Índice:
Capítulo 25 - Revelações
Capítulo
26 - Especulando
Capítulo
27 - Investigando
Capítulo
28 - Um Tempo que Não Houve
Capítulo
29 - Razões da Memória
Capítulo
30 - Um Terreno em Uma Represa
Capítulo
31 - O Modo Esotérico de Vida
Capítulo 25 – Revelações
-- Meu pai está reconstruindo o carro de George, pedacinho por
pedacinho, como se, com isso, de alguma maneira, estivesse reconstruindo
a memória do meu irmão. – Disse Evelyn à Carmen. – Segundo seus
cálculos, depois de passar quase três meses pagando equipes de
alpinistas e bombeiros para resgatar cada fragmento do carro, além do
que já havia sido retirado na mesma semana do desastre, levará ainda um
ano ou mais para recuperar tudo, peça por peça...
Estavam as duas no terraço do bangalô e a caseira acabar de servir um
chá bem quente com torradas. Estava frio, mas havia um sol tímido e o
vento era o Noroeste, o que protegia aquela margem da represa.
-- Não pudemos ao menos nos despedir dele – disse Carmen—estremeço ao me
lembrar do caixão fechado, não pude deixar de pensar que o corpo dele se
despedaçara ao cair pela ribanceira, assim como o carro...
-- Ninguém disse nada sobre isso– respondeu Evelyn.
Carmen, grávida, viera por terra. Mas Evelyn atravessara a represa no
veleiro de George. Abel, o marinheiro, a ensinara, depois da morte do
irmão, a dominar o pequeno barco. Também ela, Evelyn, estava, de alguma
maneira, recuperando a memória dele, ao navegar em seu barco.
Evelyn fitou com ternura o barrigão da amiga, escondido debaixo do
vestido rodado:
-- Falta pouco agora, não é? – perguntou.
-- Sim. Mais um mês.
-- Eu me lembro de quando você foi ao Castelo à procura de um manuscrito
em que você e George trabalhavam. Você o encontrou, afinal?
-- Não. Ele realmente desapareceu. Não posso imaginar como. Estamos
aqui, praticamente isolados do mundo, ninguém vem até aqui, somos nós e
os caseiros. Apenas uma moça vem, uma vez por semana, de uma cidadezinha
aqui próxima, fazer a limpeza pesada. Mas ela é uma moça simples, nem
ler sabe...
-- Seria possível que algum acidente tivesse ocorrido? Um dos seus
empregados, sem querer, tivesse destruído, ou molhado o manuscrito e,
vendo-o inútil, simplesmente jogado fora?
-- Não é provável. E mesmo que acontecesse, Olga, a caseira, me diria.
Ela choraria, pediria desculpas, mas me diria.
-- Você confia neles, não é? – perguntou Evelyn.
-- Confiaria a minha vida a esses dois. E até ao filho deles. O menino
hoje está com 12 anos e anda, a pé, muitos quilômetros para ir à escola,
todos os dias. Ele é um amor de criança e diz que será advogado...
George sempre o incentivava e prometera pagar seus estudos para que ele
pudesse se formar, como queria. Agora, da mesma maneira que herdei o
bangalô, herdei também as obrigações de George para com nossos
empregados.
-- O que diz seu marido sobre tudo isso? – perguntou Evelyn – Afinal,
para ele e para toda a sociedade local você e meu irmão eram apenas
conhecidos... Ouvi comentários sobre o fato de George ter deixado do
bangalô para você, em testamento.
-- Ah, minha cara Evelyn – disse Carmen, servindo mais uma xícara de chá
à amiga – Também os ouvi, e como! Mas tenho sempre a desculpa de estar
escrevendo, com George, um livro e de nos reunirmos aqui para tal. Além
de que todos sabem que eu sempre vim para cá para escrever os meus
livros. Antonio, agora, depois que George se foi, às vezes vem comigo,
aos domingos. Gosta do lugar. Usa meu barco a motor para ir caçar
gaviões e macacos, nos arredores da ilha e da Praia Azul e para ir
visitar amigos que construíram uma casa na Riviera paulista. Antonio,
aliás, queria trocar os caseiros. Mas eu não permiti.
-- Você acha – perguntou Evelyn – que o desaparecimento do manuscrito
que vocês estavam escrevendo juntos tem alguma coisa a ver com Antonio?
Ciúmes, talvez.
-- Cheguei a pensar nisso, Evelyn – respondeu Carmen – mas Antonio nunca
teve ciúmes de George. O que ele esperava de mim era o que realmente tem
agora: uma esposa à altura da origem e da educação dele, uma boa mãe e a
parte que me cabe do dinheiro da minha família.
-- Isso eu considero um verdadeiro absurdo – disse Evelyn – A nossa lei
brasileira é absurda. Quando nos casamos, todas as nossas propriedades,
todos os nossos investimentos passam para nossos maridos, como se
fossemos seres incapazes de gerir os nossos próprios recursos. Como se
isso não bastasse, eles passam a poder dispor dos nossos bens como bem
entenderem e sem necessidade da nossa autorização ou nem mesmo de nosso
conhecimento. Veja, eu agora sou a herdeira da fábrica, da fazenda, de
todos os negócios dos meus pais. Nunca sei, quando um jovem interessante
se aproxima de mim, se ele o faz por mim mesma ou pelo meu dinheiro.
-- É verdade – perguntou Carmen – que você tem ido à fábrica e o seu
objetivo é ocupar o lugar do seu pai, na administração, quando for o
momento?
-- É isso mesmo. Eu sei que andam comentando que isso é um absurdo, que
jamais os empregados respeitarão uma mulher à frente da fábrica, toda
essa conversa sobre a suposta inferioridade feminina. No entanto, não
serei a primeira e muito menos a última. Você conhece a história da
Eufrásia Teixeira? Ela herdou um império em Vassouras, no estado do Rio,
no final do século. Era apaixonada, desde menina, por Joaquim Nabuco,
mas nunca quis se casar com ele. Acabou indo viver na Europa, para fugir
à pressão dos primos que diziam que ela não era capaz de administrar a
fortuna que herdara. George mesmo, em seu livro premonitório, fala da
condição das mulheres em 2019. Segundo ele, nesse futuro, elas ainda têm
muito a conquistar, mas já estarão quase em pé de igualdade com os
homens. Pelo menos é o que ele imaginou.
-- Ele mais do que imaginou – disse Carmen.
-- Não entendi.
-- George nunca lhe contou que ele recebeu uma visita do futuro?
-- Como assim, uma visita do futuro?
Então Carmen, com sua voz pausada e calma, quase despida de emoção,
narrou a Evelyn a experiência atemporal de George, tal como ele narrara
a ela própria.
Quando terminou, Evelyn não sabia como reagir. A amiga enlouquecera? Ou
estava lhe pregando alguma peça?
-- Você não acredita que eu vou engolir essa história, não é, Carmen?
Isso só pode ser fruto de sua imaginação de escritora! – exclamou.
-- Eu também não acreditava, mas, depois, com o tempo, percebi que era
verdade. E você também fez parte dessa “bolha” do tempo, desses 15 dias
em que Susana veio de 2019 para 1910. Alguma lembrança disso você também
deve ter, Evelyn. Não se lembra de nada?
-- Na verdade, sim, me lembro – respondeu Evelyn – jamais pude me
esquecer de um sonho que tive com uma mulher que vinha do futuro.
-- Você deve pensar sobre isso, Evelyn – disse Carmen, com sua
racionalidade evidente – deve pensar para poder recuperar essas
lembranças, afinal, você também viveu aqueles 15 dias, naquela “bolha”
do tempo. E mais que isso: no dia seguinte à morte de George, eu me
refugiei aqui no bangalô e pensei ter visto dois seres, duas pessoas que
me apareciam como translúcidas e que tinham as mesma feições que George
e eu, conclui portanto que deveriam ser seres do futuro, a mulher,
certamente Susana, e o homem, tão parecido com George, um descendente
dele. A mulher inclusive parecia estar fotografando o bangalô com um
artefato que George me descreveu como sendo o “celular” – era assim que
ele dizia – dela. Uma caixinha luminosa que poderia se comunicar com
outras iguais a ela, pelo mundo inteiro, e que fazia imagens, como
fotografias e filmes, com uma surpreendente nitidez. Pensei muito sobre
isso. O livro que estávamos escrevendo, George e eu, pareceria, aos
olhos do mundo de hoje, apenas absurdo. Falava na experiências com o
tempo, nas curvas, ou bolhas, temporais, falava na possibilidade da
expansão da consciência... Naquele dia, em que me dei conta que os
originais haviam desaparecido e fui procurá-los, inclusive, no Castelo,
eu não liguei uma coisa à outra. Mas hoje estou pensando se, aqueles
fantasmas do futuro, há meses atrás, o levaram para o tempo deles. Lá,
em 2019, ou seja, lá de que ano tenham vindo, talvez o mundo esteja
preparado para ouvir o que estávamos tentando dizer, George e eu,
naquele livro.
Evelyn olhou, atônita, para Carmen:
-- Talvez eu esteja influenciada por sua narrativa, mas agora me parece
que a mulher do futuro, no meu sonho, era mesmo muito parecida com você.
-- Não foi um sonho – respondeu Carmen – Você também fez parte daqueles
15 dias em que Susana esteve em 1910. Você, segundo me contou George,
conversou muito com ela, vocês foram juntas à cidade, ao atelier da
Madame Celina, à sua livraria predileta, você acreditava que ela era uma
moça que perdera a memória e estava disposta a ajudá-la a se lembrar...
e quando George lhe contou a verdade, você a tomou por uma vigarista...
Mas, depois, quando viu o celular funcionando, também acreditou...
Evelyn, agora é você quem precisa se lembrar!
Enquanto Carmen falava, fragmentos de imagens vinham à consciência de
Evelyn...Por fim, ela explodiu:
-- Chega dessa conversa, Carmen! Não sei se quero me lembrar. Nem sei se
é verdade tudo isso que você está me dizendo. Vou voltar ao Castelo
agora. Outro dia, conversaremos.
-- Como quiser, Evelyn. Mas eu tenho certeza que você se lembrará. Vá
com cuidado, agora. O vento noroeste parece mais forte no meio da
represa, longe da proteção dessa encosta onde estamos. Vá com Deus,
minha amiga!
Navegando de volta ao Castelo, uma névoa repentina abraçou o veleiro de
Evelyn e ela viu George, dentro da nuvem; ele lhe disse:
-- Minha irmã, é tudo verdade.
Quando a névoa se dissipou, Evelyn viu, assustada, que a represa estava
coalhada de barcos, a vela, a motor, e que as margens estavam
completamente diferentes, povoadas, cheias de casas, de enormes
edificações brilhantes que se erguiam para além da barragem.
Estou sonhando – pensou.
Então uma nova névoa novamente a atingiu e, ao se dissipar, ela viu a
velha e conhecida paisagem. Navegava na represa deserta, prestes a
atingir o ancoradouro do Castelo onde seu marinheiro, Abel, a esperava.
Capítulo 26 – Especulando
Se o mecânico do Dr. Júlio estava certo – e deveria estar, pois afinal
mostrara a eles a evidência – alguém sabotara o carro de George para que
ele morresse na estrada. Mas quem? Poderia ser qualquer um. Alguém que
tivesse um ressentimento, alguém que o quisesse fora dos negócios,
alguém a quem ele prejudicara de alguma maneira, um empregado demitido
que se julgasse injustiçado, um concorrente que temesse sua habilidade
nos negócios... qualquer um... No entanto, Susana só conseguia pensar
numa pessoa: seu bisavô, Antonio Expedido, marido de Carmen. De alguma
maneira – julgava ela – Antonio estava sabendo do caso de George e
Carmen e resolvera tirá-lo do caminho.
-- Mãe – perguntou ela à Isabel naquela noite – o que você sabe sobre o
meu bisavô, Antonio Expedito?
-- Muito pouco – respondeu Isabel – Na família comentava-se que ele foi
um industrial muito bem-sucedido, embora seus filhos e netos tenham se
encarregado de dissipar sua fortuna. Dizem que era um homem muito bonito
e impiedoso para com os empregados, para com os inimigos. Sua avó Carmen
escreveu sobre ele.
-- Escreveu o que? – perguntou Susana – Eu li todos os livros que ela
publicou, mãe, não há referências a ele.
-- Se você leu o romance “Uma Mulher por Detrás de um Homem”, leu a
história do casamento deles.
-- Que horror! – exclamou Susana – É uma história super cruel, da
crueldade masculina sobre as mulheres... Você está me dizendo que é a
história do casamento deles? Mas sempre se disse que eles foram felizes,
com seus 6 filhos...
-- A crueldade mental que Carmen descreve ali, é fruto de sua vida com
Antonio, pode ter certeza. Muito embora, na época em que eles viveram,
era para lá de comum as mulheres fingirem ser felizes no casamento. Não
só porque a separação seria ainda socialmente pior para elas, mas também
porque queriam preservar seus filhos dos sofrimentos decorrentes.
Susana então contou à Isabel tudo o que haviam descoberto sobre o “Ford
Fênix” e sobre a provável sabotagem no carro que vitimara George.
-- Ah... foi ele! – disse Isabel – Foi Antonio, pode ter certeza!
-- Cem anos depois não dá pra ter certeza, mãe – respondeu Susana. –
Podem ter existido muitas outras pessoas com muitas outras razões para
querer ver George morto.
-- É verdade – respondeu Isabel – Pode não ter tido nada a ver com
Antonio. Mas a minha intuição diz que teve.
-- Intuição nunca é certeza – respondeu Susana.
-- Você é que pensa, minha filha – disse Isabel – Para mim, intuição é
sempre certeza. Só não o é quando confundimos o desejo de que algo se
realize com a suposta intuição de que esse algo se realizará. Aí, pode
ser nosso desejo mascarado em intuição. Mas não é esse o caso. Pense
bem, segundo a história que você mesma descobriu nas suas andanças pelo
Tempo, Antonio teria todas as razões do mundo para querer eliminar
George.
-- É, mas de qualquer maneira – disse Susana – não me agrada pensar que
sou descendente de um assassino.
Isabel riu:
-- Se o problema é esse, não se preocupe. Por um lado, ou por outro,
todos nós, na Terra, descendemos de algum assassino.
Capítulo 27 – Investigando
O delegado Almeida recebeu o mecânico, afinal, depois de fazê-lo esperar
por duas horas na recepção da delegacia de Santo Amaro.
-- Olha, doutor, eu não sei se deveria estar aqui, mas a minha
consciência e a minha mulher me disseram que sim. É só uma suspeita, mas
achamos melhor eu vir conversar.
-- Diga lá, homem! Suspeita de que?
-- Eu não sei se o senhor sabe, mas o seu Meyer, lá do Castelo, mandou
buscar todos os pedaços do carro do filho dele que despencou da Serra do
Mar.
-- Sim, eu sei do caso, um acidente muito triste.
-- Aí e que está o busílis, seu delegado. Eu sou um dos mecânicos
encarregados de remontar o carro.
-- Como assim? O Meyer quer remontar o carro acidentado?
-- Pois é. Ele passou três meses recolhendo peças na serra, contratou
gente para fazer isso e, agora, nós somos dois mecânicos e dois
funileiros, remontando tudo, um trabalho enorme! Mas aí eu estava
soldando uma ponta de eixo do carro quando reparei que ela tinha se
partido de uma maneira um pouco estranha.
-- Estranha?
-- Sim. Ela estava quebrada num ponto, mas o resto do eixo parecia ter
sido cortado, era um corte perfeitamente regular... Eu não sei..., mas
nunca vi um acidente produzir um corte retinho daquele jeito... Fiquei
pensando se alguém teria cortado aquilo, antes do acidente, justamente
para que a roda se soltasse com o carro em movimento...
-- O senhor tem certeza que o que o senhor chama de “corte reto” não
pode ter sido produzido no acidente?
-- Olha, doutor, poder até pode, mas é uma coisa muita estranha...
-- O senhor trouxe a peça?
-- Se eu tirar alguma peça de lá, o velho Meyer me mata.
-- Mas, se eu abrir um inquérito, baseado nessa denúncia do senhor, que
está me dizendo, afinal, que isso pode ter sido uma sabotagem, o
promotor vai exigir a evidência, ou seja, a peça.
-- Se o senhor fizer isso, o velho Meyer vai sofrer imaginando que o
filho dele possa ter sido vítima de sabotagem. E se o senhor chegar à
conclusão que isso não aconteceu? O velho já está sofrendo muito com a
morte do seu único filho homem.
-- Bem vamos fazer uma coisa, senhor... como é mesmo seu nome?
-- Euclides.
-- Bem, seo Euclides, primeiro eu vou investigar se alguém teria um bom
motivo para desejar a morte do jovem George. Também vou ver se alguém
mexeu no carro logo antes do acidente e, só depois de confirmar isso,
tomarei alguma providência. Isso deixará sua consciência, e sua mulher –
riu o delegado – mais tranquilas?
-- É claro, doutor, muito obrigado.
...
A secretária entrou no escritório de Antonio, parecendo constrangida.
-- Pois não, dona Ivone. Algum problema? – disse ele.
-- Tem uma pessoa na linha telefônica que diz precisar falar
urgentemente com o senhor, mas não quer me dar o nome. Diz que se trata
de um problema com um automóvel, não entendi bem, mas ele insistiu para
que eu transmitisse o recado e garantiu que o senhor ia querer falar com
ele.
-- Ah, sim... Deve ser o dono da oficina onde levei meu carro. Pode
deixar que eu atendo.
Ivone achou estranho que o Dr. Antonio aceitasse falar pessoalmente com
o dono da oficina. Quando ela saiu da sala, ele levantou o gancho do
aparelho e esperou que o “clic”, no fone indicasse que a secretária
desligara o aparelho contíguo.
-- Alô – disse ele.
-- Eu sei que o senhor disse que eu não deveria falar nunca mais com o
senhor – disse uma voz abafada e afobada -- Mas tem um investigador, lá
da delegacia da cidade de Santo Amaro, que apareceu na oficina fazendo
perguntas sobre o carro do moço, aquele, o senhor sabe, não é?
Naquela mesma semana o delegado Almeida foi transferido, repentinamente,
para a cidade de Matão, um município criado havia menos de dez anos, na
zona cafeeira do estado. Quando Euclides voltou à delegacia para saber
como estavam indo as coisas, o mesmo investigador que aparecera na
oficina lhe disse:
-- O delegado decidiu que não havia razão suficiente para abrir um
inquérito, uma vez que todas as autoridades competentes acreditam que
foi, de fato, um acidente. Ele disse que o promotor jamais aceitaria uma
denúncia como essa.
-- Mas, ao menos, ele tinha um suspeito? – perguntou Euclides.
-- Olhe aqui, -- disse o investigador, já com certa irritação -- se eu
fosse o senhor, trataria de esquecer essa história e não falar a ninguém
sobre a sua suspeita.
Euclides entendeu o recado.
Era voz corrente entre os intrigantes de plantão na cidade de Santo
Amaro, e também em São Paulo, que o rapaz que morrera era amante da
noiva de um figurão paulistano muito importante.
Euclides tinha mulher e filhos e sabia que a corda sempre arrebenta do
lado mais fraco.
Capítulo 28 –
Um Tempo que Não Houve
Quando Evelyn entrou no Castelo, vinda do bangalô de Carmen, seus olhos
bateram no livro “Luiza Homem” que ela, recentemente, vira estar fora do
lugar nas prateleiras da biblioteca e, então, uma tênue lembrança a
invadiu: ela própria, George e a moça com a qual sonhara (Susana,
dissera Carmen) lendo na sala da lareira, ela mesma recitando um trecho
do livro de Max Heindel, o Rosacruz. Pôde ouvir a sua própria voz
dizendo:
“Em nossa civilização, o abismo que se abre entre a mente e o coração
torna-se maior e mais profundo e, enquanto a mente voa de uma a outra
descoberta nos domínios da ciência, o abismo aprofunda-se e amplia-se
ainda mais, ficando o coração cada vez mais distante” ... Lembrou-se de
como ela e a mulher do sonho haviam rido, porque aquele texto era
absolutamente coerente com tudo o que elas duas haviam conversado
naquela mesma tarde, sobre a contribuição feminina – “do coração “ ou do
lado intuitivo – para o mundo apenas racional, que estava sendo criado
pelos homens.
Mas como – pensava Evelyn – poderia ela estar se lembrando de algo que
até então ela julgara jamais ter ocorrido?
A mesa estava posta. Matilde se aproximou:
-- Ainda bem que a senhora chegou a tempo para o jantar. Seus pais
estavam preocupados, já iam mandar chamar o Abel para procurá-la...
Depois do jantar, Evelyn foi para o terraço, aquele sobre a sala de
vidros. A noite estava surpreendentemente clara e os vagalumes ainda
cintilavam sobre a grama. Sentou-se à mesa que lá havia e, fitando o
céu, as lembranças começaram a invadi-la. Lembranças de algo que ela
vivera, havia 10 anos, mas das quais jamais tivera consciência.
Lembrou-se de Susana, lembrou-se de tudo... e, horas mais tarde, ciente
de que sua amiga Carmen estava certa naquilo que contara, resolveu que
jamais falaria sobre essa sua lembrança com ninguém, nem mesmo com
Carmen. Aquela experiência, ou aquele sonho – ela não sabia bem como
classificar– seria, para sempre, um segredo só seu porque, afinal, não
pertencia a esse tempo, não pertencia à sua realidade e, com essa
conclusão, pôde afinal ir para o seu quarto e, sob os lençóis de cetim,
alcançar o merecido descanso.
Capítulo 29 – Razões da Memória
O site do tio de Leo era muito grande. Tinha crônicas de memória, que
ele próprio escrevera, tinha árvore genealógica, muitos documentos,
recuperados de arquivos de jornais e revistas, enfim, era de fato um
trabalho grandioso e Leo, hoje, arrependia-se de ter simplesmente
menosprezado tudo aquilo, de não ter navegado por ali antes, enquanto
seu tio ainda vivia e poderia, então, ter conversado com ele sobre todo
aquele vasto universo familiar ao qual ela jamais prestara atenção antes
de encontrar o livro de George. Antes de encontrar Susana...
-- Então – concluiu Leo – o bisavô de Susana era Antonio Expedito, mas
seria válida a suspeita de que o primeiro filho de Carmen e Antonio
fosse filho biológico de George Meyer? Nesse caso, Susana e eu seríamos
primos em terceiro grau.
-- Ninguém tem certeza – respondeu Isabel – A menos que exumássemos o
cadáver, agora caveira, do meu pai e fizemos o teste de DNA. Mas quem
precisa disso? É claro que ele era filho de George... Era diferente dos
irmãos, não só física como também mentalmente, a personalidade dele era
muito diferente da dos seus irmãos mais novos. Seus irmãos eram
práticos, pé no chão, como se diz comumente, muito parecidos com Antonio
Expedito: qualquer coisa por um bom negócio, que rendesse dinheiro e
prestígio. Já meu pai... Era um sonhador, poeta, só via o lado lírico da
vida. Foi um pioneiro na cinematografia no Brasil. Minha mãe é que tinha
que administrar a parte prática, o dinheiro, essas coisas. Ele não
queria nem saber de nada disso. Tanto que não morreu rico. Alguns de
seus irmãos também morreram pobres, apesar de sua ambição desenfreada.
Mas vocês dois, Susana e você, estão se ocupando demais com o passado.
Creio que a coisa mais importante de todas é o manuscrito que vocês
disseram ter trazido, no tempo, do antigo bangalô de Carmen e George. É
nele que vocês devem se concentrar e em nada mais.
-- Nem mesmo no crime que matou o meu... (Susana ia dizendo “o meu
amor”, mas emendou-se para não magoar Leo) ... o meu provável
antepassado?
-- O crime está prescrito – respondeu Isabel – morto e enterrado como
seus protagonistas. Falar nele, pensar nele, não fará justiça. Deixe
isso com a justiça do Cosmos. – E riu – Vai ver que Antonio – que morreu
muito cedo, em 1930, reencarnou em condições de vida bem precárias...
-- A senhora tem razão – disse Leo.
-- Senhora está no céu – respondeu a mãe de Susana – Não me sinto uma
senhora, apesar dos meus 68 anos...
-- Bem – riu ele – você tem razão – Se houve algum motivo para toda essa
confusão de viagens no Tempo, certamente essa razão é o livro de George
e Carmen. Susana e eu vamos trabalhar nele, trazer a linguagem dele para
o nosso tempo, até mesmo tentar conclui-lo, pois está inconcluso. É
claro que faremos uma introdução, explicando como procedemos na edição.
-- Aproveitem – disse Isabel – e nessa introdução contem a história do
Ford Fênix. Simplesmente contem, sem tomar partido, sem especular nada.
-- Nossa, mãe... Isso seria muito louco – disse Susana. Mas poderia
gerar revolta entre nossos parentes, os outros descendentes de Antonio e
Carmen.
-- Por que? – disse Isabel – Vocês não dirão nada sobre suspeitas. Será
apenas um mistério. Houve ou não sabotagem? E quem gostaria de ver
George morto? Existem muitas hipóteses... inimigos políticos,
empresários rivais, empregados demitidos, sindicalistas radicais...
Basta não mencionar o caso de amor entre os autores. Simples assim – riu
ela --, como dizem hoje vocês jovens. Afinal, amor é uma coisa que diz
respeito apenas e tão somente aos amantes e a ninguém mais.
Capítulo 30 -
Um Terreno em Uma Represa
Leo contratou uma equipe de helicópteros para vasculhar todas as
represas próximas à São Paulo. Incluindo a poluída Bollangs. A ideia era
encontrar uma península, que tivesse uma leve colina e se estendesse
para a água, tendo assim, descidas também leves para as margens de ambos
os lados, menos um. Quem encontrasse alguma coisa parecida, deveria
fotografar. Leo recebeu muitas fotos, pelo whats app, mas nada ainda que
fosse exatamente igual à península do Castelo, em Guarabitinga. Por fim,
uma tarde, um dos pilotos lhe mandou fotos de um trecho da Represa de
Juruguaçu, mais precisamente a península banhada de um lado pela baía
Riviera Santa Catarina e bem em frente a uma outra, onde se localizava a
Pousada Península, no munícipio de Abaçaí, a cerca de 270 quilômetros de
distância da cidade de São Paulo. Leo mandou pesquisar a quem pertencia
aquela área e fez uma proposta irrecusável para comprar 3 alqueires
paulistas da ponta da península. Tinha agora um terreno, à beira de uma
represa, muito semelhante ao terreno onde seu trisavô, o pai de George,
construíra o Castelo.
Embora tivesse herdado uma grande fortuna, com a parte que lhe coube
quando da morte do pai, o que ele tinha em mente era um empreendimento
que, quando terminado, não lhe traria o investimento de volta, pelo
menos por muito tempo. Assim, procurou as grandes corporações que eram
clientes da sua agência de publicidade e tratou de convencê-las a bancar
parte do empreendimento, em troca de alguma isenção de impostos e de
angariar prestígio e reconhecimento da sociedade para com a sua marca.
Quando tinha reunido todas as condições necessárias para começar, ligou
para Susana:
-- Vamos ao Castelo neste sábado?
-- Ao Castelo, por que? – perguntou ela – Você não está querendo repetir
nenhuma viagem no Tempo, está?
-- Não – disse ele – O que eu quero é fotografar, eu mesmo, todas as
dependências do imóvel, que meu bisavô construiu, por dentro e por fora.
Quero ter tudo documentado, talvez coloque no site da família.
-- Leo – disse ela – prometi a mim mesma que não me arriscaria a voltar
lá e, de novo, viajar no tempo. 2019 já está de bom tamanho para mim.
Passei 20 anos sem ir lá e, quando fui, vivi tudo aquilo que não
gostaria de repetir. Lá se vão 4 meses desde a minha promessa e a tenho
cumprido. Vá sozinho, fotografe, mas não se arrisque a entrar naquela
linha, aquela que você sabe que é um Portal do Tempo. Não quero perder
você para outro tempo.
Leo foi, fotografou tudo e, na segunda feira, passou as fotos para um
escritório que havia contratado.
Capítulo 31 –
O Modo Esotérico de Vida
Leo e Susana começaram a leitura do livro de Carmen e George no final de
abril de 2019. Embora já tivessem lido pequenos trechos aqui e ali,
inclusive o famoso, para eles, capítulo 6, que afirmara serem o tempo e
o espaço apenas ilusões, desde as primeiras páginas a leitura se revelou
muito mais surpreendente do que eles esperavam.
Os autores se apresentavam como membros e porta vozes da Antiga e
Mística Ordem Rosacruz que se revelara ao público apenas no
Renascimento, depois de passar os mil anos da Idade Média absolutamente
submersa e escondida. Francis Bacon – diziam eles – teria sido o
Christian Rosenkreuz, a quem se atribuía o renascimento da Ordem, na
Áustria, em 1407. Os rosacruzes se diziam detentores de um conhecimento
que remontava ao Egito Antigo, que era a herança de uma outra
tecnologia, de uma outra ciência, coisas vistas, em nossos tempos,
apenas como magia e, portanto, pouco levadas a sério. Diziam George e
Carmen:
Haverá, no entanto, um momento em que a moderna ciência se encontrará
com os velhos conhecimentos da magia, inclusive com a poesia. A poesia é
uma forma única de descrever a realidade. Mudada uma sílaba num verso, o
poema perderá seu sentido. A linguagem lírica é aquela que não admite
nenhum equivalente, porque ela fala de uma percepção única da realidade,
no que esta possui de mais belo. Já a linguagem científica é aquela que
admite infinitos equivalentes. O nosso século XX viverá as maiores
transformações científicas e tecnológicas jamais imaginadas por nossos
antepassados. O salto do conhecimento ultrapassará os limites da
gravidade e o ser humano voará, não apenas pelo ar, mas também pelo
espaço sideral.
As above, so bellow. Assim na terra como no céu. Do estudo do Cosmos,
das estrelas, dos planetas, também se descerá ao outro cosmos,
infinitamente menor em dimensão, que está no interior de toda matéria;
desvendaremos então o mistério dos átomos. Por fim, a ciência encontrará
seu eco na poesia.
É o que nos espera nesse século que ora entra apenas em sua segunda
década.
Seguia-se então uma longa e complexa explicação que visava demonstrar
que a matéria continha em si mesma todo um universo, onde os átomos
seriam como as estrelas e outros corpos celestes.
Susana e Leo pararam a leitura nesse ponto e a retomaram, já no começo
do mês de maio, quando ambos encontraram, em suas agendas cheias de
compromissos, tempo para tal. Retomaram a leitura no ponto em que haviam
parado:
Sabedores de tudo isso, -- continuavam os autores -- nos unimos,
mentalmente, para criar o que vamos chamar de Linha Atemporal, um Portal
do Tempo. Escolhemos uma determinada longitude, um meridiano específico,
que só nós sabemos onde fica, e essa linha é a passagem entre os tempos.
Tempos esses limitados entre o nosso e o próximo século, daqui a 100 e
110 anos. Não será, entretanto, uma linha que circundará o planeta. Nós
a restringimos à estreitíssima dimensão de 1 metro de largura por 1 km
de comprimento. Dentro dessa pequena linha é possível transitar entre os
anos de 1910 a 1919 e 2010 a 2019. Queremos, com esse experimento,
demonstrar que o tempo e o espaço são apenas produtos da nossa mente e a
realidade é apenas aquilo que acreditamos que ela seja. Mudando a nossa
convicção, podemos mudar a realidade.
-- Meu Deus – exclamou Susana ao ler essa parte – Ele sempre soube! Ele
me enganou! Como foi capaz disso? Ele sempre soube que a minha presença
em 1910 era o resultado do que ele mesmo criou, dessa tal Linha
Atemporal! Por que me escondeu isso? Por que fingiu não acreditar que eu
viera do futuro? Ele sabia que a minha presença ali era o resultado do
que ele e esses bruxos rosacruzes tinham criado!
-- Acho que ele pensava que você poderia ter medo dele, -- disse Leo --
se lhe revelasse a verdade. Você o compreenderia, se ele tivesse
simplesmente dito que você estava ali porque fazia parte de um
experimento mental que ele mesmo não saberia como controlar? Se ele a
levou ao passado, poderia dizer a você que o tinha feito, de maneira
aleatória, usando apenas a força de várias mentes? Poderia dizer que
você talvez estivesse presa lá para sempre? Que ele não sabia como
mandar você de volta? Ou se poderia mandar?
-- Não me agrada pensar que fui uma mera cobaia do experimento de alguns
bruxos! E, pior, me apaixonei por um deles!
-- Que eu saiba – disse Leo, espantado com o ressentimento dela para com
o seu genial bisavô – seus pais também fazem parte desses “bruxos”.
-- Meus pais são rosacruzes, mas jamais submeteriam alguém a passar por
uma experiência dessa monta sem que essa pessoa estivesse de acordo...
-- Você estava de acordo. – Afirmou ele, com calma.
-- Como assim? O que você quer dizer?
-- Veja bem, quando entrou no Castelo e viu que as “suas” árvores não
estavam mais ali, você mesma me contou, concluiu que as árvores tinham
alguma coisa a ver com as mentes que por ali circulavam. Grandes árvores
– pensou você – grande mentes. Você concluiu que as árvores de 2019 eram
o reflexo das mentes menores, menos experientes, quero dizer. Afinal não
existem graus de grandeza entre as mentes, se considerarmos que todas
pertencem a um mesmo fluxo energético, ou o que o valha. Quando você
pensou assim, entrou em sintonia com o passado e foi essa sintonia que
permitiu que você viajasse pelo Portal do Tempo, pela linha que o meu
bisavô e seus bruxos haviam criado com sua força mental. Ele não a levou
contra a sua vontade. Foi a sua própria vontade, lamentando a mudança e
ansiando pelo passado, que a levou.
-- Foi uma experiência maravilhosa e terrível, ao mesmo tempo. – disse
ela subitamente cansada, recostando a cabeça no ombro de Leo. Estavam
lado a lado no sofá do escritório de Leo, na agência de publicidade,
para onde iam, nos domingos à tarde, trabalhar no manuscrito de seus
bisavós.
Leo continuou a ler, em voz alta:
Nossa experiência, no entanto, nos mostrou que viajamos, de fato, no
Tempo. Mas não naquilo que se convencionou chamar Tempo Real. O que
fizemos foi criar outras realidades dentro de outros tempos e de nosso
próprio tempo. Ao visitar outra época, criamos uma bolha, uma curva,
que, até então, não existia naquele tempo. Explicamos: tudo o que
vivemos estando fora do Tempo Linear se mostrou de fato uma nova
realidade. Tanto que, ao voltarmos ao nosso tempo de origem, voltávamos
exatamente ao ponto em que deixáramos o tempo linear. Para alguns,
aqueles que nos circundavam e não sabiam o que ocorria, a lembrança
daquela nova realidade, daquela curva, ou bolha, fora do Tempo Linear,
podia apenas se mostrar como um sonho, alguns mesmo nem sequer se
recordavam de nada. Para os que tinham consciência da passagem para um
tempo diferente do seu, permanecia a lembrança daqueles dias, ou
momentos, vividos fora de seu próprio tempo.
-- Evelyn, as freiras, os empregados do Castelo, o chofer de táxi, o
médico, as irmãs do convento da Paulista... Teriam tido, alguns deles, a
lembrança daqueles quinze dias que não existiram de fato, em 1910? –
especulou Susana.
-- Se Evelyn se lembrou, não há registro. E Carmen, ela própria,
conheceu George depois dessa bolha de 1910. Tanto que ela escreve, na
introdução, que teve muita dificuldade em aceitar como verdadeira a
experiência atemporal vivida por George – respondeu Leo.
-- E da outra vez? Quando ele veio de 1919 e ficamos juntos apenas por
algumas horas?
-- Que outra vez foi essa, Susana? Você está dizendo que ele esteve com
você, depois que você voltou? Por que você nunca me contou isso? Quando
aconteceu?
Susana titubeou. Estava tão acostumada a dividir todas as experiências,
mesmo as mais banais, com Leo. Não se lembrava de que omitira aquela
vinda de George ao futuro. Fôra em janeiro, apenas três semanas depois
que ela voltara do passado. Para ela, três semanas que pareceram uma
eternidade. Para George, que vinha não mais de 1910, mas de 1919, quase
dez anos depois, uma surpresa ambígua. Podia lembrar-se da decepção
estampada no rosto dele quando passeavam pelo clube e ela lhe mostrou
todas as transformações que sofrera o entorno do Castelo. Por gentileza,
ele fingiu que estava admirado, que apreciava o progresso, as lindas
instalações, mas Susana sabia que, de fato, ele se decepcionara. Vinha
de um Castelo cercado de verde, de uma represa cercada de mata e, agora,
tudo estava ladeado por construções, não só o Castelo, mas também a
represa.
Fôra naquele dia, há quase cinco meses, que ela resolvera não voltar
mais ao Castelo para não correr o risco de outra aventura fora de seu
próprio tempo. Muitas vezes ela pensara em como abordar aquele episódio
com Leo, sem magoá-lo, sem que ele sentisse ciúmes, sem que ela deixasse
transparecer a enorme emoção que sentira e que, afinal, a levara àquela
decisão radical, de não mais querer estar com George, para não sofrer
novamente com a separação. Pensou nisso tantas e tantas vezes que acabou
acreditando que já contara a Leo. Mas nunca contara e agora, acabara se
traindo. Ficara, afinal, pior do que se tivesse contado. Resolveu usar a
sinceridade:
-- Eu pensei tanto em como contar a você, pensei tantas vezes, que
acabei me convencendo de que contara. Faz tempo. Foi no dia 27 de
janeiro, 3 semanas depois que eu voltara de 1910. Fui ao clube, estava
sentada ali, num banco de pedra, no caminho das árvores, quando a névoa
me trouxe George. Ele vinha do dia 9 de março de 1919, um mês apenas,
portanto, antes de sua morte. Estava mais velho, linhas em torno dos
olhos, alguns cabelos brancos...
-- Você ainda o ama! – exclamou ele, ressentido.
Susana olhou para ele e não teve coragem de dizer nada.
-- Foi ao clube sozinha, naquele dia, -- continuou ele -- porque pensava
poder voltar para George e o seu pensamento, foi o seu pensamento, que o
trouxe até você! – e, amainando o tom irritado de sua voz, continuou: --
Por isso não me contou. Você foi lá, na esperança de encontrá-lo,
de voltar no tempo e, em vez disso, o trouxe até você. O que aconteceu
então? Me diga, Susana!
Então Susana falou da decepção dele, da decepção que ele não disse, mas
que sentiu nele, enquanto caminhavam pelo Castelo de 2019.
-- Ficamos juntos apenas duas ou três horas – disse ela, concluindo a
narrativa.
-- E então – respondeu ele – já posso imaginar o resto... Foi aí que
você decidiu não voltar mais lá, você percebeu que era muito sofrimento
correr o risco de tê-lo apenas por alguns breves momentos e preferiu não
se arriscar mais! Ah, minha querida, sua voz, seus olhos, tudo muda
quando você fala nele. É a ele que você ainda ama, tentando fingir que
ama a mim. Eu sou apenas uma cópia malfeita do seu amor. E, para o bem
de nós dois, é melhor nos separarmos. Vamos dar um tempo. Vamos esperar
que esse seu amor impossível se esgote e talvez então, um dia, você
possa realmente me amar. Ou esquecer tudo, esquecer a ele e a mim.
-- Não, Leo – disse ela com lágrimas nos olhos – Ao longo desses meses
todos em que nos amamos, em que convivemos, eu aprendi a amar você. Ou
você acha que eu posso passar o resto da minha vida amando um fantasma?
Vivi apenas 15 dias com George, dos quais metade nem estive com ele,
estava no convento, depois no hospício... Estou com você há meses e,
juro, Leo, tenho sido feliz com o nosso amor. Como saberei se George não
me decepcionaria se convivêssemos mais tempo? Afinal, ele é um homem do
século XX, do começo do século XX, com a cabeça dos homens daquele
tempo, haveria conflito entre nós se prosseguíssemos convivendo...
Leo viu as lágrimas que desciam pela face de Susana e as lágrimas lhe
deram esperança de que ela o estivesse realmente amando:
-- Desculpe-me, meu amor – disse então – Mas é um tanto complicado para
mim ser rival de meu próprio bisavô. Tenho ciúmes do brilho que vejo em
seus olhos quando você fala nele.
-- Leo – disse ela – Foi uma grande paixão a que eu senti por George.
Mas, como eu disse, certamente a paixão, se pudéssemos realmente
conviver, se transformaria numa grande decepção. Quando eu conheci você,
estava apaixonada por ele. Depois, com o tempo, percebi que podia amar
você como o teria amado. Paixão não é amor, Leo. Paixão dá e passa, como
os resfriados. Nós dois, nesses meses dessa nossa intensa convivência,
fomos construindo o amor. Isso é muito mais sólido, muito mais real, do
que a ilusão criada, dentro da gente, pelas paixões.
Leo puxou Susana para si, deitando-lhe a cabeça no ombro, acariciando os
cabelos dela e disse:
-- Está bem. Acredito em você, minha amada. Agora vamos sair, vamos
dançar em algum lugar, tomar uns uísques, rir, viver o nosso tempo, esse
tempo. Semana que vem continuaremos a leitura. Chega, no momento, desse
passado, desse modo esotérico de vida.
CONTINUA...
em breve:
Capítulo
32 - A Passagem Natural
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