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Para Susana Campanhã,
guardiã dos meus sonhos e atual
Senhora do Lago,
e para Vera Krausz,
companheira de infância no Castelo.
24 de fevereiro a
7 de agosto de 2019.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

Esclarecimento necessário:

Essa aqui é uma história de ficção, calcada

em alguns fatos reais e outros inventados.

Os personagens da ação da história são fictícios. Os personagens periféricos à ação podem ser, ou não, reais. O mais real, na história toda, é a magia que de fato existe nesse Castelo...

 

 

 

 

 

 

 

 

Sobre o Castelo, Clube de Campo, leia também a nossa história lá, de 1959 a 1987 e, depois, 2017, com muitas fotos e vídeos.

 

 

1983

2017

 

 

 

2017

1959

 

 

 

 

Do Tupi Guarani:
Guarabitinga – Garças na Terra Branca

 

 
Um Castelo Além do Tempo

por Isabel Fomm de Vasconcellos

 

Aqui, do Capítulo 25 em diante.

Para ir aos Capítulos 17 a 24, clique aqui.

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Índice:

Capítulo 25 - Revelações

Capítulo 26 - Especulando

Capítulo 27 - Investigando

Capítulo 28 - Um Tempo que Não Houve

Capítulo 29 - Razões da Memória

Capítulo 30 - Um Terreno em Uma Represa

Capítulo 31 - O Modo Esotérico de Vida

 

Capítulo 25 – Revelações


-- Meu pai está reconstruindo o carro de George, pedacinho por pedacinho, como se, com isso, de alguma maneira, estivesse reconstruindo a memória do meu irmão. – Disse Evelyn à Carmen. – Segundo seus cálculos, depois de passar quase três meses pagando equipes de alpinistas e bombeiros para resgatar cada fragmento do carro, além do que já havia sido retirado na mesma semana do desastre, levará ainda um ano ou mais para recuperar tudo, peça por peça...

Estavam as duas no terraço do bangalô e a caseira acabar de servir um chá bem quente com torradas. Estava frio, mas havia um sol tímido e o vento era o Noroeste, o que protegia aquela margem da represa.

-- Não pudemos ao menos nos despedir dele – disse Carmen—estremeço ao me lembrar do caixão fechado, não pude deixar de pensar que o corpo dele se despedaçara ao cair pela ribanceira, assim como o carro...

-- Ninguém disse nada sobre isso– respondeu Evelyn.

Carmen, grávida, viera por terra. Mas Evelyn atravessara a represa no veleiro de George. Abel, o marinheiro, a ensinara, depois da morte do irmão, a dominar o pequeno barco. Também ela, Evelyn, estava, de alguma maneira, recuperando a memória dele, ao navegar em seu barco.

Evelyn fitou com ternura o barrigão da amiga, escondido debaixo do vestido rodado:
-- Falta pouco agora, não é? – perguntou.

-- Sim. Mais um mês.

-- Eu me lembro de quando você foi ao Castelo à procura de um manuscrito em que você e George trabalhavam. Você o encontrou, afinal?

-- Não. Ele realmente desapareceu. Não posso imaginar como. Estamos aqui, praticamente isolados do mundo, ninguém vem até aqui, somos nós e os caseiros. Apenas uma moça vem, uma vez por semana, de uma cidadezinha aqui próxima, fazer a limpeza pesada. Mas ela é uma moça simples, nem ler sabe...

-- Seria possível que algum acidente tivesse ocorrido? Um dos seus empregados, sem querer, tivesse destruído, ou molhado o manuscrito e, vendo-o inútil, simplesmente jogado fora?

-- Não é provável. E mesmo que acontecesse, Olga, a caseira, me diria. Ela choraria, pediria desculpas, mas me diria.

-- Você confia neles, não é? – perguntou Evelyn.

-- Confiaria a minha vida a esses dois. E até ao filho deles. O menino hoje está com 12 anos e anda, a pé, muitos quilômetros para ir à escola, todos os dias. Ele é um amor de criança e diz que será advogado... George sempre o incentivava e prometera pagar seus estudos para que ele pudesse se formar, como queria. Agora, da mesma maneira que herdei o bangalô, herdei também as obrigações de George para com nossos empregados.

-- O que diz seu marido sobre tudo isso? – perguntou Evelyn – Afinal, para ele e para toda a sociedade local você e meu irmão eram apenas conhecidos... Ouvi comentários sobre o fato de George ter deixado do bangalô para você, em testamento.

-- Ah, minha cara Evelyn – disse Carmen, servindo mais uma xícara de chá à amiga – Também os ouvi, e como! Mas tenho sempre a desculpa de estar escrevendo, com George, um livro e de nos reunirmos aqui para tal. Além de que todos sabem que eu sempre vim para cá para escrever os meus livros. Antonio, agora, depois que George se foi, às vezes vem comigo, aos domingos. Gosta do lugar. Usa meu barco a motor para ir caçar gaviões e macacos, nos arredores da ilha e da Praia Azul e para ir visitar amigos que construíram uma casa na Riviera paulista. Antonio, aliás, queria trocar os caseiros. Mas eu não permiti.

-- Você acha – perguntou Evelyn – que o desaparecimento do manuscrito que vocês estavam escrevendo juntos tem alguma coisa a ver com Antonio? Ciúmes, talvez.

-- Cheguei a pensar nisso, Evelyn – respondeu Carmen – mas Antonio nunca teve ciúmes de George. O que ele esperava de mim era o que realmente tem agora: uma esposa à altura da origem e da educação dele, uma boa mãe e a parte que me cabe do dinheiro da minha família.

-- Isso eu considero um verdadeiro absurdo – disse Evelyn – A nossa lei brasileira é absurda. Quando nos casamos, todas as nossas propriedades, todos os nossos investimentos passam para nossos maridos, como se fossemos seres incapazes de gerir os nossos próprios recursos. Como se isso não bastasse, eles passam a poder dispor dos nossos bens como bem entenderem e sem necessidade da nossa autorização ou nem mesmo de nosso conhecimento. Veja, eu agora sou a herdeira da fábrica, da fazenda, de todos os negócios dos meus pais. Nunca sei, quando um jovem interessante se aproxima de mim, se ele o faz por mim mesma ou pelo meu dinheiro.

-- É verdade – perguntou Carmen – que você tem ido à fábrica e o seu objetivo é ocupar o lugar do seu pai, na administração, quando for o momento?

-- É isso mesmo. Eu sei que andam comentando que isso é um absurdo, que jamais os empregados respeitarão uma mulher à frente da fábrica, toda essa conversa sobre a suposta inferioridade feminina. No entanto, não serei a primeira e muito menos a última. Você conhece a história da Eufrásia Teixeira? Ela herdou um império em Vassouras, no estado do Rio, no final do século. Era apaixonada, desde menina, por Joaquim Nabuco, mas nunca quis se casar com ele. Acabou indo viver na Europa, para fugir à pressão dos primos que diziam que ela não era capaz de administrar a fortuna que herdara. George mesmo, em seu livro premonitório, fala da condição das mulheres em 2019. Segundo ele, nesse futuro, elas ainda têm muito a conquistar, mas já estarão quase em pé de igualdade com os homens. Pelo menos é o que ele imaginou.

-- Ele mais do que imaginou – disse Carmen.

-- Não entendi.

-- George nunca lhe contou que ele recebeu uma visita do futuro?

-- Como assim, uma visita do futuro?

Então Carmen, com sua voz pausada e calma, quase despida de emoção, narrou a Evelyn a experiência atemporal de George, tal como ele narrara a ela própria.
Quando terminou, Evelyn não sabia como reagir. A amiga enlouquecera? Ou estava lhe pregando alguma peça?

-- Você não acredita que eu vou engolir essa história, não é, Carmen? Isso só pode ser fruto de sua imaginação de escritora! – exclamou.

-- Eu também não acreditava, mas, depois, com o tempo, percebi que era verdade. E você também fez parte dessa “bolha” do tempo, desses 15 dias em que Susana veio de 2019 para 1910. Alguma lembrança disso você também deve ter, Evelyn. Não se lembra de nada?

-- Na verdade, sim, me lembro – respondeu Evelyn – jamais pude me esquecer de um sonho que tive com uma mulher que vinha do futuro.

-- Você deve pensar sobre isso, Evelyn – disse Carmen, com sua racionalidade evidente – deve pensar para poder recuperar essas lembranças, afinal, você também viveu aqueles 15 dias, naquela “bolha” do tempo. E mais que isso: no dia seguinte à morte de George, eu me refugiei aqui no bangalô e pensei ter visto dois seres, duas pessoas que me apareciam como translúcidas e que tinham as mesma feições que George e eu, conclui portanto que deveriam ser seres do futuro, a mulher, certamente Susana, e o homem, tão parecido com George, um descendente dele. A mulher inclusive parecia estar fotografando o bangalô com um artefato que George me descreveu como sendo o “celular” – era assim que ele dizia – dela. Uma caixinha luminosa que poderia se comunicar com outras iguais a ela, pelo mundo inteiro, e que fazia imagens, como fotografias e filmes, com uma surpreendente nitidez. Pensei muito sobre isso. O livro que estávamos escrevendo, George e eu, pareceria, aos olhos do mundo de hoje, apenas absurdo. Falava na experiências com o tempo, nas curvas, ou bolhas, temporais, falava na possibilidade da expansão da consciência... Naquele dia, em que me dei conta que os originais haviam desaparecido e fui procurá-los, inclusive, no Castelo, eu não liguei uma coisa à outra. Mas hoje estou pensando se, aqueles fantasmas do futuro, há meses atrás, o levaram para o tempo deles. Lá, em 2019, ou seja, lá de que ano tenham vindo, talvez o mundo esteja preparado para ouvir o que estávamos tentando dizer, George e eu, naquele livro.

Evelyn olhou, atônita, para Carmen:
-- Talvez eu esteja influenciada por sua narrativa, mas agora me parece que a mulher do futuro, no meu sonho, era mesmo muito parecida com você.

-- Não foi um sonho – respondeu Carmen – Você também fez parte daqueles 15 dias em que Susana esteve em 1910. Você, segundo me contou George, conversou muito com ela, vocês foram juntas à cidade, ao atelier da Madame Celina, à sua livraria predileta, você acreditava que ela era uma moça que perdera a memória e estava disposta a ajudá-la a se lembrar... e quando George lhe contou a verdade, você a tomou por uma vigarista... Mas, depois, quando viu o celular funcionando, também acreditou... Evelyn, agora é você quem precisa se lembrar!

Enquanto Carmen falava, fragmentos de imagens vinham à consciência de Evelyn...Por fim, ela explodiu:

-- Chega dessa conversa, Carmen! Não sei se quero me lembrar. Nem sei se é verdade tudo isso que você está me dizendo. Vou voltar ao Castelo agora. Outro dia, conversaremos.

-- Como quiser, Evelyn. Mas eu tenho certeza que você se lembrará. Vá com cuidado, agora. O vento noroeste parece mais forte no meio da represa, longe da proteção dessa encosta onde estamos. Vá com Deus, minha amiga!

Navegando de volta ao Castelo, uma névoa repentina abraçou o veleiro de Evelyn e ela viu George, dentro da nuvem; ele lhe disse:
-- Minha irmã, é tudo verdade.

Quando a névoa se dissipou, Evelyn viu, assustada, que a represa estava coalhada de barcos, a vela, a motor, e que as margens estavam completamente diferentes, povoadas, cheias de casas, de enormes edificações brilhantes que se erguiam para além da barragem.
Estou sonhando – pensou.

Então uma nova névoa novamente a atingiu e, ao se dissipar, ela viu a velha e conhecida paisagem. Navegava na represa deserta, prestes a atingir o ancoradouro do Castelo onde seu marinheiro, Abel, a esperava.

Capítulo 26 – Especulando

Se o mecânico do Dr. Júlio estava certo – e deveria estar, pois afinal mostrara a eles a evidência – alguém sabotara o carro de George para que ele morresse na estrada. Mas quem? Poderia ser qualquer um. Alguém que tivesse um ressentimento, alguém que o quisesse fora dos negócios, alguém a quem ele prejudicara de alguma maneira, um empregado demitido que se julgasse injustiçado, um concorrente que temesse sua habilidade nos negócios... qualquer um... No entanto, Susana só conseguia pensar numa pessoa: seu bisavô, Antonio Expedido, marido de Carmen. De alguma maneira – julgava ela – Antonio estava sabendo do caso de George e Carmen e resolvera tirá-lo do caminho.

-- Mãe – perguntou ela à Isabel naquela noite – o que você sabe sobre o meu bisavô, Antonio Expedito?

-- Muito pouco – respondeu Isabel – Na família comentava-se que ele foi um industrial muito bem-sucedido, embora seus filhos e netos tenham se encarregado de dissipar sua fortuna. Dizem que era um homem muito bonito e impiedoso para com os empregados, para com os inimigos. Sua avó Carmen escreveu sobre ele.

-- Escreveu o que? – perguntou Susana – Eu li todos os livros que ela publicou, mãe, não há referências a ele.

-- Se você leu o romance “Uma Mulher por Detrás de um Homem”, leu a história do casamento deles.

-- Que horror! – exclamou Susana – É uma história super cruel, da crueldade masculina sobre as mulheres... Você está me dizendo que é a história do casamento deles? Mas sempre se disse que eles foram felizes, com seus 6 filhos...

-- A crueldade mental que Carmen descreve ali, é fruto de sua vida com Antonio, pode ter certeza. Muito embora, na época em que eles viveram, era para lá de comum as mulheres fingirem ser felizes no casamento. Não só porque a separação seria ainda socialmente pior para elas, mas também porque queriam preservar seus filhos dos sofrimentos decorrentes.

Susana então contou à Isabel tudo o que haviam descoberto sobre o “Ford Fênix” e sobre a provável sabotagem no carro que vitimara George.

-- Ah... foi ele! – disse Isabel – Foi Antonio, pode ter certeza!

-- Cem anos depois não dá pra ter certeza, mãe – respondeu Susana. – Podem ter existido muitas outras pessoas com muitas outras razões para querer ver George morto.

-- É verdade – respondeu Isabel – Pode não ter tido nada a ver com Antonio. Mas a minha intuição diz que teve.

-- Intuição nunca é certeza – respondeu Susana.

-- Você é que pensa, minha filha – disse Isabel – Para mim, intuição é sempre certeza. Só não o é quando confundimos o desejo de que algo se realize com a suposta intuição de que esse algo se realizará. Aí, pode ser nosso desejo mascarado em intuição. Mas não é esse o caso. Pense bem, segundo a história que você mesma descobriu nas suas andanças pelo Tempo, Antonio teria todas as razões do mundo para querer eliminar George.

-- É, mas de qualquer maneira – disse Susana – não me agrada pensar que sou descendente de um assassino.

Isabel riu:
-- Se o problema é esse, não se preocupe. Por um lado, ou por outro, todos nós, na Terra, descendemos de algum assassino.

Capítulo 27 – Investigando

O delegado Almeida recebeu o mecânico, afinal, depois de fazê-lo esperar por duas horas na recepção da delegacia de Santo Amaro.

-- Olha, doutor, eu não sei se deveria estar aqui, mas a minha consciência e a minha mulher me disseram que sim. É só uma suspeita, mas achamos melhor eu vir conversar.

-- Diga lá, homem! Suspeita de que?

-- Eu não sei se o senhor sabe, mas o seu Meyer, lá do Castelo, mandou buscar todos os pedaços do carro do filho dele que despencou da Serra do Mar.

-- Sim, eu sei do caso, um acidente muito triste.

-- Aí e que está o busílis, seu delegado. Eu sou um dos mecânicos encarregados de remontar o carro.

-- Como assim? O Meyer quer remontar o carro acidentado?

-- Pois é. Ele passou três meses recolhendo peças na serra, contratou gente para fazer isso e, agora, nós somos dois mecânicos e dois funileiros, remontando tudo, um trabalho enorme! Mas aí eu estava soldando uma ponta de eixo do carro quando reparei que ela tinha se partido de uma maneira um pouco estranha.

-- Estranha?

-- Sim. Ela estava quebrada num ponto, mas o resto do eixo parecia ter sido cortado, era um corte perfeitamente regular... Eu não sei..., mas nunca vi um acidente produzir um corte retinho daquele jeito... Fiquei pensando se alguém teria cortado aquilo, antes do acidente, justamente para que a roda se soltasse com o carro em movimento...

-- O senhor tem certeza que o que o senhor chama de “corte reto” não pode ter sido produzido no acidente?

-- Olha, doutor, poder até pode, mas é uma coisa muita estranha...

-- O senhor trouxe a peça?

-- Se eu tirar alguma peça de lá, o velho Meyer me mata.

-- Mas, se eu abrir um inquérito, baseado nessa denúncia do senhor, que está me dizendo, afinal, que isso pode ter sido uma sabotagem, o promotor vai exigir a evidência, ou seja, a peça.

-- Se o senhor fizer isso, o velho Meyer vai sofrer imaginando que o filho dele possa ter sido vítima de sabotagem. E se o senhor chegar à conclusão que isso não aconteceu? O velho já está sofrendo muito com a morte do seu único filho homem.

-- Bem vamos fazer uma coisa, senhor... como é mesmo seu nome?

-- Euclides.

-- Bem, seo Euclides, primeiro eu vou investigar se alguém teria um bom motivo para desejar a morte do jovem George. Também vou ver se alguém mexeu no carro logo antes do acidente e, só depois de confirmar isso, tomarei alguma providência. Isso deixará sua consciência, e sua mulher – riu o delegado – mais tranquilas?

-- É claro, doutor, muito obrigado.
...

A secretária entrou no escritório de Antonio, parecendo constrangida.
-- Pois não, dona Ivone. Algum problema? – disse ele.

-- Tem uma pessoa na linha telefônica que diz precisar falar urgentemente com o senhor, mas não quer me dar o nome. Diz que se trata de um problema com um automóvel, não entendi bem, mas ele insistiu para que eu transmitisse o recado e garantiu que o senhor ia querer falar com ele.

-- Ah, sim... Deve ser o dono da oficina onde levei meu carro. Pode deixar que eu atendo.

Ivone achou estranho que o Dr. Antonio aceitasse falar pessoalmente com o dono da oficina. Quando ela saiu da sala, ele levantou o gancho do aparelho e esperou que o “clic”, no fone indicasse que a secretária desligara o aparelho contíguo.

-- Alô – disse ele.

-- Eu sei que o senhor disse que eu não deveria falar nunca mais com o senhor – disse uma voz abafada e afobada -- Mas tem um investigador, lá da delegacia da cidade de Santo Amaro, que apareceu na oficina fazendo perguntas sobre o carro do moço, aquele, o senhor sabe, não é?

Naquela mesma semana o delegado Almeida foi transferido, repentinamente, para a cidade de Matão, um município criado havia menos de dez anos, na zona cafeeira do estado. Quando Euclides voltou à delegacia para saber como estavam indo as coisas, o mesmo investigador que aparecera na oficina lhe disse:

-- O delegado decidiu que não havia razão suficiente para abrir um inquérito, uma vez que todas as autoridades competentes acreditam que foi, de fato, um acidente. Ele disse que o promotor jamais aceitaria uma denúncia como essa.

-- Mas, ao menos, ele tinha um suspeito? – perguntou Euclides.

-- Olhe aqui, -- disse o investigador, já com certa irritação -- se eu fosse o senhor, trataria de esquecer essa história e não falar a ninguém sobre a sua suspeita.

Euclides entendeu o recado.
Era voz corrente entre os intrigantes de plantão na cidade de Santo Amaro, e também em São Paulo, que o rapaz que morrera era amante da noiva de um figurão paulistano muito importante.
Euclides tinha mulher e filhos e sabia que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco.


Capítulo 28 –

Um Tempo que Não Houve

Quando Evelyn entrou no Castelo, vinda do bangalô de Carmen, seus olhos bateram no livro “Luiza Homem” que ela, recentemente, vira estar fora do lugar nas prateleiras da biblioteca e, então, uma tênue lembrança a invadiu: ela própria, George e a moça com a qual sonhara (Susana, dissera Carmen) lendo na sala da lareira, ela mesma recitando um trecho do livro de Max Heindel, o Rosacruz. Pôde ouvir a sua própria voz dizendo:
“Em nossa civilização, o abismo que se abre entre a mente e o coração torna-se maior e mais profundo e, enquanto a mente voa de uma a outra descoberta nos domínios da ciência, o abismo aprofunda-se e amplia-se ainda mais, ficando o coração cada vez mais distante” ... Lembrou-se de como ela e a mulher do sonho haviam rido, porque aquele texto era absolutamente coerente com tudo o que elas duas haviam conversado naquela mesma tarde, sobre a contribuição feminina – “do coração “ ou do lado intuitivo – para o mundo apenas racional, que estava sendo criado pelos homens.

Mas como – pensava Evelyn – poderia ela estar se lembrando de algo que até então ela julgara jamais ter ocorrido?

A mesa estava posta. Matilde se aproximou:
-- Ainda bem que a senhora chegou a tempo para o jantar. Seus pais estavam preocupados, já iam mandar chamar o Abel para procurá-la...

Depois do jantar, Evelyn foi para o terraço, aquele sobre a sala de vidros. A noite estava surpreendentemente clara e os vagalumes ainda cintilavam sobre a grama. Sentou-se à mesa que lá havia e, fitando o céu, as lembranças começaram a invadi-la. Lembranças de algo que ela vivera, havia 10 anos, mas das quais jamais tivera consciência. Lembrou-se de Susana, lembrou-se de tudo... e, horas mais tarde, ciente de que sua amiga Carmen estava certa naquilo que contara, resolveu que jamais falaria sobre essa sua lembrança com ninguém, nem mesmo com Carmen. Aquela experiência, ou aquele sonho – ela não sabia bem como classificar– seria, para sempre, um segredo só seu porque, afinal, não pertencia a esse tempo, não pertencia à sua realidade e, com essa conclusão, pôde afinal ir para o seu quarto e, sob os lençóis de cetim, alcançar o merecido descanso.


Capítulo 29 – Razões da Memória

O site do tio de Leo era muito grande. Tinha crônicas de memória, que ele próprio escrevera, tinha árvore genealógica, muitos documentos, recuperados de arquivos de jornais e revistas, enfim, era de fato um trabalho grandioso e Leo, hoje, arrependia-se de ter simplesmente menosprezado tudo aquilo, de não ter navegado por ali antes, enquanto seu tio ainda vivia e poderia, então, ter conversado com ele sobre todo aquele vasto universo familiar ao qual ela jamais prestara atenção antes de encontrar o livro de George. Antes de encontrar Susana...

-- Então – concluiu Leo – o bisavô de Susana era Antonio Expedito, mas seria válida a suspeita de que o primeiro filho de Carmen e Antonio fosse filho biológico de George Meyer? Nesse caso, Susana e eu seríamos primos em terceiro grau.

-- Ninguém tem certeza – respondeu Isabel – A menos que exumássemos o cadáver, agora caveira, do meu pai e fizemos o teste de DNA. Mas quem precisa disso? É claro que ele era filho de George... Era diferente dos irmãos, não só física como também mentalmente, a personalidade dele era muito diferente da dos seus irmãos mais novos. Seus irmãos eram práticos, pé no chão, como se diz comumente, muito parecidos com Antonio Expedito: qualquer coisa por um bom negócio, que rendesse dinheiro e prestígio. Já meu pai... Era um sonhador, poeta, só via o lado lírico da vida. Foi um pioneiro na cinematografia no Brasil. Minha mãe é que tinha que administrar a parte prática, o dinheiro, essas coisas. Ele não queria nem saber de nada disso. Tanto que não morreu rico. Alguns de seus irmãos também morreram pobres, apesar de sua ambição desenfreada. Mas vocês dois, Susana e você, estão se ocupando demais com o passado. Creio que a coisa mais importante de todas é o manuscrito que vocês disseram ter trazido, no tempo, do antigo bangalô de Carmen e George. É nele que vocês devem se concentrar e em nada mais.

-- Nem mesmo no crime que matou o meu... (Susana ia dizendo “o meu amor”, mas emendou-se para não magoar Leo) ... o meu provável antepassado?

-- O crime está prescrito – respondeu Isabel – morto e enterrado como seus protagonistas. Falar nele, pensar nele, não fará justiça. Deixe isso com a justiça do Cosmos. – E riu – Vai ver que Antonio – que morreu muito cedo, em 1930, reencarnou em condições de vida bem precárias...

-- A senhora tem razão – disse Leo.

-- Senhora está no céu – respondeu a mãe de Susana – Não me sinto uma senhora, apesar dos meus 68 anos...

-- Bem – riu ele – você tem razão – Se houve algum motivo para toda essa confusão de viagens no Tempo, certamente essa razão é o livro de George e Carmen. Susana e eu vamos trabalhar nele, trazer a linguagem dele para o nosso tempo, até mesmo tentar conclui-lo, pois está inconcluso. É claro que faremos uma introdução, explicando como procedemos na edição.

-- Aproveitem – disse Isabel – e nessa introdução contem a história do Ford Fênix. Simplesmente contem, sem tomar partido, sem especular nada.

-- Nossa, mãe... Isso seria muito louco – disse Susana. Mas poderia gerar revolta entre nossos parentes, os outros descendentes de Antonio e Carmen.

-- Por que? – disse Isabel – Vocês não dirão nada sobre suspeitas. Será apenas um mistério. Houve ou não sabotagem? E quem gostaria de ver George morto? Existem muitas hipóteses... inimigos políticos, empresários rivais, empregados demitidos, sindicalistas radicais... Basta não mencionar o caso de amor entre os autores. Simples assim – riu ela --, como dizem hoje vocês jovens. Afinal, amor é uma coisa que diz respeito apenas e tão somente aos amantes e a ninguém mais.

Capítulo 30 -

Um Terreno em Uma Represa

Leo contratou uma equipe de helicópteros para vasculhar todas as represas próximas à São Paulo. Incluindo a poluída Bollangs. A ideia era encontrar uma península, que tivesse uma leve colina e se estendesse para a água, tendo assim, descidas também leves para as margens de ambos os lados, menos um. Quem encontrasse alguma coisa parecida, deveria fotografar. Leo recebeu muitas fotos, pelo whats app, mas nada ainda que fosse exatamente igual à península do Castelo, em Guarabitinga. Por fim, uma tarde, um dos pilotos lhe mandou fotos de um trecho da Represa de Juruguaçu, mais precisamente a península banhada de um lado pela baía Riviera Santa Catarina e bem em frente a uma outra, onde se localizava a Pousada Península, no munícipio de Abaçaí, a cerca de 270 quilômetros de distância da cidade de São Paulo. Leo mandou pesquisar a quem pertencia aquela área e fez uma proposta irrecusável para comprar 3 alqueires paulistas da ponta da península. Tinha agora um terreno, à beira de uma represa, muito semelhante ao terreno onde seu trisavô, o pai de George, construíra o Castelo.

Embora tivesse herdado uma grande fortuna, com a parte que lhe coube quando da morte do pai, o que ele tinha em mente era um empreendimento que, quando terminado, não lhe traria o investimento de volta, pelo menos por muito tempo. Assim, procurou as grandes corporações que eram clientes da sua agência de publicidade e tratou de convencê-las a bancar parte do empreendimento, em troca de alguma isenção de impostos e de angariar prestígio e reconhecimento da sociedade para com a sua marca.

Quando tinha reunido todas as condições necessárias para começar, ligou para Susana:
-- Vamos ao Castelo neste sábado?

-- Ao Castelo, por que? – perguntou ela – Você não está querendo repetir nenhuma viagem no Tempo, está?

-- Não – disse ele – O que eu quero é fotografar, eu mesmo, todas as dependências do imóvel, que meu bisavô construiu, por dentro e por fora. Quero ter tudo documentado, talvez coloque no site da família.

-- Leo – disse ela – prometi a mim mesma que não me arriscaria a voltar lá e, de novo, viajar no tempo. 2019 já está de bom tamanho para mim. Passei 20 anos sem ir lá e, quando fui, vivi tudo aquilo que não gostaria de repetir. Lá se vão 4 meses desde a minha promessa e a tenho cumprido. Vá sozinho, fotografe, mas não se arrisque a entrar naquela linha, aquela que você sabe que é um Portal do Tempo. Não quero perder você para outro tempo.

Leo foi, fotografou tudo e, na segunda feira, passou as fotos para um escritório que havia contratado.


Capítulo 31 –

O Modo Esotérico de Vida

Leo e Susana começaram a leitura do livro de Carmen e George no final de abril de 2019. Embora já tivessem lido pequenos trechos aqui e ali, inclusive o famoso, para eles, capítulo 6, que afirmara serem o tempo e o espaço apenas ilusões, desde as primeiras páginas a leitura se revelou muito mais surpreendente do que eles esperavam.

Os autores se apresentavam como membros e porta vozes da Antiga e Mística Ordem Rosacruz que se revelara ao público apenas no Renascimento, depois de passar os mil anos da Idade Média absolutamente submersa e escondida. Francis Bacon – diziam eles – teria sido o Christian Rosenkreuz, a quem se atribuía o renascimento da Ordem, na Áustria, em 1407. Os rosacruzes se diziam detentores de um conhecimento que remontava ao Egito Antigo, que era a herança de uma outra tecnologia, de uma outra ciência, coisas vistas, em nossos tempos, apenas como magia e, portanto, pouco levadas a sério. Diziam George e Carmen:

Haverá, no entanto, um momento em que a moderna ciência se encontrará com os velhos conhecimentos da magia, inclusive com a poesia. A poesia é uma forma única de descrever a realidade. Mudada uma sílaba num verso, o poema perderá seu sentido. A linguagem lírica é aquela que não admite nenhum equivalente, porque ela fala de uma percepção única da realidade, no que esta possui de mais belo. Já a linguagem científica é aquela que admite infinitos equivalentes. O nosso século XX viverá as maiores transformações científicas e tecnológicas jamais imaginadas por nossos antepassados. O salto do conhecimento ultrapassará os limites da gravidade e o ser humano voará, não apenas pelo ar, mas também pelo espaço sideral.

As above, so bellow. Assim na terra como no céu. Do estudo do Cosmos, das estrelas, dos planetas, também se descerá ao outro cosmos, infinitamente menor em dimensão, que está no interior de toda matéria; desvendaremos então o mistério dos átomos. Por fim, a ciência encontrará seu eco na poesia.
É o que nos espera nesse século que ora entra apenas em sua segunda década.

Seguia-se então uma longa e complexa explicação que visava demonstrar que a matéria continha em si mesma todo um universo, onde os átomos seriam como as estrelas e outros corpos celestes.

Susana e Leo pararam a leitura nesse ponto e a retomaram, já no começo do mês de maio, quando ambos encontraram, em suas agendas cheias de compromissos, tempo para tal. Retomaram a leitura no ponto em que haviam parado:

Sabedores de tudo isso, -- continuavam os autores -- nos unimos, mentalmente, para criar o que vamos chamar de Linha Atemporal, um Portal do Tempo. Escolhemos uma determinada longitude, um meridiano específico, que só nós sabemos onde fica, e essa linha é a passagem entre os tempos. Tempos esses limitados entre o nosso e o próximo século, daqui a 100 e 110 anos. Não será, entretanto, uma linha que circundará o planeta. Nós a restringimos à estreitíssima dimensão de 1 metro de largura por 1 km de comprimento. Dentro dessa pequena linha é possível transitar entre os anos de 1910 a 1919 e 2010 a 2019. Queremos, com esse experimento, demonstrar que o tempo e o espaço são apenas produtos da nossa mente e a realidade é apenas aquilo que acreditamos que ela seja. Mudando a nossa convicção, podemos mudar a realidade.


-- Meu Deus – exclamou Susana ao ler essa parte – Ele sempre soube! Ele me enganou! Como foi capaz disso? Ele sempre soube que a minha presença em 1910 era o resultado do que ele mesmo criou, dessa tal Linha Atemporal! Por que me escondeu isso? Por que fingiu não acreditar que eu viera do futuro? Ele sabia que a minha presença ali era o resultado do que ele e esses bruxos rosacruzes tinham criado!

-- Acho que ele pensava que você poderia ter medo dele, -- disse Leo -- se lhe revelasse a verdade. Você o compreenderia, se ele tivesse simplesmente dito que você estava ali porque fazia parte de um experimento mental que ele mesmo não saberia como controlar? Se ele a levou ao passado, poderia dizer a você que o tinha feito, de maneira aleatória, usando apenas a força de várias mentes? Poderia dizer que você talvez estivesse presa lá para sempre? Que ele não sabia como mandar você de volta? Ou se poderia mandar?

-- Não me agrada pensar que fui uma mera cobaia do experimento de alguns bruxos! E, pior, me apaixonei por um deles!

-- Que eu saiba – disse Leo, espantado com o ressentimento dela para com o seu genial bisavô – seus pais também fazem parte desses “bruxos”.

-- Meus pais são rosacruzes, mas jamais submeteriam alguém a passar por uma experiência dessa monta sem que essa pessoa estivesse de acordo...

-- Você estava de acordo. – Afirmou ele, com calma.

-- Como assim? O que você quer dizer?

-- Veja bem, quando entrou no Castelo e viu que as “suas” árvores não estavam mais ali, você mesma me contou, concluiu que as árvores tinham alguma coisa a ver com as mentes que por ali circulavam. Grandes árvores – pensou você – grande mentes. Você concluiu que as árvores de 2019 eram o reflexo das mentes menores, menos experientes, quero dizer. Afinal não existem graus de grandeza entre as mentes, se considerarmos que todas pertencem a um mesmo fluxo energético, ou o que o valha. Quando você pensou assim, entrou em sintonia com o passado e foi essa sintonia que permitiu que você viajasse pelo Portal do Tempo, pela linha que o meu bisavô e seus bruxos haviam criado com sua força mental. Ele não a levou contra a sua vontade. Foi a sua própria vontade, lamentando a mudança e ansiando pelo passado, que a levou.

-- Foi uma experiência maravilhosa e terrível, ao mesmo tempo. – disse ela subitamente cansada, recostando a cabeça no ombro de Leo. Estavam lado a lado no sofá do escritório de Leo, na agência de publicidade, para onde iam, nos domingos à tarde, trabalhar no manuscrito de seus bisavós.
Leo continuou a ler, em voz alta:

Nossa experiência, no entanto, nos mostrou que viajamos, de fato, no Tempo. Mas não naquilo que se convencionou chamar Tempo Real. O que fizemos foi criar outras realidades dentro de outros tempos e de nosso próprio tempo. Ao visitar outra época, criamos uma bolha, uma curva, que, até então, não existia naquele tempo. Explicamos: tudo o que vivemos estando fora do Tempo Linear se mostrou de fato uma nova realidade. Tanto que, ao voltarmos ao nosso tempo de origem, voltávamos exatamente ao ponto em que deixáramos o tempo linear. Para alguns, aqueles que nos circundavam e não sabiam o que ocorria, a lembrança daquela nova realidade, daquela curva, ou bolha, fora do Tempo Linear, podia apenas se mostrar como um sonho, alguns mesmo nem sequer se recordavam de nada. Para os que tinham consciência da passagem para um tempo diferente do seu, permanecia a lembrança daqueles dias, ou momentos, vividos fora de seu próprio tempo.

-- Evelyn, as freiras, os empregados do Castelo, o chofer de táxi, o médico, as irmãs do convento da Paulista... Teriam tido, alguns deles, a lembrança daqueles quinze dias que não existiram de fato, em 1910? – especulou Susana.

-- Se Evelyn se lembrou, não há registro. E Carmen, ela própria, conheceu George depois dessa bolha de 1910. Tanto que ela escreve, na introdução, que teve muita dificuldade em aceitar como verdadeira a experiência atemporal vivida por George – respondeu Leo.

-- E da outra vez? Quando ele veio de 1919 e ficamos juntos apenas por algumas horas?

-- Que outra vez foi essa, Susana? Você está dizendo que ele esteve com você, depois que você voltou? Por que você nunca me contou isso? Quando aconteceu?

Susana titubeou. Estava tão acostumada a dividir todas as experiências, mesmo as mais banais, com Leo. Não se lembrava de que omitira aquela vinda de George ao futuro. Fôra em janeiro, apenas três semanas depois que ela voltara do passado. Para ela, três semanas que pareceram uma eternidade. Para George, que vinha não mais de 1910, mas de 1919, quase dez anos depois, uma surpresa ambígua. Podia lembrar-se da decepção estampada no rosto dele quando passeavam pelo clube e ela lhe mostrou todas as transformações que sofrera o entorno do Castelo. Por gentileza, ele fingiu que estava admirado, que apreciava o progresso, as lindas instalações, mas Susana sabia que, de fato, ele se decepcionara. Vinha de um Castelo cercado de verde, de uma represa cercada de mata e, agora, tudo estava ladeado por construções, não só o Castelo, mas também a represa.

Fôra naquele dia, há quase cinco meses, que ela resolvera não voltar mais ao Castelo para não correr o risco de outra aventura fora de seu próprio tempo. Muitas vezes ela pensara em como abordar aquele episódio com Leo, sem magoá-lo, sem que ele sentisse ciúmes, sem que ela deixasse transparecer a enorme emoção que sentira e que, afinal, a levara àquela decisão radical, de não mais querer estar com George, para não sofrer novamente com a separação. Pensou nisso tantas e tantas vezes que acabou acreditando que já contara a Leo. Mas nunca contara e agora, acabara se traindo. Ficara, afinal, pior do que se tivesse contado. Resolveu usar a sinceridade:
-- Eu pensei tanto em como contar a você, pensei tantas vezes, que acabei me convencendo de que contara. Faz tempo. Foi no dia 27 de janeiro, 3 semanas depois que eu voltara de 1910. Fui ao clube, estava sentada ali, num banco de pedra, no caminho das árvores, quando a névoa me trouxe George. Ele vinha do dia 9 de março de 1919, um mês apenas, portanto, antes de sua morte. Estava mais velho, linhas em torno dos olhos, alguns cabelos brancos...

-- Você ainda o ama! – exclamou ele, ressentido.

Susana olhou para ele e não teve coragem de dizer nada.

-- Foi ao clube sozinha, naquele dia, -- continuou ele -- porque pensava poder voltar para George e o seu pensamento, foi o seu pensamento, que o trouxe até você! – e, amainando o tom irritado de sua voz, continuou: -- Por isso não me contou. Você foi lá, na esperança de encontrá-lo,
de voltar no tempo e, em vez disso, o trouxe até você. O que aconteceu então? Me diga, Susana!

Então Susana falou da decepção dele, da decepção que ele não disse, mas que sentiu nele, enquanto caminhavam pelo Castelo de 2019.
-- Ficamos juntos apenas duas ou três horas – disse ela, concluindo a narrativa.

-- E então – respondeu ele – já posso imaginar o resto... Foi aí que você decidiu não voltar mais lá, você percebeu que era muito sofrimento correr o risco de tê-lo apenas por alguns breves momentos e preferiu não se arriscar mais! Ah, minha querida, sua voz, seus olhos, tudo muda quando você fala nele. É a ele que você ainda ama, tentando fingir que ama a mim. Eu sou apenas uma cópia malfeita do seu amor. E, para o bem de nós dois, é melhor nos separarmos. Vamos dar um tempo. Vamos esperar que esse seu amor impossível se esgote e talvez então, um dia, você possa realmente me amar. Ou esquecer tudo, esquecer a ele e a mim.

-- Não, Leo – disse ela com lágrimas nos olhos – Ao longo desses meses todos em que nos amamos, em que convivemos, eu aprendi a amar você. Ou você acha que eu posso passar o resto da minha vida amando um fantasma? Vivi apenas 15 dias com George, dos quais metade nem estive com ele, estava no convento, depois no hospício... Estou com você há meses e, juro, Leo, tenho sido feliz com o nosso amor. Como saberei se George não me decepcionaria se convivêssemos mais tempo? Afinal, ele é um homem do século XX, do começo do século XX, com a cabeça dos homens daquele tempo, haveria conflito entre nós se prosseguíssemos convivendo...

Leo viu as lágrimas que desciam pela face de Susana e as lágrimas lhe deram esperança de que ela o estivesse realmente amando:

-- Desculpe-me, meu amor – disse então – Mas é um tanto complicado para mim ser rival de meu próprio bisavô. Tenho ciúmes do brilho que vejo em seus olhos quando você fala nele.

-- Leo – disse ela – Foi uma grande paixão a que eu senti por George. Mas, como eu disse, certamente a paixão, se pudéssemos realmente conviver, se transformaria numa grande decepção. Quando eu conheci você, estava apaixonada por ele. Depois, com o tempo, percebi que podia amar você como o teria amado. Paixão não é amor, Leo. Paixão dá e passa, como os resfriados. Nós dois, nesses meses dessa nossa intensa convivência, fomos construindo o amor. Isso é muito mais sólido, muito mais real, do que a ilusão criada, dentro da gente, pelas paixões.

Leo puxou Susana para si, deitando-lhe a cabeça no ombro, acariciando os cabelos dela e disse:

-- Está bem. Acredito em você, minha amada. Agora vamos sair, vamos dançar em algum lugar, tomar uns uísques, rir, viver o nosso tempo, esse tempo. Semana que vem continuaremos a leitura. Chega, no momento, desse passado, desse modo esotérico de vida.

 

CONTINUA...

em breve:

Capítulo 32 - A Passagem Natural