquanto não encontramos sua família, vou pedir ao próprio Dr.
Waldo que examine você, vamos ver se está tudo bem com a sua
saúde.
Não demorou muito para que, por todas as mansões da Avenida
Paulista, circulasse a notícia de que as irmãs Marianitas
abrigavam em seu convento um jovem muito linda, muito bem
vestida e muito culta, mas completamente esquecida de seu
passado e de sua origem.
Os criados das mansões se encarregaram de espalhar a notícia
pelos bairros mais pobres e outros criados, de famílias
abastadas, comentaram entre si e com seus patrões. Logo as
autoridades policiais também estavam informadas, mas família
alguma dera queixa de alguém desaparecido. Também não demorou
muito para que todos os transeuntes da avenida, começassem, ao
passar em frente ao hospital das freiras, a olhar lá para
dentro, na esperança de avistar a tal moça.
Susana, em troca do abrigo, ofereceu às freiras os seus
serviços. Ela poderia ensinar às crianças da creche que a
congregação mantinha, poderia auxiliar a cuidar dos doentes do
hospital, poderia auxiliar até na limpeza. No entanto, a madre
superiora julgava que uma moça do nível de Susana não poderia
fazer os trabalhos mais humildes e a colocou no escritório do
hospital como auxiliar de serviços gerais. Agora, ela tinha onde
morar, tinha um ordenado modesto e um trabalho. Poderia se
manter, poderia até começar uma outra vida, uma nova vida.
Porque, de alguma maneira, sabia que não conseguiria voltar para
o seu tempo, a menos que conseguisse estar novamente na alameda
das árvores, no Castelo.
...
Na tarde em que Evelyn expulsou Susana do Castelo, George
fechara um grande negócio de exportação de algodão que exigiria
uma expansão imediata dos negócios de sua família. Chegou
radiante à casa, querendo contar à irmã e à namorada o seu
sucesso. Sua alegria, no entanto, transformou-se em cinzas que
lhe amargaram a boca, quando soube que Susana partira, de táxi,
pouco depois do almoço e que Evelyn, por sua vez, fôra resolver
algumas questões que exigiram sua presença na casa de praia que
a família Meyer mantinha na cidade de São Vicente, às margens da
baía.
Em vão, George interrogou os empregados, mas eles pouco sabiam.
-- Minha irmã a expulsou não foi assim? – perguntou à
governanta.
-- Não sei de nada, senhor George. Sei apenas que chegou um táxi
à porta do Castelo e a senhorita Susana foi-se embora dentro
dele, levando apenas a bolsa e a roupa do corpo. Talvez, senhor,
ele tenha afinal recuperado a memória.
Os dias que se seguiram foram de grande angústia para George que
se sentia de mãos atadas. Teria ela achado uma maneira de voltar
ao seu tempo? Mas não seria num táxi... Talvez tenha descoberto
algum lugar onde houvesse alguma passagem para outras épocas...,
Mas por que teria fugido, sem sequer se despedir? Não...—pensava
George – Evelyn a expulsou, estou certo disso e obrigou os
criados a nada me dizerem, ou talvez eles mesmos nem saibam o
que houve... Ele queria descer a Serra do Mar para ir exigir de
sua irmã uma explicação. Mas como abandonar a fábrica naquele
momento, um momento crucial, de expansão, com muitíssimas
providências a tomar? Ir à São Vicente lhe tomaria todo um dia,
um dia que ele não tinha...
Mil coisas lhe passavam pela cabeça e pelo coração. Pensou em
colocar um anuncio nos jornais..., Mas o que diria? Como a
encontraria? Ir à delegacia de polícia, pedir ajuda, denunciar
um desaparecimento? Também não funcionaria. Até que, passando
por uma livraria, no centro da cidade, viu exposto um livro
policial “As Aventuras do Detetive Dick Peter” ... Era isso! Um
detetive, um investigador particular! Mas será que existia
alguém assim em São Paulo? George sabia que em 1850, em Chicago.
Allan Pinkerton, fôra o primeiro detetive particular do mundo,
que fundara a agência de detetives que levava seu nome..., Mas
existiria alguém assim aqui no Brasil? O amigo de seu pai, o
chefe de polícia aposentado, Dr. Almeida, acabou lhe contando a
história de Joaquim Ganância, o homem que se tornara, no final
do século XIX, detetive, para investigar o rapto de seu próprio
filho, insatisfeito com o trabalho policial. A secretária de
George conseguiu localizar o homem pela lista da companhia
telefônica. Foi uma sorte, porque, dos 239 mil habitantes da
cidade, só cerca de 4 mil possuíam uma linha e um aparelho
telefônico.
Ganância cobrou uma pequena fortuna pelo serviço, mas concordou
em procurar por Susana. Perguntando aqui e ali no entorno do
Castelo, descobriu que o chofer que a levara era o mesmo que
sempre atendia à família Meyer. Interrogado, o chofer disse que
se lembrava sim da moça e que a deixara na Praça da Sé. Mas
Ganância, que era treinado em ler a expressão corporal dos
indivíduos, soube que ele estava mentindo porque ele olhara, ao
responder, para os próprios pés.
-- O senhor está mentindo – disse o detetive.
-- Olhe – começou o chofer – eu tenho 5 filhos para criar e a
família Meyer é a maior fatia do que eu ganho num mês. Jurei
fidelidade a eles.
-- Mas o senhor admite que não deixou a moça na Praça da Sé.
Onde a deixou então?
-- Eu já lhe disse – retrucou o chofer – não vou comprometer a
família que praticamente sustenta a minha própria família.
-- Fui contratado pelo sr. George Meyer para descobrir o
paradeiro dessa moça. O senhor também serve a ele, não é assim?
O que acha que ele fará quando eu disser que o senhor não quis
me dar a informação correta?
-- Moço, o senhor está tornando a minha vida muito difícil. Isso
é uma briga de irmãos. Se eu agradar Sr. George, desagradarei a
Srta. Evelyn...
-- Foi a Evelyn que contratou seus serviços naquele dia?
-- Não vou responder mais nada! – disse o chofer, irritado.
-- O senhor já se comprometeu, vai acabar ficando desmoralizado
com os dois irmãos. Se eu fosse o senhor, ficaria do lado de
George, afinal ele é o homem nesse caso. Evelyn é apenas uma
mulher. A palavra dela vale menos.
-- Está bem – suspirou o chofer—eu deixei a moça na avenida
Paulista.
-- Mas onde, na Avenida Paulista?
-- Na calçada, ora bolas!
-- Em que ponto da calçada?
-- Ah... eu não sei mais! Moço, eu levo e trago muita gente
todos os dias, para a Paulista e outros lugares. Não posso me
lembrar de cada detalhe!
-- Muito bem, -- disse o detetive – eu vou descobrir. Mas, se
estiver mentindo, pode dizer adeus aos serviços à família Meyer.
-- Eu a deixei na Avenida Paulista! – esbravejou o chofer.
...
-- Esse será o dinheiro mais fácil que ganhei na vida – comentou
o detetive, com um amigo, no bar – Na Paulista, todos sabiam a
história da moça desmemoriada que foi acolhida pela freiras do
Santa Marianita. Amanhã logo cedo estarei lá com o Sr. George.
Mas quando George chegou, radiante, ao Santa Marianita ficou
sabendo que Susana não estava mais lá. Fôra encaminhada, a
pedido do Dr. Waldo, para um tratamento psiquiátrico, a fim de
recuperar a memória.
Capítulo 8 – A Loucura
Quando o Dr. Waldo falou em levá-la para um moderno tratamento
psiquiátrico, a fim de restaurar-lhe a memória, Susana não sabia
o que fazer. Primeiro disse que não seria necessário, mentiu que
a memória lhe estava voltando aos poucos, recordava-se de alguns
momentos com sua família, algumas imagens que lhe pareciam
familiares, vinham-lhe sempre à mente e que ela acreditava que,
em breve, poderia recordar-se de tudo.
-- Mais um motivo para fazer o tratamento, Susana! – disse ele,
entusiasmado. O Dr. Francisco já conseguiu inúmeros sucessos com
muitos pacientes através desse tratamento.
Susana não teve outra saída senão concordar. Se contasse a
verdade aí sim o prestigiado doutor a levaria correndo a um
manicômio.
Quando, porém, sentada ao lado do médico, no carro que o chofer
dele dirigia, percebeu que estavam saindo da cidade, um arrepio
de horror e medo passou-lhe pela espinha.
-- Quem é mesmo esse Dr. Francisco que estamos indo ver? –
perguntou ela ao médico.
-- É o mais importante psiquiatra de São Paulo, Dr. Francisco
Franco da Rocha.
Susana pensou em saltar do carro. Sabia agora para onde estava
sendo levada, o Manicômio do Juqueri, o famoso e desumano, por
décadas, hospital psiquiátrico que, ela sabia, nada mais fôra do
que um depósito de loucos. Susana conhecia a história. Fôra no
final do século XIX que Franco da Rocha (que mais tarde daria
nome ao hospital) encomendara ao famoso arquiteto Ramos de
Azevedo a construção da Colônia Agrícola de Juqueri, onde toda e
qualquer pessoa indesejável pelas famílias ou pela sociedade,
tivesse ela ou não uma patologia mental, era internada. Um vez
lá, dificilmente se saía. Se entrasse são, sairia louco, pelas
experiências com as incipientes drogas, pela convivência com
insanos, pelos maus tratos, pelos eletrochoques. Susana
defendera, no início da carreira, uma mulher que matara o
ex-marido que a internara numa clínica psiquiátrica para
livrar-se dela. Mas isso fôra numa clínica moderna, não num
depósito de loucos como o Juqueri. Mesmo assim, quando essa
mulher saiu de lá, a primeira coisa que fez foi comprar um
revólver e descarregá-lo no marido. Susana conseguira apenas que
ela retornasse para a clínica, alegando problemas mentais. Fôra
nesse processo que ela estudara a história dos manicômios no
Brasil e sabia muito bem para que espécie de inferno estava
sendo levada.
Quase entrou em pânico. Mas uma esperança brotou-lhe na alma.
Ela conhecia o Dr. Waldo; naquela semana que passara trabalhando
no hospital, o vira clinicando, atendendo as pessoas,
conversando com familiares de pacientes. Ele era, sem dúvida, um
homem de boa índole, de bom coração. Não a internaria num
manicômio, claro que não. Perguntou:
-- O Dr. Francisco tem seu consultório fora da cidade?
-- Sim. Ele atende seus pacientes dentro do Asilo de Alienados
do Juqueri.
-- Ai, doutor – disse ela com franqueza – o senhor não vai me
internar num manicômio apenas porque perdi a memória, não é?
O médico deu um tapinha amigável na mão dela, sobre o assento do
carro:
-- Claro que não, Susana. Você ficará lá apenas os dias
necessários para completar o ciclo do tratamento.
-- O senhor tem coragem de me deixar lá, no meio dos loucos? Eu
tenho medo.
-- Não há nada a temer – respondeu ele – Você ficará na ala dos
pacientes sem gravidade.
Mas, quando entraram no pavilhão onde Dr. Franco da Rocha
atendia, Susana estremeceu de pavor. Podia ver, pela janela da
sala de espera do consultório, o pátio lá fora, com muitas
mulheres, algumas deitadas, outros sentadas, todas no chão de
terra batida, algumas com o olhar perdido, outras mergulhadas em
evidente delírio, alucinadas.
O Dr. Waldo despediu-se dela:
-- Não precisa se assustar. Você está nas melhores mãos nas
quais poderia estar.
Sentou-se num banco de pedra, na antessala, tentando ignorar a
cena que a janela mostrava, mas ouvia os gritos de dor, de
pavor, as risadas histéricas...
Finalmente a porta do consultório se abriu e uma enfermeira
muito gorda a pegou pelo braço: -- Vamos entrar.
-- Posso caminhar sozinha – protestou Susana – diante da
brutalidade que sentiu no gesto da enfermeira.
-- Mocinha, aqui ninguém pode nada, a não ser o que eu quiser
que possa.
Susana imaginava que conversaria com o médico. Mas este mal
levantou a cabeça ao perguntar: -- A senhora é a moça sem
memória, indicação do Dr. Waldo, do Marianitas?
-- Sim – respondeu Susana.
O médico ergueu a cabeça e em vez de olhar para ela, olhou para
a enfermeira:
-- Muito bem, Maria, você sabe o que fazer.
Susana foi levada a um aposento muito úmido, com as paredes
mofadas e teve suas roupas praticamente arrancadas pela
enfermeira. Queria gritar. Queria esmurrar a enfermeira, mas
sabia que isso seria pior para ela. Se reagisse, seria realmente
tratada como louca e teria o mesmo destino daquelas infelizes
jogadas no pátio, sujas, descabeladas, algumas até feridas, as
moscas pousando nas chagas. A enfermeira a prendeu contra a
parede, pelos pulsos e pelos tornozelos, com cintas feitas de
couro que deixavam algum espaço para que ela se movesse. Foi
então que viu as grossas mangueiras penduradas na parede oposta.
A enfermeira chamou alguém pelo vão da porta: -- Pode vir, a
franga já está no espeto!
Um homem entrou e ficou observando, encostado à porta que a
enfermeira fechara. Então Susana viu, com terror, que a
enfermeira tirava do suporte uma daquelas mangueiras e, de
repente, Susana sentiu uma dor descomunal na altura do peito, o
feroz e grosso jato d’água a empurrava contra a parede e ela
escorregou. Aí já não podia mais dizer qual parte do corpo doía.
Tentou se levantar do chão, mas a enfermeira dirigia o jato para
as suas pernas e ia subindo. A água entrava por todos os
orifícios do seu corpo, pela vagina, pelo ânus, pelos ouvidos,
pela boca e até pelos olhos. No meio do martírio conseguiu ver
que o homem, encostado à porta, claramente se masturbava. Tinha
prazer no sofrimento dela! Depois de uma eternidade, sentiu que
a erguiam. Percebeu que tinha urinado e evacuado, a sujeira
escorrendo por um ralo horizontal, no chão junto à parede
imunda. A enfermeira a empurrou, dizendo:
-- Já tomou o banho, agora vamos pro barbeiro.
Chorando, Susana viu seus lindos cachos caírem no chão, o cabelo
quase raspado, cortado rente ao crânio. Vestiram nela um
daqueles uniformes, iguais aos das moças do pátio, a sentaram
numa cadeira, amarram-na com cintas de couro e colocaram uma
espécie de eletrodos em seu crânio. O choque percorreu-lhe o
corpo numa dor insuportável e então ela não viu mais nada.
Acordou no pátio, junto às loucas. Todo o seu corpo doía, como
se tivessem lhe triturado os ossos. Os lábios estavam feridos e
ela pensou: Não. Isso não pode ser verdade. Eu devo estar
sonhando..., Mas sabia que não estava. Preciso manter a calma.
Se eu surtar, nunca conseguirei sair daqui. Não vão me abandonar
aqui. O Dr. Waldo certamente virá me visitar e eu direi a
ele..., Mas se não vier? Bem, George deve estar me procurando...
E se não estiver? E se Evelyn tivesse dito que ela simplesmente
se esvanecera no ar, voltando pro seu próprio tempo? E as
freiras, tão gentis e simpáticas, como podiam permitir que a
torturassem assim?
Estava pensando em tudo isso, quase entrando em desespero,
quando ouviu a voz de George, aos gritos, exigindo que o
levassem “até sua irmã” ... Susana quase riu, teria rido, se não
estivesse tão destruída. O diabo do homem sabia que só mesmo
dizendo que ela era da família é que conseguiria tirá-la dali. E
isso porque ele era rico e poderoso. Se não fosse, certamente
nem dizendo isso conseguiria.
Mais uma eternidade, em alguns minutos, se passou até que ele
viesse até ela, a abraçasse, erguesse e dissesse: -- Vamos
embora daqui...
-- O senhor não pode levá-la dessa maneira – tentou esbravejar a
enfermeira gorda quando viu Susana, amparada pelos braços de
George, entrar na antessala do consultório do Dr. Francisco.
George respondeu:
-- Posso e vou, imediatamente. E vocês se deem por felizes por
eu não ir aos jornais denunciar esses maus tratos sofridos por
minha pobre irmãzinha...
-- Nós estamos trabalhando – disse a enfermeira com arrogância –
com as mais modernas técnicas de cura psiquiátrica, técnicas que
visam, através do choque tanto elétrico quando físico, trazer de
volta a preciosa memória da sua irmã.
Mas George já saía pela porta e, auxiliado pelo chofer, Otto,
acomodava Susana no banco de trás do Ford, quase deitada e tendo
o caríssimo paletó de George por travesseiro. Ele sentou-se no
banco da frente e ordenou: -- Vamos para casa!
Sentado de lado no banco da frente, esticou o braço e segurava a
mão de Susana. Ela desandou a chorar e chorou por quase uma
hora. Mas, quando percebeu que já estavam saindo novamente da
cidade, rumo ao sul, disse com voz fraca:
-- O celular... ficou lá... no hospital da Marianitas. Eu o
escondi num fundo falso que fiz na gaveta da escrivaninha onde
eu trabalhava.
O chofer fez meia volta, à mando de George. O sol já se punha
quando o carro entrou pelos portões do hospital, na Avenida
Paulista. George passou pela grande porta do hospital, com
fúria, derrubando com um empurrão um porteiro que tentou
detê-lo. Abriu com violência a porta do escritório central, onde
uma freira, que escrevia, ergueu-se assustada:
-- O que é isso? Quem é o senhor?
-- Qual é a mesa de Susana? – perguntou ele.
-- Mas... o que significa isso? – perguntou a freira, assustada.
-- Qual é a mesa de Susana? – voltou a perguntar, dessa vez com
um grito.
A freira apontou para uma escrivaninha que, por sorte, tinha uma
única gaveta. George arrancou o fundo falso, pegou o estojo de
couro onde estava o celular e seu carregador e saiu, não sem
antes dizer:
-- Boa noite, madre!
A noite já ia alta quando o Ford dos Meyer chegou ao Castelo.
Susana, tentando se recompor, já se sentara no banco do carro,
os olhos agora secos. Sabia que demoraria a esquecer aquela
horrível experiência traumática. Sentia muita pena das mulheres
que vira no Juqueri e pensou, que em 2019, apesar do movimento
antimanicomial, na sua opinião, ser de um radicalismo estúpido e
sem fundamento científico, as pessoas com doença mental recebiam
um tratamento muito mais humanizado e eficiente, em muitos
casos. George ajudou-a a descer do carro e viu, horrorizado, os
hematomas que a água deixara no corpo dela:
-- O que é isso, Susana? Essas manchas roxas? Você foi
espancada?
-- Não. Pior que isso, eu acho. Foram poderosos jatos d’água que
me empurravam contra uma parede.
-- Meu Deus! – fez George, horrorizado.
-- As marcas na cabeça – apressou-se ela em explicar – e esse
elegante corte de cabelo foram coisas do eletrochoque.
A governanta veio correndo em direção ao casal e ajudou Susana a
subir as escadas, dizendo solícita: -- Vou mandar ao seu quarto,
imediatamente, uma boa sopa e uma refeição mais leve.
Susana disse, para o escândalo da governanta:
-- E, por gentileza, se for possível um dose dupla de uísque sem
gelo.
George riu:
-- Uma para mim também.
Susana tomou um longo banho de banheira, ajudada por uma das
criadas, vestiu seu traje de dormir e foi encontrar George, que
não arredara o pé do quarto, esperando por ela.
Brindaram com o uísque e ele perguntou:
-- Ainda dói?
-- Não – respondeu ela – só na alma.
-- Mas por que você foi embora, sem nem ao menos esperar que eu
voltasse para se despedir?
Susana ia dizendo: “Evelyn me expulsou” – mas percebeu que, se
dissesse, criaria um abismo entre George e a irmã e entre Evelyn
e ela própria.
-- Percebi que sua irmã não acreditara na minha história e
decidi partir. Disse ao chofer do táxi que não tinha dinheiro,
que perdera a memória e que não sabia para onde ir. Ele me levou
para as freiras, que me acolheram e tentaram encontrar a minha
família que, evidentemente, não existe nesse tempo. Enquanto
isso, em retribuição à moradia, refeições e trajes que elas me
deram, eu me voluntariei para trabalhar e elas me puseram no
escritório. Tinham até estabelecido um ordenado – e aqui ela riu
--, que no meu tempo seria “salário” – para que eu pudesse me
manter com dignidade até a suposta volta da minha memória.
-- E, como, afinal te mandaram para o Juqueri, meu amor? – e
então um pensamento horrível passou-lhe pela cabeça: -- Você não
contou a elas que veio do futuro, contou?
Susana riu:
-- Seria motivo suficiente para me trancarem lá para sempre –
Não foi isso. Quando perceberam que não conseguiam mesmo
encontrar a minha família, o Dr. Waldo sugeriu um tratamento
para me fazer recuperar a memória. E o tal “tratamento” deles
passa por torturas aquáticas e eletrochoques...
-- Meu Deus! – exclamou George – Parece que loucos são esse
médicos e não os seus pacientes.
Susana pensou no sadismo do enfermeiro que se masturbava
enquanto ela, nua, era torturada pelos estúpidos jatos d’água.
Não disse nada. Sabia que se dissesse, George era capaz de ir lá
e matar o sujeito.
-- E como foi que você me encontrou, afinal? – perguntou ela.
-- Contratei um detetive que descobriu que você estava lá no
hospital das freiras de Santa Marianita. Mas, hoje de manhã,
quando cheguei lá, você já não estava. Fôra levada pelo médico
para o Juqueri na tarde anterior.
-- Como? Isso significa que passei a noite de ontem lá?
-- Sim – respondeu ele.
-- Só me lembro do horror do eletrochoque e, em seguida, acordar
no pátio.
-- É melhor não lembrar mais nada – disse ele. Amanhã mando o
chofer buscar sua bolsa e seu vestido que estão lá nas freiras e
tentaremos esquecer todo esse pesadelo.
Capítulo 9 – De Volta ao Castelo
George acordou antes de Susana. Ela dormia profundamente e ele
deu-lhe um beijo no rosto, chamou uma das criadas para ficar
ali, ao lado da cama dela e desceu para o café. Os exportadores
de algodão que se danassem. Ele não deixaria Susana sozinha
naquele dia, depois de tanto sofrimento que ela experimentara.
Estava terminando o café quando Evelyn entrou na sala, as malas
sendo carregadas por Otto e pelo chofer de táxi, aquele mesmo.
-- Salve, minha amada irmã! – saudou-a George – Você saiu da
praia de madrugada para estar aqui a essa hora?
-- Não. Saí ontem à tarde e dormi na cidade, fui jantar em casa
de Úrsula.
George disse:
-- Posso lhe perguntar que fim, afinal, levou a nossa amiga
Susana?
-- Ah... Ela desapareceu. Deve ter voltado para o lugar de onde
veio. – respondeu Evelyn, sentando-se à mesa.
-- Bem, eu sinto decepcioná-la, minha irmã. Mas ela não
desapareceu. Saiu daqui porque você não acreditava nela, foi se
abrigar com as irmãs Marianitas naquele novo hospital da Avenida
Paulista, passou lá mais de uma semana e foi internada, pelo
benemérito fundador do hospital, Dr. Waldo Song, no Asilo de
Alienados do Juqueri. Por sorte, e também por esforço, consegui
tirá-la de lá, ontem. Ela está dormindo em seu quarto agora.
-- Você ainda acredita nela, não é mesmo? – perguntou Evelyn.
-- Claro que acredito, minha irmã. Ela está dizendo a verdade.
Confesso que seria difícil de acreditar se ela não tivesse esse
vestido de estranho tecido e seu telefone celular.
-- Talvez se eu pudesse ver funcionando esse tal desse
celular...
-- Você poderá – disse Susana, que descia as escadas em direção
à mesa do café. – Eu lhe peço perdão, Evelyn, por ter tido que
mentir. Mas você não acreditaria se eu contasse a verdade.
-- Mas contou a ele! – respondeu Evelyn irritada – Por que não a
mim, então? Quem me garante que você não inventou isso para
conquistar o meu
irmão?
-- Aqui está o meu aparelho celular – disse Susana – tirando o
celular do bolso—Você pode ver que ele está apagado, está sem
energia. Mas George me disse que vocês têm um gerador elétrico
na casa. Levem-me até ele. Se eu puder tirar energia dele, se
ele tiver um fio, com dois polos, positivo e negativo, eu
amarrarei a ponta descascada desses fios a esses dois terminais
da tomada do carregador e meu celular voltará a funcionar. Eu
poderei então mostrar a você o que George já viu.
O gerador estava no porão da casa. Subterrânea também era a
adega, com um elegante bar de paredes de lambri, onde Susana
ainda não estivera, em 1910, mas onde seus pais haviam dado uma
festa de aniversário em 1993. Entraram na sala do gerador por
essa adega. O chofer, que entendia um pouco da coisa, conseguiu
dois terminais de energia, um polo positivo e outro negativo.
Estava curioso para saber o que os patrões estavam querendo com
aquilo, mas George simplesmente disse:
-- É o bastante, Otto – Obrigado e pode se retirar.
Assim que foi estabelecida a corrente elétrica para o
carregador, o celular acendeu com o desenhinho da bateria sendo
carregada. Evelyn deu um grito de espanto. Alguns minutos
depois, entrou a tela inicial e Susana foi direto para as fotos.
Lá estava o selfie noturno dela com George, na grama coalhada de
vagalumes. Evelyn olhava estarrecida. Viu as imagens de uma
cidade futurística, coisa que ela jamais sonhara... Por fim,
percebeu que aquilo tudo não poderia simplesmente ser um
truque... Afastou-se e desabou num dos grandes bancos de madeira
do bar da adega. George e Susana sentaram-se, quietos, ao lado
dela.
Por um momento, que pareceu muito mais do que apenas um momento,
havia apenas o silêncio. Por fim, Evelyn deu um profundo suspiro
e disse:
-- Minha cara, se essa pequena máquina for um truque é o truque
mais impressionante que já vi em toda a minha vida. Mais
impressionante ainda que as façanhas do Mestre Houdini.
-- Então, agora você acredita em mim? – perguntou Susana.
-- Não sei – respondeu Evelyn – Ainda pode ser um truque, um
filme aí dentro dessa caixinha e você pode ser qualquer uma, uma
mulher do povo, uma criada, uma operária, que inventou essa
história porque soube que meu irmão estava escrevendo sobre
2019...
-- Evelyn, -- disse Susana -- nós estamos em 1910. Não existem
filmes pequenos o suficiente para caberem num celular. O cinema
ainda nem tem som e você viu que todos os vídeos do meu celular
têm som... Olhe, para ser sincera, nem eu mesma estava
acreditando quando cheguei aqui. Pensei que também estivesse
sendo vítima de uma brincadeira de mau gosto, que estivesse em
um cenário... – aqui interrompeu-se, ia dizendo “cenário
virtual”, mas, se dissesse, teria que se explicar ainda mais do
que já fizera. Continuou: -- Vítima de uma ilusão, enfim. Eu
estava aqui mesmo, em 6 de janeiro de 2019, no Castelo, que, no
meu tempo é um clube. Não vinha aqui desde 1999 e fiquei
assustada com as mudanças. Estava pensando nisso quando uma
nuvem me envolveu e eu vim parar aqui, no tempo de vocês. Não
sei como isso foi possível.
-- Realmente – disse Evelyn – eu também não sei e confesso que
essa sua máquina me impressionou bastante, mas não sei se estou
plenamente convencida. Para mim, é muito mais provável que tudo
isso seja um engodo...
-- Se você ainda não acredita em mim, é melhor que eu me vá,
então.
-- respondeu Susana, desanimada.
-- Vá para onde? – perguntou Evelyn, com certo sarcasmo – De
volta para de onde veio?
-- Não sei se posso voltar ao meu tempo – respondeu Susana – Mas
me reconheço capaz de viver em qualquer tempo. Sou forte,
formada, posso trabalhar e me sustentar, posso dar aulas,
qualquer coisa...
-- Nem pense nisso! – exclamou George – Não quero que você se
vá, nem para o seu tempo, nem para longe dessa casa. Seu lugar é
aqui. Case-se comigo e passará a ter o inquestionável direito de
viver no Castelo.
-- Casar-se com ela? – perguntou Evelyn – Como? Ela não passa de
uma Maria Ninguém, sem família, sem nome. Nossos pais jamais
aprovariam esse casamento!
-- Evelyn, meu nome é Susana de Vasconcellos Expedito Gaetano,
mas alguns dos meus antepassados levam o nome de família de
Carmen Fomm de Vasconcellos, a escritora que sua amiga Úrsula e
também sua própria modista, disseram que se parece demais
comigo, é minha bisavó. Ela se casará com João Antonio Expedito,
mas todos os seus descendentes farão questão de carregar seu
sobrenome de solteira, porque ela ainda será uma figura
importante no mundo literário. Corre, inclusive, na família, a
lenda de que, antes de se casar, Carmen teria tido um tórrido
amor, um amante que morreu muito jovem, antes de eles poderem se
casar, e que o meu bisavô, filho dela, teria sido filho desse
amante e não do Expedito. É uma lenda romântica, mas é uma
lenda. Ah! Espere!! Eu tenho aqui, em alguma pasta, no celular,
uma fotografia dela, em 1915 e também uma fotografia tirada
quando eu me vesti e me penteei exatamente como ela... Veja,
aqui está!
Evelyn fitou longamente as duas fotografias que Susana colocara
numa única tela, em seu celular. Mais um momento interminável se
passou. Outro profundo suspiro e Evelyn disse:
-- Sim. São extremamente parecidas, mas são sem dúvida, duas
mulheres diferentes. Há pequenas diferenças, inclusive no porte,
no olhar...Digamos que seja verdade – começou Evelyn a capitular
-- e digamos que vocês dois estejam mesmo vivendo um amor de
verdade, que queiram se casar e formar sua família, o que
diríamos aos nossos pais? Como explicar a sua presença aqui, de
onde você teria vindo, onde estariam os seus parentes? Em que
escola você teria estudado? Qual seria a sua origem, a sua
formação, a sua posição na nossa sociedade?
George disse impulsivamente:
-- Contaremos a verdade e está acabado.
-- Nossos pais diriam que enlouquecemos. Jamais acreditariam.
Além disso, seria inevitável – continuo Evelyn – que, convivendo
em nosso meio, Susana acabasse encontrando-se com Carmen e como
explicaríamos tal semelhança física? Não, isso não é possível.
George, convencido de que Evelyn recuperara a confiança em
Susana, foi, afinal para a fábrica. As duas mulheres passaram
toda a manhã caminhando por entre as árvores, no bosque do
Castelo, almoçaram juntas e Evelyn, ao ouvir Susana falar sobre
o futuro, foi se convencendo de que tudo era, de fato, verdade.
Uma verdade sem explicação. Mas que explicação tem a vida,
afinal? – perguntava-se ela. No fim da tarde, estavam subindo a
alameda das árvores, quando viram que George chegava.
-- Veio mais cedo para casa, meu irmão? – perguntou Evelyn –
Como foi hoje a sua reunião com os exportadores?
-- Excelente! – respondeu ele, animado, dando um beijo no rosto
de cada uma delas – Vamos certamente conseguir fazer grandes
novos negócios! Papai vai adorar a notícia, quando chegar.
Nesse instante uma névoa baixou sobre eles e, quando se
dissipou, George se viu sozinho, na alameda das árvores. A
governanta aproximou-se dele:
-- Senhor, sua irmã o espera na sala de vidros para o chá. Ela
quer que se junte às senhoritas que lá estão, senhoritas Úrsula
e Carmen.
George, completamente desorientado, sem compreender ainda o que
se passara, mas sabendo que a névoa levara sua amada de volta ao
seu próprio tempo, recompôs-se do susto e dirigiu-se à sala de
vidro onde as moças tagarelavam alegremente. Antes, porém, bateu
os olhos num jornal que Evelyn deixara aberto sobre o sofá da
sala: domingo, 10 de janeiro de 1910... Ele estava de volta a
duas semanas antes, ao dia em que Susana viera para ele. À mesa
estavam Úrsula, Evelyn e Carmen... Carmem, a versão 1910 da sua
amada Susana. Quando seus olhos se encontraram, ele soube que
Carmen e Susana eram a mesma pessoa, a mesma alma e que,
independentemente do tempo e do espaço, aquela mulher era, fôra
e sempre seria, o amor das vidas dele.
Então Evelyn disse:
-- Essa noite eu tive um sonho completamente estranho com uma
mulher que veio do futuro...
....
Quando a névoa se dissipou, Susana percebeu que estava na
alameda das árvores do Castelo, sim, mas que era de novo aquela
alameda de mirradas árvores. Voltei – pensou – estou de novo em
2019... Estou exatamente onde estava antes de partir para 1910.
-- Que dia é hoje? – perguntou ela com ar casual a uma mulher
que passava pela alameda.
-- 6 de janeiro de 2019 – foi a resposta.
Meu Deus... Tudo terá sido um sonho? Uma ilusão? Levou à mão à
testa e percebeu que estava vestindo, sobre o seu vestido godê
de flores, fabricado em 2019, o blazer de albene que Evelyn
mandara fazer especialmente para ela em 1910. Passou a mão pelos
cabelos: estavam compridos, como no dia em que partira para o
passado. Sentiu que alguém lhe tocava de leve no braço. Quando
se voltou lá estava ele, George! Os mesmos olhos azuis, a mesma
barba negra, mas em trajes de 2019, jeans, camisa polo, jaqueta.
-- Você está se sentindo bem? – perguntou ele – Tive a impressão
de que teve uma espécie de vertigem.
-- Sim, estou bem – respondeu ela – Mas você me parece
estranhamente familiar. Seu nome por acaso é George? Eu o
conheço daqui do clube ou de algum outro lugar?
Ele deu uma risada alegre:
-- Pouco provável. É a primeira vez que estou vindo aqui. George
– disse ele tirando do bolso da jaqueta um pequeno livro de
bolso, impresso em papel pardo, claramente tipográfico – foi
esse meu antepassado, autor desse livrinho. Eu sou Leo, Leopoldo
Alfredo, na verdade, nome do meu avô paterno. George, no
entanto, era esse meu bisavô, cujo livro, de autoria dele,
encontrei ontem na biblioteca de meu recém-falecido pai...
-- Oh, meus sentimentos... –disse Susana, estendendo a mão para
o pequeno volume, mas já querendo arrancá-lo das mãos dele.
Ele continuou:
-- É engraçado... Agora percebo que você se parece muito com a
mulher que ilustra a capa do livro. Veja, é um desenho,
parece-se com você.
Susana viu-se retratada na capa do volume: “Quando o Homem
Desequilibrou a Terra” por George Meyer....
--- Eu sempre soube... – continuou ele -- como é mesmo seu nome?
-- Susana.
-- Então, eu sempre soube, Susana, que esse Castelo, à beira da
represa do Guarabitinga, fôra construído por um dos meus
antepassados. Mas nunca me interessei muito por isso, até
encontrar esse livro, escrito pelo meu bisavô. Nunca também
tinha visto ou ouvido falar em nenhum exemplar dele, teve uma
tiragem de apenas 500 cópias, como indicado aqui nessa última
página. Impressionante como esse meu avô anteviu o futuro. Na
primeira década do século passado, ele descreveu nesse livro os
efeitos do nosso atual Aquecimento Global Quando eu li o livro
soube então que esse meu antepassado o escrevera aqui, na torre
do Castelo. Assim, resolvi vir conhecer o clube...
-- Posso ver o livro? – perguntou Susana tentando reprimir a
emoção.
-- Claro – disse ele estendendo-lhe o exemplar. —É muita
coincidência encontrar aqui no Castelo uma moça tão parecida com
essa da capa.
Susana abriu o exemplar e leu a dedicatória: “Para Susana, o
amor dos meus sonhos e para Carmen, grande amor da minha vida.”
-- Percebo que você se emocionou ao se ver retratada nesse livro
tão antigo... – disse Leo.
-- Sim – respondeu ela – é bastante emocionante, talvez seja uma
antepassada minha...
-- Você é sócia do clube? – perguntou ele.
-- Sou.
-- Se não tiver nada melhor para fazer, poderia me ciceronear
por aí e me mostrar tudo?
-- Claro, terei muito prazer. Eu amo esse lugar e, há pouco,
estava apenas lamentando que as árvores dessa alameda não sejam
mais as mesmas árvores da minha infância, velhos e grossos
troncos que talvez estivessem aqui desde o tempo do seu avô...
Saíram caminhando e, mais adiante, Susana tropeçou. Leo a
amparou e suas mãos e seus olhos se encontraram. Daí em diante,
caminharam de mãos dadas.
CONTINUA...
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