Índice:
Capítulo 17 - Um Modo
Esotérico de Vida
Capítulo 18 - Extensões no
Tempo
Capítulo 19 - O
Pensamento e Sua Força
Capítulo 20 - O Real e a Ficção
Capítulo 21 - Reencontro
Capítulo 22 - História
Inventada
Capítulo 23 - À Sombra da Morte
Capítulo 24 - O Ford Fênix
Capítulos 25 a 31
Capítulo 17 –
Um Modo Esotérico de Vida
Carmen levou semanas, depois da morte de George, para começar a chorar.
De repente, tudo à sua volta, era alegria. A família de Antonio,
satisfeitíssima porque, finalmente, os “pombinhos” tinham resolvido
marcar a data do casamento, a sua própria família que respirara aliviada
pela morte do amante da filha, pois, afinal, aquela situação gerava uma
enorme ansiedade na família, que temia não só pela reputação da jovem
como por seu próprio tradicional sobrenome.
A agenda, para tantos preparativos, a cerimônia religiosa, a civil, os
trajes, a festa, os muitos vestidos, desde o de noiva até os que usaria
na lua-de-mel, a viagem, os convidados, os convites, os padrinhos, o
imenso trabalho na cozinha, o bolo, o fotógrafo, o cinegrafista... A
agenda era cheia e ela mal conseguia escrever suas crônicas semanais
para o Expresso Popular, quanto mais trabalhar nos seus livros.
Carmen se deixara absorver por aquele turbilhão de preparativos que, por
milagre, conseguiam afastá-la um pouco da dor pela perda de seu amante,
seu amor, seu homem, sua inspiração... Sem ele, todo o brilho se fôra e
lhe sobrara a sua própria racionalidade, tão rara em seu sexo;
sobraram-lhe ainda as letras e a sua luta pelo direito das mulheres,
essas infelizes cidadãs de segunda classe, condenadas ou a uma vida
fútil, se ricas, ou a uma vida de incontáveis sofrimentos, se pobres.
Jamais Carmen parara para pensar até onde iriam, ela e George, naquele
caso de amor escondido, até quando ela conseguiria postergar o noivado
com Antonio, até quando... Ela só queria saber de viver aquela
felicidade, aquele amor naquele bangalô, a comunhão de ideias e de
ideais que existia entre eles. E, antecipando em quatro décadas o
pensamento existencialista, imaginava apenas que o futuro não existia e
pronto. O importante era viver o presente e o presente era George. De
repente, sem aviso, o presente se tornara apenas a ausência de George.
No dia seguinte à morte dele, refugiara-se no bangalô da Guarabitinga e
tivera aquela visão (ou teria sonhado? – perguntava-se depois) com um
casal supostamente do futuro, supostamente iguais na aparência a George
e a ela. Sabia – porque George lhe contara – que a mulher que viera do
futuro era sua descendente e era também incrivelmente parecida com ela
própria. “Podia ser sua irmã gêmea” – dissera ele. Mas, apesar da visão,
como acreditar em tudo aquilo? George escrevera, no livro que pensavam
publicar juntos, que os tempos corriam em paralelo e, quando alguma
consciência “pulava” fora de uma linha para outra linha, criava uma
espécie de bolha, ou círculo que existia, de fato, fora do tempo linear
e, quando se voltava dessa “viagem”, voltava-se exatamente para o
momento em que se partira... Carmen tinha agora a certeza que jamais
deixaria que esse livro viesse a público. Ririam dele, ririam dela,
maculariam a memória de George. Melhor deixar para a posteridade apenas
o pequeno romance que ele escrevera, de ficção sobre viagem no tempo,
não um tratado filosófico que de maneira alguma seria levado à sério
pelos estudiosos.
Por isso, naquela tarde, uma rara tarde de sol em São Paulo, já grávida
de seis meses e certa de que o filho que trazia em seu ventre era de
George e não de seu marido, Carmen voltou ao bangalô disposta a esconder
ou mesmo destruir os originais de “Um Modo Esotérico de Vida”.
Cumprimentou os caseiros e foi direto para a pequena gaveta do aparador,
onde ela e George haviam deixado os originais, quando da última leitura
que haviam feito. Mas não estavam lá! Perguntou aos caseiros, procurou
em todas as gavetas de todos os cômodos, entre as estantes de livros,
numa busca tão frenética que até os caseiros se puseram a procurar
também. Simplesmente desaparecera!
-- Não teria o sr. George levado os originais da última vez em que
estivera aqui? – perguntou aos caseiros.
Não. Da última vez, George estivera lá com ela mesma, saíram juntos e
ele não levara o manuscrito. Mesmo assim, Carmen resolveu atravessar a
represa e ir até o Castelo. Tinha chegado ao bangalô por terra, com seu
chofer, o único capaz de enfrentar o lamaçal daquela estradinha que
corria às margens da represa e que dava acesso, inclusive, a um conjunto
de casas de veraneio que começavam a se erguer num luxuoso loteamento
chamado Riviera Paulista.
Mandou preparar seu barco. O caseiro disse:
-- Dona Carmen, é melhor eu levar a senhora. O vento vai virar e a
represa vai encrespar, a senhora pode ter problemas para voltar e no seu
estado...
Ela riu:
-- Epaminondas, o “meu estado” não é uma doença...
O marinheiro encarregado dos barcos do Castelo, seo Abel, veio recebê-la
no pequeno ancoradouro.
-- Dona Carmen, ninguém me avisou que a senhora viria hoje...
-- Eles estão em casa? – perguntou ela – Eu não vinha. Resolvi de
repente.
-- Dona Augusta e Evelyn estão no terraço alto, eu ainda as vi há pouco.
Vão ficar contentes em vê-la. – E fitando a barriga de Carmen – A
senhora quer que eu peça ao cocheiro para levar a senhora na charrete
até o Castelo?
Carmen riu de novo:
-- Vocês homens pensam que gravidez é doença! – O Epaminondas queria me
trazer, achando que era perigoso eu atravessar sozinha de barco. E o
senhor agora, seo Abel, acha que não sou capaz de subir uma rampa de
míseros 100 metros?
Abel riu também.
-- A senhora sabe, dona Carmen, a minha mulher teve nossos cinco filhos,
trabalhando normalmente até a hora de dar à luz... Lavando, passando,
costurando...
-- E você acha que eu não posso subir uma rampa? – riu de novo Carmen.
-- A senhora manda – respondeu Abel.
Matilde, a governanta, conduziu Carmen ao terraço alto. Evelyn
levantou-se, com um sorriso sincero e alegre, ao ver a amiga.
Trocados os cumprimentos, com as devidas alusões ao bebê que Carmen
carregava em seu ventre – e Carmen sabia que, naquela família, todos
desconfiavam que o seu bebê fosse, na verdade, de George – Evelyn disse:
-- Mas a que devemos a honra de ter você hoje aqui conosco?
-- Lamento dizer isso – respondeu Carmen – Mas o fato é que George e eu
estávamos trabalhando nos originais de um livro que deveria estar numa
gaveta em nosso bangalô. Mas não está, simplesmente. Os caseiros e eu
vasculhamos todas as gavetas, todas as possibilidades e então eu pensei
que talvez George tenha trazido os originais para cá, que talvez
pudessem estar em seu escritório na torre...
-- O escritório não existe mais – disse Evelyn. – Depois do passamento
de George nós retiramos tudo o que havia lá. Livros, papéis, pastas,
escrivaninha, máquina de escrever... enfim, tudo. Fizemos lá uma estufa
de orquídeas, a flor que ele mais gostava. Eu mesma retirei tudo o que
havia lá e posso garantir a você que não havia nenhum original, a não
ser o do livro que editamos, afinal, no ano passado. Mas, de qualquer
maneira, posso levá-la ao armário, na nossa Biblioteca, onde estão
guardadas as coisas que estavam no escritório.
A Biblioteca a que Evelyn se referia era um canto, à esquerda da entrada
da casa, um nicho sob a escada. Entre as estantes havia um armário
vertical, envidraçado e lá estavam, muito bem arrumados, os materiais e
instrumentos do escritório de George, inclusive a máquina de escrever.
Os olhos de Carmen se encheram de lágrimas. Evelyn, para fingir que não
via a emoção da amiga e evitar-lhe o constrangimento, virou-se para o
lado, notando um volume na estante, um livro que estava fora do lugar.
Disse então, pegando o exemplar:
-- Que estranho! Esse livro, “Luiza Homem”, eu o li há bastante tempo,
mas tenho certeza que o coloquei de volta no lugar certo, na estante dos
escritores brasileiros. Ninguém nessa casa, além de mim (e de George,
acrescentou em pensamento) lê autores brasileiros. Minha mãe mal fala
português e meu pai acha que os “nativos” não têm capacidade
intelectual...
Carmen lembrou-se que George lhe dissera que Susana, quando estivera com
eles, pegara exatamente aquele livro para ler. E refletiu: se fôra
Susana quem colocara o livro ali, então a tal curva fora da linha do
tempo, que George tanto teorizava, deixava sim os seus rastros no
chamado tempo-linear. Se estava certa, então algum outro rastro da
passagem de Susana pelo Castelo, em 1910, poderia estar presente ainda
ali, dez anos depois... Logo, porém, afastou o pensamento. O livro em
questão não teria passado dez anos na estante errada... ou teria?
Num impulso, disse à Evelyn:
-- Você me daria um caro presente?
Evelyn olhou para Carmen, surpresa:
-- Um presente?
Carmen respondeu:
-- Sim, para mim, inestimável. Mas não me ofenderei se a resposta for um
não. Afinal, o que eu quero tem também muito valor para a sua família...
-- Mas o que? – perguntou Evelyn.
-- A máquina de escrever. A máquina de George. Estarei mais perto dele,
meus dedos teclando as mesmas teclas que os dedos dele teclaram.
Evelyn hesitou por um segundo e depois respondeu:
-- Sim, é claro, você deve mesmo ficar com ela.
Na máquina de escrever de George, Carmen Fomm de Vasconcellos criou,
dali em diante, todas as suas obras literárias. Mas nunca foi capaz de
descobrir onde havia, afinal, ido parar o manuscrito de “Um Modo
Esotérico de Vida”.
Capítulo 18 –
Extensões no Tempo
Evelyn lembrava-se vagamente de que tivera um sonho com uma mulher que
viera do futuro. Uma mulher com a face e o corpo de sua amiga Carmen.
Já, a própria Carmen, julgava que sonhara com aquele casal, supostamente
vindo do futuro, a invadir-lhe o bangalô, um dia depois da morte de
George. Se toda aquela loucura de viagens no tempo era real, então
doía-lhe a consciência de que George amara de fato Susana e que vira
nela, Carmen, apenas o reflexo de um amor inatingível, que se fôra de
volta 109 anos, para a frente, no tempo.
Assim também sentia-se Susana, supostamente amando Leo, quando, de fato,
amava George. Mas seriam ele, George, Leo, Susana e Carmen, apenas
extensões da mesma pessoa no Tempo?
Ali estava o Castelo. Imune aos amores, imune às dúvidas, imune à
passagem do tempo. Abrigara inúmeros personagens ao longo de décadas e,
certamente, abrigaria ainda muitos outros mais. As pessoas passam, mas o
que elas constroem permanece por muito mais tempo que o simples sopro da
vida humana. O que são 80, 90 anos de vida diante da imensidão da
história do ser humano sobre a Terra?
Susana refletia sobre o sentido daquela experiência temporal que vivera.
Por que ela estivera em 1910? Por que se apaixonara por George? Por que
vivera aqueles 15 dias fora do tempo linear? Mistérios..., mas nada
demais, afinal, já que a própria vida era um mistério. Às vezes pensava
que os humanos viviam tão ocupados com suas lutas – fossem estas pelo
poder, pelo sucesso profissional, pelo reconhecimento intelectual –para
justamente se esquecer do grande mistério que era o simples fato de
estar vivo e de, um dia, morrer.
Tudo o que estava vivenciando, porém, trazia-lhe uma mensagem: a morte
certamente não seria o fim, mas um recomeço. Ela, por exemplo, poderia
ser, sem dúvida, a extensão de sua bisavó Carmen. Ou talvez, fossem
simplesmente, Carmen e ela, a mesma pessoa, em diferentes pontos no
Tempo.
Colocava suas dúvidas para Leo, naquele almoço tardio de sábado, no
restaurante do clube.
E foi ele, com sua racionalidade tipicamente masculina, quem lhe deu uma
resposta simples e direta:
-- Você viajou no tempo para que, um dia, como agora, pudesse trazer a
obra de George e Carmen à luz. Se essa obra viesse à público na década
de 1910 ou mesmo mais tarde, nos revolucionários anos 1920, seria
simplesmente ridicularizada. Hoje, quando a comunicação é instantânea e
completa, é bem mais fácil, para qualquer um, compreender esse lado
esotérico da vida, esse mistério da consciência se expandindo além do
tempo e do espaço. A ficção científica se encarregou de preparar nossas
mentes para um salto ainda maior do que a World Wide Web. Agora, em
2019, qualquer loucura torna-se uma possibilidade a ser considerada.
Nossos antepassados, tanto George quanto Carmen, estavam à frente do seu
tempo.
-- Isso é verdade – respondeu Susana. – Tanto que Carmen só teve seu
talento reconhecido décadas depois de sua morte. E George, antes mesmo
de eu ter lhe contado o que aconteceria no século, já antevia as
conquistas do século XX. Mas ainda sobram porquês. Viajar no tempo para
“corrigir” alguma coisa que não deveria estar ali, naquela passado, mas
estava? Por que George e Carmen estariam à frente do seu próprio tempo,
escrevendo um obra que talvez só fosse revelada um século depois? Nós
trouxemos o trabalho deles para o nosso hoje... e agora? O que faremos
com isso?
-- Ora, vamos editá-lo, é claro – respondeu Leo com simplicidade.
-- Com eles dois como autores? Com explicaremos isso? – perguntou ela.
-- Isso é moleza – respondeu Leo – Diremos que encontramos esse
manuscrito, assinado por nossos antepassados, no meio de alguns
documentos de família que foram sendo preservados ao longo do tempo.
-- Não no Castelo – riu Susana – O Castelo, como clube, não tem memória
alguma. Nem mesmo fichas de sócios antigos, documentos da fundação,
nada. Não tem arquivos, como se alguém não quisesse que se vasculhasse o
passado dessa instituição.
-- Mas na casa dos meus pais – disse Leo – que é também a minha casa
hoje, pois voltei para lá depois do meu divórcio, existem muitas caixas
enormes, guardadas no porão, com documentos preservados, como certidões
de nascimento, casamento, óbito... toda a memória da família. O porão é
climatizado e uma bibliotecária foi contratada para digitalizar todos
aqueles documentos... Meu pai era um entusiasta da memória e o meu tio,
irmão dele, construiu um site na Internet com a história das nossas
origens, com arvore genealógica, fotos antigas e também antigos
documentos digitalizados. Foi lá que eu achei a história de George, você
sabe.
-- Sim, você me contou – respondeu Susana.
-- Então teria sido perfeitamente possível encontrar um manuscrito desse
meu antepassado, George, no meio de tantas memórias preservadas. Assim
como encontrei, depois da morte do meu pai, o próprio livrinho que
acabou me trazendo ao Castelo e à você.
-- Pois é – exclamou Susana. – Não teria sido mais fácil a Vida, ou
Deus, ou o Destino, fazer com que encontrássemos esse manuscrito em
nossos arquivos familiares em vez de aprontar toda essa confusão de
viagens no tempo? Se o objetivo da vida era resgatar essas ideias um
século depois, por que não o fez da maneira mais simples e lógica?
-- Sabe – disse Leo – há muito venho compreendendo que a Vida nada tem
de simples e, menos ainda, de lógica.
Capítulo 19 –
O Pensamento e Sua Força
-- Simplesmente não tem lógica – esbravejou, já perdendo a paciência o
Dr. Reynaldo Luiz, eminente professor de neurologia da USP – que
atendia, em seu luxuoso consultório particular, o pai de Susana, Mário,
naquela manhã de segunda feira. – A sua tomografia mostra perfeitamente
as áreas do seu cérebro que foram afetadas pelo AVC e as consequências
disso deveriam ser uma dificuldade de caminhar e a lentidão motora de
uma maneira geral. No entanto, você entrou aqui caminhando como sempre,
sem claudicar, sem titubear. Eu confesso que não tenho uma explicação
científica para isso e vamos repetir o exame. Deve ter havido alguma
confusão no resultado, uma troca, improvável é claro, mas menos
improvável do que a realidade.
Mário acabara de contar ao médico, seu amigo de longa data, desde que
ambos começaram a frequentar o mesmo clube de golfe havia quase quatro
décadas, que ouvira, durante a sua permanência na UTI, todas as
conversas dos médicos, bem como os trágicos prognósticos traçados por
eles para o seu quadro de saúde pós AVC.
O médico dissera que ele sonhara. Que teria sido impossível, nas
condições em que se encontrava então, ter ouvido qualquer coisa, estava
inconsciente.
No entanto, apesar de não poder dar o braço a torcer, Dr. Reynaldo sabia
que era verdade, porque não era provável que um leigo na Medicina, como
seu amigo Mário, pudesse reproduzir com tal perfeição os diálogos
travados, à cabeceira de seu leito na UTI, em puro mediques.
O fato é que Mário, ouvindo a sentença que os médicos lhe vaticinavam,
revoltara-se e, usando toda a força de seu pensamento, reagira dizendo a
si mesmo que seu cérebro encontraria outros caminhos para superar as
dificuldades motoras e que ele sairia do hospital andando com suas
próprias pernas e carregando nelas a sua extrema capacidade de
superação. Afinal, ele aprendera, ao longo de décadas de estudos
esotéricos, que a mente tudo pode, desde que não paire sobre ela a menor
sombra de dúvida.
E agora, duas semanas depois do AVC, lá estava ele, desafiando seu amigo
neurologista a explicar, em bases científicas, como teria ele conseguido
o que, ao outro, parecia um milagre.
Da mesma maneira que Mário recusara-se a incorporar suas dificuldades
corporais, Dr. Reynaldo recusava-se a acreditar nessa conversa fiada do
amigo sobre “força da mente”. Ora, se assim fosse, argumentava ele, por
que a ciência teria percorrido longos e tortuosos caminhos para
encontrar soluções e/ou paliativos para as enfermidades das quais poucos
estavam livres, ao longo da vida?
-- Nunca – dizia o doutor ao amigo – em nenhum congresso internacional,
um caso como o seu foi mencionado, sequer cogitado. Isso que você afirma
ter conseguido apenas com a força de seu pensamento não está descrito em
nenhum dos anais da Medicina. Hoje em dia, sabemos bem, o pessoal da
psicossomática tem várias explicações para a atuação da mente sobre o
trânsito químico do corpo, a emoção é química, dizem eles. Mas pouco
podem provar. É claro que conhecemos a influência dos sentimentos na
produção de hormônios e outras substâncias, como neurotransmissores, e
temos explicações lógicas para essas influências. Mas não para casos
como o seu. O mapa do seu cérebro indica claramente as limitações que o
seu corpo sofreria em tal situação. Portanto, a única coisa que posso
aceitar é que essa tomografia não seja, de fato, do seu cérebro. Alguém
cometeu um erro imperdoável, trocou, não posso imaginar como, sua
tomografia por outra.
Mário riu:
-- Reynaldo, você como homem culto que é, sabe muito bem que, ao longo
da História, a ciência sempre negou a evidência que não podia explicar,
até que pôde. Mas existem conhecimentos que estão de fora do rol do
conhecimento científico atual. São verdades empíricas que alguns grupos
conseguiram preservar ao longo de séculos, verdades que, primeiro pela
religião e depois pela própria ciência, por não conseguir explicá-las,
vêm sendo varridas para baixo dos tapetes ou da racionalidade ou da fé
cega. Você sabe que eu sou Rosacruz. Minha mulher e eu, aliás, porque,
diferentemente dos maçons, os rosacruzes não menosprezam a inteligência
e a capacidade do sexo feminino. Pelo contrário, reconhecem que elas, as
mulheres, têm uma maior capacidade intuitiva do que nós, homens,
justamente porque são mães e a natureza as dotou dessa capacidade para
que pudessem melhor preservar as suas crias. Como rosacruzes, aprendemos
que, dentro de determinados limites, podemos moldar as nossas funções
cerebrais e as de outros órgãos do nosso corpo. Só isso. Para nós, como
dizem hoje os jovens, simples assim.
-- Eu insisto – disse Reynaldo – Por que teríamos empreendido toda essa
longa jornada da pesquisa científica e farmacêutica se a solução das
doenças dependesse apenas da força do nosso pensamento?
-- Porque a humanidade optou, nos últimos milênios, pelo pensamento
racional. À medida que negou a contribuição do lado onírico, o lado
direito do cérebro, como diria Carl Sagan, e foi percebendo que a
ciência e a tecnologia podiam produzir maravilhas, como de fato as
produzem, esqueceu-se da alma, dos sonhos, do conhecimento intuitivo.
Minha mulher escreveu um livro – Todas as Mulheres São Bruxas – que
propõe uma nova visão da luta feminista, a luta pelo direito de
incorporar ao mundo criado exclusivamente pela racionalidade masculina,
a profunda intuição feminina, o conhecimento empírico das magas, que a
igreja transformou em bruxas. Mulheres que eram poderosas, no princípio
da Idade Média, classificadas como pertencentes aos povos bárbaros,
classificadas como bruxas, cuja sabedoria sobreviveu apenas graças à
Tradição oral.
-- Sei – zombou Reynaldo – elas davam um passe com as mãos e o doente se
curava...
-- Longe disso – respondeu Mário – Elas sabiam manipular as forças
presentes na natureza, na essência das ervas, das plantas. Hoje, a sua
querida USP, ou parte dela pelo menos, está redescobrindo a eficácia dos
medicamentos fitoterápicos, produzidos a partir das moléculas extraídas
dos vegetais. O homem estritamente racional se afastou da natureza e a
está, inclusive, vilipendiando. Árvores, florestas, plantas, são seres
vivos. Têm, a sua própria linguagem. Animais não são apenas bestas. Tudo
o que está vivo, sobre a Terra, está entrelaçado e é interdependente,
assim, como tal, se ajudam, seres humanos, vegetais e animais. E, além
disso: as above, so bellow. O que está em cima é igual ao que está
embaixo. Assim na terra como no céu. Somos feitos do pó das estrelas,
meu caro amigo. O universo e nós somos uma única coisa.
Reynaldo estava impressionado com o discurso e com a convicção de seu
amigo. Ainda assim, tentou brincar:
-- Não sabia que um eminente acadêmico como você, destinado a formar
administradores de grandes conglomerados do mundo corporativo, podia ter
alma de poeta.
-- A vida é poesia pura, Reynaldo. A poesia é a nossa única salvação.
-- Se você tivesse feito Medicina, meu amigo, não acreditaria nisso.
Para nós, médicos, a vida é puro sofrimento. E a salvação talvez esteja
nas células troncos, na manipulação genética. Hoje engatinhamos naquilo
que estamos chamando de Medicina Personalizada, ou seja, a partir da
análise genética de um indivíduo fabrica-se um medicamento adequado
apenas para ele. – disse o médico, antes de passar suas recomendações
finais ao amigo, a quem observou, intrigado ainda, sair caminhando
perfeitamente de seu consultório.
Capítulo 20 –
O Real e a Ficção
Isabel pensava na morte. Susana contara a ela que George, seu amor de
1910, morrera apenas 9 anos depois, em 1919, num trágico acidente
automobilístico. Susana e Leo haviam descoberto, inclusive, o bangalô
onde George e Carmen se escondiam para viver o seu amor proibido. Depois
da morte de George, Carmen casara-se afinal com Antonio Expedito e ela
própria, Isabel, e sua família, descendiam dessa união. Já Leo,
descendia da irmã de George, Evelyn. Estavam todos entrelaçados no
Tempo. E, agora, Susana se recusava a se entregar ao amor de Leo,
insistindo que era George que ela amava. Bullshit, pensava Isabel. Sua
filha estava apenas com medo do amor. Da mesma maneira que George amara
a Susana de 2019 e depois amara Carmen, de seu próprio tempo, Susana
poderia amar Leo, que nada mais era do que a reencarnação de George,
assim como Susana certamente era a reencarnação de Carmen. E ela,
Isabel, quem era? Escritora, como sua antepassada Carmen, com 15 livros
publicados, mas ainda longe de ter seu talento reconhecido. E já estava
com 68 anos. Mais do que Lya Luft, que tivera seu reconhecimento aos 65.
Mas também – pensava ela – depois disso, sumira...
Quando jovem, Isabel, que era uma leitora voraz, muitas vezes duvidara
de seu talento. Não queria pagar para editar um livro, por isso só
conseguiu um editor que a bancasse quando tinha 49 anos de idade. Depois
disso, foi publicando quase um livro por ano, todos bancados pelos
editores. E se orgulhava disso. Agora, porém, estava tendo editados
livros em parceria com pessoas que tinham algo a dizer, algo a narrar e
elas próprias bancavam os livros. Não era ruim. Mas estava longe de ser
o que seus sonhos previam. Ser escritor, no Brasil de 2019, era uma
perspectiva não muito boa. Escritora? Piorou. O Brasil tinha poucos
leitores. No entanto, apesar disso, muito retorno ela tivera por suas
obras, muitos leitores a idolatravam, escreviam mensagens para ela por
email ou pelas redes sociais, alguns muito emocionados com as suas
obras. Mesmo assim, pouquíssima visibilidade. Um amigo, que morava na
Europa, dissera a ela: “Se você fizesse tudo isso o que faz, em
Portugal, estaria milionária”. Não era exatamente esse seu gol. Ela
queria ser lida, ser reconhecida. Não precisava ficar milionária. Embora
tivesse nascido rica, hoje, com o marido professor acadêmico e suas
poucas vendas de livros, conseguia manter o status e a sobrevivência.
Mário sobrevivera ao AVC. Mas já estava perto dos 80 anos de idade. Ela
tivera um enfarte, aos 59, por estresse, disseram os médicos. Hoje
pensava na morte. Não iria morrer, ah, claro que não, sem alcançar o
reconhecimento de suas obras.
No entanto, sabia ela, muitas vezes a morte era uma surpresa. Fôra
inesperada, para George. Fora inesperada para sua amiga, Luciene, com a
qual escrevera um romance maravilhoso. Jamais conhecera pessoalmente
Luciene. Ela lhe contara suas aventuras pelo Facebook, Isabel as
romanceara e, tal como George, com apenas 36 anos de idade, Luciene
morrera, uma semana depois do livro pronto, num acidente
automobilístico.
“Para morrer, basta estar vivo” – brincava seu pai, Alfredo, sempre com
seu humor admirável.
Para Isabel, no entanto, a morte, se nada tinha de humor, tinha tudo de
naturalidade. “Morrer é da vida”, cantava Noel Rosa. Mas ela não
morreria, ah, não morreria, antes de ver seus livros conquistarem o
mundo.
Talvez esse, que ela acabaria escrevendo, sobre o Castelo e as viagens
de sua filha no tempo, afinal, alcançasse o que ela almejava.
Compreendia que Susana poderia se revoltar quanto a ter sua vivência
transformada em romance, em ficção. Mas sabia também que sua filha era
generosa o suficiente para permitir que ela transformasse em livro esse
imenso mistério que estava vivendo.
Pelo menos – pensava Isabel – antes que eu me vá.
Afinal, nenhuma das 7 bilhões e meio de pessoas sobre a Terra sabia por
que estava aqui. Podia acreditar que tinha uma missão, podia crer numa
razão, mas saber mesmo... ah... ninguém sabia! Isabel tinha uma curiosa
teoria. Ela pensava acreditar que os bebês sabiam; que os bebês tinham a
consciência das lembranças de outras vidas que tinham vivido e, por
consequência, também das passagens pela morte; depois se esqueceriam
completamente para poder viver um nova vida, livres dos ranços,
tristezas e até amores que pudessem trazer de outras encarnações. Por
que – costuma ela perguntar – ninguém se lembra de nada que viveu até os
dois nos e meio ou três anos de idade? Porque – ela mesma respondia –
porque esse é o tempo em que nos lembramos de outras vidas que já
tivemos. Quando ela vinha com esse discurso, Mário sempre brincava:
-- Ah..., mas eu me lembro perfeitamente dos meus dois ou três primeiros
anos de vida, me lembro daquelas maravilhosas bolsas de pele que
provinham a minha alimentação, o sabor maravilhoso daquele leite único,
apenas meu...
-- Não seja mentiroso – esbravejava Isabel – É claro que você não se
lembra, ninguém se lembra.
Recentemente Isabel lera na Internet um artigo sobre uma pesquisa,
realizada no Canadá, com 140 crianças, entrevistadas aos 4,5 anos de
idade e, depois, com 7,8. As menores tinham lembranças anteriores, mas,
quando cresceram, relataram coisas diferentes, como se aquelas primeiras
lembranças, aos 4 ou 5 anos, tivessem sido deletadas de suas memórias.
Os cientistas então falavam muita coisa sobre a capacidade cognitiva na
infância, mas, de fato, não chegaram à conclusão alguma sobre o porquê
daquilo que eles próprios chamam de “amnesia infantil”.
-- Não podemos nos lembrar de outras vidas – dizia Isabel – Traríamos
rancores, sofrimentos, traumas e até alegrias e amores de passagens que
foram, afinal, encerradas. Uma nova vida tem que ser livre de quaisquer
sentimentos e impressões anteriores. Por isso nos esquecemos de outras
encarnações, mas as memórias estão guardadas num hardware, inacessível
por enquanto, dentro do nosso cérebro.
-- E por que nos lembraríamos de outras vidas, ao nascer, então? –
perguntara um dia, irritada e achando toda aquela conversa materna um
tanto ridícula, a então adolescente Susana.
-- Porque precisamos construir as bases emocionais da vida que estamos
iniciando, precisamos saber o que faremos diferente, desta vez. Então
depois nos esquecemos dos fatos, mas estamos emocionalmente prontos para
continuar nosso longo e eterno aprendizado.
-- Aprendizado para que?
-- Para um dia viver um vida plena, para poder ensinar às novas almas.
-- Ai, mãe – respondera então a jovem Susana – Eu acho que você é
louquinha de pedra...
Agora, enquanto Isabel pensa na morte e se sente absolutamente ridícula
por conseguir, diante da inexorabilidade da morte, importar-se com
questiúnculas fúteis do cotidiano, Susana pensa na vida e no mistério do
Tempo.
-- Minha mãe está escrevendo um livro sobre nós – disse Susana à Leo –
um livro sobre as nossas viagens no tempo.
-- Hum... – fez ele – é um belo presente, um enredo, que você está dando
a ela.
-- Você não se importa? – perguntou Susana.
-- Não – respondeu Leo – Acho até muito legal, mas ela vai dar nome aos
bois?
-- Ah... acho muito pouco provável – respondeu ela – Minha mãe tem a
capacidade de transformar o que é real em ficção.
Capítulo 21 -
Reencontro
George e Carmen viviam seu caso de amor, sempre no bangalô. Quando se
encontravam socialmente em alguma festa ou jantar, ou até mesmo no
Jockey Club (que à época localizava-se à Rua do Rosário, na Mooca),
portavam-se como dois estranhos, apenas conhecidos. Isso, é claro,
incomodava a ambos. Tentavam sempre viver em plenitude as suas horas
juntos, produziam textos, conversavam sobre todas as questões políticas,
filosóficas, em profundidade e se amavam satisfatoriamente. Mas, entre
eles, pairava a sombra de Susana. Carmen sabia que, se fosse verdade
aquela história de viagem no tempo (e, embora relutasse em admitir
racionalmente, no íntimo sabia que era verdade, sim) então George talvez
a amasse por sua semelhança física com sua descendente. E George sentia,
em Carmen, uma racionalidade (não comum ao sexo dela, admitia) que nunca
sentira em Susana. As comparações eram inevitáveis. Muitas vezes, tendo
Carmen em seus braços, ele desejou estar com Susana. Mas são a mesma
alma, são a mesma pessoa, em tempos diferentes – dizia ele, em
pensamento, tentando convencer a si próprio. No entanto, apesar de ser
relativamente feliz com Carmen, George ansiava por Susana, por seu
celular cheio de fotografias do futuro, por seu sorriso claro...
Imaginava... E se, de repente, ela voltasse? Tinha que admitir que, se
ela voltasse, era ela, e não Carmen, que ele teria ao seu lado no
bangalô. Mas, se ela voltasse, seria, como antes, por um breve período?
Ele sacrificaria sua relação com Carmen por mais alguns breves dias com
Susana? Sim – admitia ele – qualquer coisa por uns breves dias com
Susana...
Do outro lado do tempo, na cama ao lado de Leo, Susana devaneava, os
olhos abertos na insônia. Leo dormia tranquilo, depois do amor. Ela,
porém, pensava em George. Certamente, Leo e George eram a mesma pessoa
em diferentes momentos na linha do Tempo. Então, por que, apesar de todo
o carinho e de toda a ternura que sentia por Leo, apesar do entendimento
incrível que tinham eles dois, por que, ainda ansiava por George?
Decidiu então que tinha que tentar. Tinha que tentar alcançar,
novamente, George, no tempo.
Dia seguinte, domingo, 27 de janeiro de 2019, Susana foi ao clube,
sozinha. Sentindo-se dividida, em parte por pensar que estava traindo o
amor de Leo, naquela tentativa que faria de acessar o portal do tempo
que ela sabia estar naquele corredor das árvores do Castelo. Ficou
parada ali, no meio do corredor, por muito tempo. Repetia mentalmente
que queria voltar para George. Mas nada acontecia.
Naquele domingo, 9 de março de 1919, George estava sozinho no Castelo.
Seus pais e sua irmã tinham ido para a cidade e ele pensava que, apesar
dos quase 10 anos decorridos desde a vinda de Susana, ele ainda a sentia
presente, ali, no caminho das árvores. Já estava no terceiro uísque,
antes do almoço e vira, claramente, nos olhos de Matilde, a governanta,
a reprovação, quando ele enchera novamente o copo. Saiu caminhando, copo
na mão, o coração apertado, ansiando por alguma coisa que não poderia
precisar o que fosse. Foi então que a névoa o atingiu. Quando se
dissipou, ele viu, com surpresa, que as majestosas árvores do caminho,
agora não passavam de pinheirinhos mirrados... e Susana estava ao seu
lado.
-- George – exclamou ela – você está aqui? É você mesmo?
Seu coração disparou, e, numa fração de segundo, toda a química da
paixão explodiu em seu corpo. Da base de seu cérebro, a glândula
hipófise anterior despejou uma quantidade significativa de oxitocina,
seus neurônios imediatamente secretaram os neurotransmissores da
alegria, dopamina e serotonina, e todo o seu corpo se transformou, num
processo químico muito semelhante ao do stress: sua pressão sanguínea
aumentou, seu cérebro ordenou que a glândula adrenal incrementasse a
produção de adrenalina e cortisol e que seus ovários caprichassem na
testosterona e no estrogênio. Com o coração batendo mais rápido, suas
faces coraram, pelo aumento da circulação periférica. Seu corpo
estremeceu e suas pupilas se dilataram para fitar, dentro dos olhos
dele, o seu amor refletindo-se.
Quanto à George, pela extrema surpresa e pelo choque de ter sido
novamente lançado aos braços de um amor que, há tantos anos, julgava
perdido para sempre, a única resposta possível foi abraçá-la e um beijo
apaixonado arrancou sorrisos das pessoas que por ali passavam.
-- Estou eu, por acaso, em 2019? – perguntou ele, fitando-a nos olhos.
-- Sim, sim, meu amor – respondeu Susana, a voz embargada, os olhos
marejados pela emoção – Eu estava tentando alcançar você, viajar
novamente no tempo... e eis que você está aqui! E, olhando atentamente
para ele, disse: -- Você está mais velho... – e riu – noto pequenas
linhas ao redor dos seus olhos, das quais não me recordava... e alguns
cabelos brancos... De que ano você veio? (Susana mal perguntara e já
sentia o ridículo da situação, pois para ela a pergunta soara tão
natural como se tivesse perguntado que linha de metrô ele tomara para
chegar até ali)
-- 1919, dia 9 de março – respondeu ele.
Um mês apenas, antes de sua morte e nove anos depois da minha partida –
pensou ela.
-- Meu Deus! – exclamou ele – O que é isso? Vejo, para além das margens
da represa, um paliteiro daqueles edifícios que você me dizia
existirem...
E, do outro lado, onde eu construí um bangalô, cercado por floresta por
todos os lados... Agora cercado por casas e ruas... meu Deus! A cidade
chegou até aqui! E quanta gente tem aqui... Sim, você me disse... agora
o Castelo é um clube...
Com a absoluta certeza de que jamais poderia amar Leo da maneira que
amava George, Susana puxou-o pelo braço:
-- Venha, vamos sair daqui do caminho das árvores. Venha ver como está
hoje o seu Castelo. Vou lhe mostrar tudo, como mostrei a Leo... Leo é um
descendente seu que encontrei aqui no dia em que voltei para o futuro,
aqui, sob as árvores, um descendente seu me esperava...
Então, enquanto caminhavam pelo clube e Susana ia lhe mostrando todas as
mudanças, tudo o que se construíra em mais de um século, contou a ele o
que descobrira sobre ele, Carmen, o bangalô... só não lhe contou sobre a
sua morte. Quando concluiu, George perguntou:
-- Bem por tudo o que você está me dizendo, deverei dizer que existe uma
linha passando exatamente pelo nosso caminho das árvores, atravessando
as águas, passando pelo meu bangalô... E essa linha é um Portal do
Tempo.
-- Sim – respondeu Susana – É a única explicação, se é que tudo isso tem
alguma explicação. O seu neto, aquele que é a sua cara, diz que é um
engodo imaginar que a vida tenha alguma lógica.
-- Eu pensava – disse George – que nunca mais nos encontraríamos, você e
eu.
Tinham sentado num velho tronco de árvore, na parte normalmente mais
deserta da praia do Castelo. George estava espantado com os trajes das
pessoas, principalmente das mulheres – “todas seminuas”, ele dissera.
Espantava-se também com a aparência de todos, que lhe pareciam jovens,
corados, cheios de vitalidade. E espantava-se ainda pelo fato de ninguém
parecer espantado por ver circulando por ali um homem em trajes do
começo do século XX.
-- Todos estão acostumados a ver de tudo, hoje em dia – riu Susana
quando ele lhe falou sobre isso.
-- Depois que você partiu – disse ele, subitamente triste – eu pensei
estar apaixonado por sua bisavó, você sabe disso, você sabe que eu e ela
somos amantes, embora ela esteja noiva de um paulistano de família
ilustre, o que eu, aliás, não sou. Devo deduzir que você, assim como eu,
encontrou o amor nesse meu descendente que você diz ser igual,
fisicamente a mim...
-- Essa é a grande questão – disse ela, tomando-lhe a mão – fisicamente
igual, mas não é você. E é a você que eu amo e passarei o resto da minha
vida com essa certeza.
-- Estou aqui agora – disse ele, com amargura – certamente numa outra
curva fora do tempo linear, não sabemos quanto isso vai durar, não
sabemos quando eu serei transportado de volta, mas estou certo de que
voltaremos, você e eu, para o momento da minha recente chegada. Parece
que a vida, com a sua falta de lógica, está brincando conosco.
-- O importante é que estamos juntos novamente – disse ela, decidida. –
Só isso é que me importa.
-- Vamos fugir – respondeu ele – Leve-me naquele seu Ford, que vi na
fotografia do seu celular, para longe daqui. Vamos sair daqui. Quero ver
a São Paulo do seu tempo, mostre-me.
-- Não sei se você vai gostar do que verá ... – riu ela.
Começaram a subir, as mãos entrelaçadas, de volta para o Castelo e para
a portaria do clube. Mas quando passaram pelo caminho das árvores,
Susana viu, em desespero, a agora velha conhecida névoa e, quando esta
se dissipou, lá estava ela, sentada sozinha num dos bancos de cimento,
exatamente como estava quando George surgira ao seu lado.
Eu queria tanto voltar para ele... Meu pensamento o trouxe volta, ainda
que por esse breve momento. Ou terei simplesmente sonhado?
Sabia, no entanto, que não fôra um sonho. E, sentindo uma dor enorme,
uma dor que ela julgara já ter superado, percebeu – exatamente como
Carmen percebera ao ver os fantasmas do futuro – que não queria passar a
vida esperando que uma bolha, uma curva, alguma coisa no Tempo, a
jogasse de volta para os sentimentos que, no final, a faziam sofrer.
Percebeu que não era possível, nem para ela e nem para ele, viver em
dois tempos tão diferentes. Percebeu que, por mais que o amasse, não
queria repetir a experiência que acabara de viver. George pertencia ao
começo do século XX e ela, ao século XXI. Trataria, daqui em diante, de
trabalhar na edição do livro de Carmen e George, com Leo. Trataria,
daqui em diante, de viver com o amor de Leo, que não era George, mas que
era real e a amava. Tinha sua vida, seus pais, seu trabalho, e agora
também tinha Leo. Toda a aventura que vivera em 1910 estava
definitivamente encerrada e assim ficaria porque era assim que ela
queria que fosse e, com a força de seu pensamento e de sua vontade,
nunca mais permitiria que névoas a levassem para fora de seu Tempo.
George estava morto, há um século. E essa fôra a despedida deles,
concluiu ela.
Com os olhos cheios de lágrimas, subiu pela última vez a rampa das
árvores pequenas e saiu do Castelo, agora cercado pela cidade, com seus
cheiros, seu trânsito insano, seu ar podre. Nunca mais voltaria lá, ao
Castelo. Viveria, daqui para a frente, em seu próprio tempo. E, --
pensou com um sorriso irônico – sua mãe teria uma bela história para
contar em seu novo livro.
Capítulo 22 –
História Inventada
George viu a névoa se dissipar. Estava outra vez sob as grandes e
frondosas árvores de seu próprio tempo, copo na mão, o olhar
reprobatório da governanta.
Com mil demônios, será que essa Matilde está sempre por perto quando
volto das minhas viagens no Tempo? – pensou ele.
-- O almoço está servido – disse a governanta.
Uma mesa para doze pessoas, e eu comendo sozinho.
-- Não tenho apetite – respondeu ele.
O olhar de Matilde se voltou para o copo, nas mãos dele. Esse escocês
vai acabar te matando -- pensou ela -– mas disse apenas:
-- Como o senhor quiser. -- E voltou-se em direção à porta da adega, que
dava acesso direto à cozinha do Castelo.
George desceu pelo caminho das árvores até aquele ponto, na praia, onde
há pouco, mas em 2019, estivera com Susana. As margens despovoadas da
represa, a solidão daqueles 3 alqueires de pura beleza, o Castelo
reinando solitário, erguendo-se em meio ao verde... Tudo isso se
transformaria nas próximas décadas.
O Castelo, no tempo de Susana, estava cercado por inúmeras outras
edificações. Um enorme salão de festas, um terraço que dava para um
conjunto de piscinas, alguns bons metros abaixo, e, sob o terraço,
vestiários, sauna, berçário... No lugar onde estava agora a discreta
edícula branca, com seus aposentos para empregados da casa e outras
dependências de serviço, no tempo de Susana estava um bar, que servia às
piscinas, cercado por mesas brancas e guarda-sóis coloridos. Adiante e
ainda mais abaixo, quadras de tênis e de outros esportes e um galpão
para o jogo da bocha (do qual ele jamais ouvira falar). Depois dessa
verdadeira praça desportiva, estava a praia, a parte mais deserta da
praia. Esse era o lado à direita do próprio Castelo e à direita da rampa
de árvores. Descendo para o lado esquerdo, um ginásio esportivo coberto,
com mais uma piscina (aquecida, dissera Susana) e, já ao nível da praia,
uma enorme estrutura, vasada e coberta, abrigava embarcações de todos os
tipos. Também havia um bar, de dois andares, encostado à garagem dos
barcos, também com mesas e guarda-sóis à frente dele. Um pouco para cima
do bar, pelo gramado, espalhavam-se o que Susana chamara de “quiosques”
com churrasqueiras onde as pessoas podiam assar carnes na brasa e comer
ali mesmo... Pessoas... quantas pessoas circulavam por ali no densamente
povoado tempo de Susana. Ele jamais poderia imaginar as enormes
transformações que sofreria aquela que era, hoje, apenas a sua casa, com
um grande bosque ao redor e o silêncio e a quietude do campo. A cidade,
voraz, viria abraçar o Castelo, fazendo dele apenas um lugar de esporte
e lazer para as muitas famílias que o frequentavam.
De fato, refletiu ele fitando as águas azuis da represa do Guarabitinga,
eu o prefiro assim, quieto, calmo, com cheiro de mato. Prefiro o nosso
Castelo majestoso, reinando sobre as árvores e a grama, imponente, e não
apenas mais uma construção, mergulhada num mar de outras tantas
construções. No tempo de Susana o Castelo sumia, sufocado entre as
edificações à sua volta. George imaginava o que sua mãe diria, se
pudesse ver no que se transformara sua linda residência, cheia de gente
que mal reparava em sua beleza.
Talvez tivesse sido melhor não conhecer, afinal, a cidade de São Paulo
que vislumbrara nas fotografias que Susana lhe mostrava quando estivera
com ele, em 1910. Ela dissera mesmo que ele não gostaria de ver essa sua
pacata cidade, num futuro coalhado de gente, gente por toda a parte.
Esse é o meu tempo – concluiu em pensamentos, sorvendo o último gole de
seu maravilhoso scotch – é aqui que tenho que viver, com Carmen, não com
Susana, uma mulher que, para ele, mais se assemelhava a uma figura
mitológica, uma deusa de um futuro pelo qual ele jamais ansiaria.
Num impulso, largando o copo de cristal na grama da praia, caminhou até
o pequeno ancoradouro e pediu ao marinheiro, Abel, que trouxesse seu
barco à vela. Atravessaria a represa em direção ao bangalô onde, tinha
certeza, estava Carmen, naquela tarde de domingo, escrevendo. De
repente, sua alma ansiava por ela, por Carmen, e sentiu que se livrara
do amor de Susana, que nunca mais atravessaria o portal do tempo porque
ali, ali estava a sua realidade, aquela era a sua vida. E a sua visão do
futuro ficaria registrada nas páginas de seu livro, como uma história
inventada.
Capítulo 23 –
À Sombra da Morte
Na noite de 22 de março de 1919 o Castelo brilhava, completamente
iluminado, acesas todas as luzes de todos os cômodos, decorada a entrada
e a sala de vidros e a da lareira com flores brancas que subiam pelos
corrimãos da escada. Um conjunto de câmara, instalado à frente da
lareira, executava as mais alegres peças clássicas e carros e mais
carros chegavam despejando a fina flor da elite paulistana que, em
trajes de gala, vinha para comemorar o aniversário da anfitriã, Augusta.
Lanternas, com velas acesas, estavam fixadas pelos troncos das árvores
que ladeavam o caminho de pedras, para que os visitantes, que assim
desejassem, pudessem descer até o ancoradouro, em frente ao caminho das
árvores, e contemplar a lua sobre as águas da represa.
George viu Carmen, descendo do automóvel da família do noivo, magnífica
em seu branco vestido bordado de pérolas, com gola de plumas e seu
sorriso brilhante.
Uma alegria nervosa pairava pelos convidados da festa no Castelo naquela
noite. Embora o país estivesse satisfeito com a sua recente (e modesta)
participação na I Guerra Mundial, e estivesse vendo crescer a sua
produção agrícola (através das importações que deram um salto para
suprir a necessidade da Europa por matérias primas e produtos agrários)
e também vendo crescer o seu então incipiente parque industrial, a
sombra da morte ainda obscurecia muitos corações.
O país acabara de sair não só da Guerra como da maior pandemia da
história – a chamada gripe espanhola – que vitimara inclusive o ilustre
Rodrigues Alves, que, depois de ter governado o estado de São Paulo,
tinha sido eleito presidente do país, para o seu segundo mandato, quando
a gripe o abateu. Muitos traziam na alma a tristeza pela barbárie do
conflito mundial que se encerrara no ano anterior e pela perda de entes
queridos, já que poucos escapavam com vida do terrível vírus que acabara
por matar mais de 35 mil brasileiros e milhões de pessoas em todo o
globo. Rodrigues Alves falecera há muito pouco tempo, em 16 de janeiro
daquele ano, e medidas sanitárias ainda vigoravam, evitando aglomerações
por toda a cidade.
Ainda assim, os Meyer decidiram comemorar a vida, o aniversário de
Augusta, com uma festa em alto estilo, acreditando que não só a tristeza
da Guerra, mas também a do devastador vírus da gripe não seriam
superadas sem a imposição da alegria. E alegria era festa.
Havia ainda um outro significado oculto naquela comemoração. Um
significado que pouco diria aos brasileiros, mas estava incrustado na
alma europeia de Augusta: na sua terra, aquela era a noite do equinócio
de Primavera. Era a noite das festas pagãs da Baixa Idade Média. Os
padres católicos haviam transformado todas aquelas festas em datas da
sua Igreja, distorcendo-lhes o real significado. Aqui, no Hemisfério
Sul, era o equinócio do outono, mas, ainda assim, era também o começo de
um novo ano astral, o recomeço da dança das constelações, no Zodíaco.
Para seus fúteis e racionais convidados, o Castelo comemorava o
aniversário de sua matriarca. Para Evelyn e Augusta, porém, a
comemoração era a da própria vida e dos ciclos da vida.
Foi, de fato, uma noite memorável e os principais jornais da cidade
estampavam elogios, no dia seguinte, aos anfitriões, ao seu bom gosto e
à sua capacidade de bem receber famílias acostumadas ao luxo e ao
privilégio.
O sol nascia quando os últimos automóveis deixaram o Castelo. Carmen foi
convidada por Evelyn a ficar para que passassem juntas o domingo, mesmo
assim voltou para a cidade no carro da família do noivo, porque não
desejava ser alvo de fuxicos maldosos e, muito menos, expor o noivo – a
quem sinceramente estimava e respeitava – a uma possível humilhação
pública.
Antonio, por sua vez, participara da conversa entre cavalheiros sobre um
encontro de exportadores que aconteceria no dia 9 de abril, dali a pouco
mais de duas semanas, na cidade de Santos. George, que era um entusiasta
dos modernos automóveis, gabava-se de descer a Serra do Mar dirigindo o
seu Ford em boa velocidade e vencendo o desafio das curvas fechadas com
que a estrada o brindava. Uma ideia então começou a se formar na cabeça
de Antonio. Aquela talvez fosse uma ótima oportunidade para se livrar do
rival e convencer de vez a noiva a marcar o casamento, sempre adiado por
mil desculpas pouco convincentes. Não que Antonio se importasse muito
com o caso de amor de Carmen e George. O que ele esperava dela, porém,
era que não os expusesse ao ridículo. Antonio estava plenamente
convencido de que Carmen seria a esposa ideal para ele, a união ideal de
duas grandes fortunas locais e a mãe adequada para os filhos dele. Não
se importaria se ela tivesse um amante, mas com discrição. Naquela festa
mesmo, ele vira os olhares zombeteiros e ouvira as insinuações maldosas
sobre George e sua noiva. E isso ele não estava disposto a suportar.
Assim, logo na segunda feira, tratou de levar ele mesmo o seu automóvel
a uma das poucas oficinas mecânicas da cidade, onde George dissera
sempre mandar o chofer levar seu carro, antes de colocá-lo na estrada.
Na quarta-feira, um dos mecânicos da oficina encontrou-se com Antonio na
Praça do Patriarca. Caminharam, Antonio dois passos à frente do
mecânico, e conversaram discretamente, sem sequer olhar um para o outro.
Ninguém, na praça mais movimentada da cidade, notou que o rico herdeiro
de uma das mais ilustres famílias locais, trocava informações com um
simples mecânico. Mais adiante, afastando-se do jovem operário, Antonio
jogou um pacote de papel pardo numa lixeira. Pouco depois, o jovem
recolheu o pacote. Sabia o que tinha que fazer para que a ponta de eixo
do Ford de George não resistisse a muitas curvas em velocidade.
Capítulo 24 – O
Ford Fênix
-- Veja, Susana – exclamou Leo, grudado à tela de seu computador – Aqui
no site do meu tio está uma foto incrível, uma foto do carro de George,
ou do que restou dele, sendo içado de volta à estrada. Diz aqui que o
carro rolou desfiladeiro abaixo, certamente depois de derrapar numa
curva. O corpo dele foi atirado a mais de cem metros de distância do
local onde o automóvel foi encontrado.
Passados alguns meses desde sua última aventura fora do tempo linear,
Susana já podia pensar em George sem sentir aquela angústia, aquela
frustração. Aos poucos, Leo estava tomando o lugar dele no coração dela.
-- Que horror! – exclamou ela diante da fotografia – Um negócio macabro
esse de fotografar carros acidentados.
-- Naquele tempo um desastre automobilístico dessas proporções era
notícia em todos os jornais. A morte na estrada não era uma coisa
banalizada como o é hoje. Imagine, morre mais gente nas estradas
brasileiras num fim de semana prolongado do que em um desastre de avião.
No entanto, o desastre aéreo comove a arquibancada enquanto que ninguém
presta atenção à morte de famílias inteiras, em acidentes rodoviários. É
um contrassenso!
-- Isso deve ser porque o acidente na estrada sempre parece ser culpa
dos motoristas... – disse ela, sem muita convicção.
-- Veja – continuou ele, descendo a tela – aqui está a reprodução da
página de O Estado de São Paulo... o obituário dele e a reportagem sobre
o acidente, veja, Susana, é a mesma página de jornal que nós dois
encontramos na cozinha do bangalô, quando viajamos no tempo – e leu o
que o jornal dizia – “a grande tragédia que se abateu sobre a família
dos importantes industriais paulistanos, ceifando a vida de seu único
herdeiro”.
-- Pois é – zombou Susana – em 1919 ninguém consideraria Evelyn como
herdeira, por ser ela uma mulher.
-- E diz ainda – continuou Leo, sem dar atenção ao aparte de Susana –,
na reportagem, que o jovem George era conhecido por sua paixão por
automóveis e por dirigir em velocidades altas e que, muito
provavelmente, essa teria sido a causa da derrapagem de seu carro, numa
das muitas curvas fechadas da serra do Mar.
-- Interessante – disse Susana -nas duas semanas que passei com os
Meyer, em 1910, jamais vi George à direção. Era sempre o chofer da
família quem conduzia o carro.
-- Ah... – fez Leo – Muito provavelmente porque os automóveis, em 1910,
ainda não eram vistos como lazer, diversão, competição. Eram carroças
motorizadas, simples meios de transporte. Mas na década seguinte já
aconteciam corridas de carros-passeio na Avenida Paulista. Os veículos
evoluíram consideravelmente e tornaram-se um objeto de diversão para as
classes abastadas.
-- Esse jornal digitalizado – disse Susana – certamente veio do arquivo
do Estadão. Será que encontraríamos alguma coisa sobre o casamento de
Carmen com Antonio Expedito? Até hoje, na família, comenta-se que esse
casamento arrastou multidões até a igreja e que a festa, na mansão dos
Expedito, durou quase 24 horas, tendo começado logo após a cerimônia por
volta de meio dia. Minha mãe sempre comenta isso como um exemplo da
idolatria que o povo tem pelas figuras públicas. Carmen, com seus livros
e suas ousadas crônicas no jornal e Antonio, por ser um dos mais ricos
herdeiros da cidade, eram idolatrados como o são hoje os membros da
família real britânica, ou as fugidias celebridades da televisão e,
agora, das redes sociais. Deve ter gerado matérias em jornais e
revistas. A cerimônia mexeu até com a economia da cidade, movimentando
ateliers de costura, cabeleireiros, lotando hotéis pelos convidados
vindos de fora, lotando táxis, restaurantes, cafés...
Mas Leo já não estava prestando atenção. Acabara de encontrar uma
informação ainda mais surpreendente. Seu tio Alberto, numa das muitas
crônicas de memória familiar que publicara no site, contava que todas as
peças do automóvel de George tinham sido recolhidas e que, durante mais
de um ano, o velho Meyer pagara a mecânicos e funileiros para que, na
garagem do Castelo, reconstruíssem o carro, desamassando cada lataria,
remendando as partes de madeira e de tecido, reconstruindo o motor, a
caixa de câmbio... tudo enfim. E, depois de pronto, o automóvel ficara
ali, exposto bem na entrada do Castelo, numa redoma especialmente
construída para ele, com paredes envidraçadas e telhas vermelhas, como
as do Castelo. Quanto aos pais de George, nunca mais entraram num
automóvel, mantinham uma luxuosa carruagem e com ela se deslocavam pela
cidade, causando espécie e um sentimento de respeito nos que nela
reparavam e conheciam a história.
-- Meu Deus! – disse Susana – Será que esse carro ainda existe?
-- Se existe – respondeu Leo – certamente está nas mãos de algum
colecionador.
-- Procure no Google! – exclamou ela. —Veja quem são os colecionadores
de automóveis antigos em São Paulo.
Para a surpresa deles, depois de alguma pesquisa, descobriram que o
carro dos Meyer era famoso entre os colecionadores. Chamavam-no de “o
Ford Fênix” e ele estava agora, um século depois, com Dr. Júlio
Carvalho, um conhecido colecionador de automóveis antigos e respeitado
clínico geral da zona norte de São Paulo. Dr. Júlio pagara uma pequena
fortuna por ele, num leilão do clube dos colecionadores.
Leo e Susana tiveram que marcar um consulta com ele, depois de um mês de
frustradas tentativas de entrar em contato. Uma consulta caríssima e
particular e o médico caiu na risada quando soube o motivo dos dois
jovens o estarem procurando:
-- No painel do Fênix – disse o médico – existe uma foto emoldurada de
George Meyer. Você, meu jovem, não precisa me dizer que é descendente
dele. Vocês são praticamente iguais. Se vocês tivessem dito à minha
secretária o motivo pelo qual queriam me ver, eu os teria atendido com
prazer. Gostariam de ver o Fênix, então? Eu tenho um grande galpão, na
minha chácara em Atibaia e lá mantenho meus carros. Dois mecânicos se
encarregam de mantê-los limpos, brilhantes e funcionando. Terei muito
prazer em receber vocês lá no próximo domingo.
É claro que eles tinham dito muitas vezes à secretária qual era o motivo
de estarem entrando em contato.
-- Secretária de médico famoso é uma raça terrível – comentou Susana –
Elas se julgam mais importantes do que eles.
Leo riu:
-- Não é só de médico, não. A minha secretária, na agência, é um
verdadeiro bunker de guerra, ninguém passa por ela...
No domingo, depois de receber os jovens na chácara de Atibaia, Dr. Júlio
explicava:
-- Os carros antigos, de colecionadores, geralmente não são tão antigos
assim. A maioria é da década de 1960 para cá. Raros são os das décadas
anteriores. Da década de 1910 e 1920 existem pouquíssimos no Brasil. O
Ford Fênix é quase uma lenda entre os colecionadores. A Federação
Brasileira de Veículos Antigos é responsável pelo fornecimento de uma
Certificação – a Placa Preta – que autentica a origem e as perfeitas
condições dos veículos com 30 anos de fabricação ou mais. O Fênix jamais
conseguiu a Placa Preta porque muitas de suas peças originais foram
substituídas, assim como os bancos de couro, por terem sido
completamente destruídas ou perdidas no local do acidente. Mesmo assim,
a reconstrução do carro é alguma coisa de muito impressionante. E mesmo
sem a tal da Placa Preta era um dos automóveis antigos de maior valor,
dada a sua história singular.
-- Por exemplo – continuava o Dr. Júlio – um Ford Victoria, 1934, como
esse aqui (e apontava orgulhoso para o carro de um azul marinho
brilhante) pode custar até 300 mil reais, enquanto um Porsche dos anos
1960 vale apenas entre 25 e 70 mil. Mas o Fênix vale muito mais... O
João Carlos, um dos meus mecânicos, estudou atentamente o Fênix,
analisou todo o trabalho de recuperação do carro, feito com os recursos
da época, é claro, fotografou cada emenda, cada solda, cada parte da
carroceria que foi recuperada e desamassada. Acreditem, já existia um
verdadeiro “martelinho de ouro” naquele tempo.
-- Nós gostaríamos de ver essas fotos e, se possível, de conversar com
esse mecânico. – disse Leo. – Como já lhe expliquei, doutor, estamos
escrevendo um livro sobre esse nosso antepassado, o George Meyer, e
qualquer informação que tenhamos nos será de grande valia.
-- O João está aqui todas as terças e quintas, em horário comercial.
Enquanto o médico e Leo conversavam, Susana orbitava ao redor do carro
de George. Não era o mesmo carro que ela vira com a família em 1910. Era
um modelo mais avançado. No entanto, saber que seu amor morrera ali,
naquele automóvel, colocava-lhe lágrimas nos olhos e arrepios na alma. O
carro estava ali, até hoje. O Castelo estava lá, até hoje. Muitas coisas
permanecem, apenas nós – refletiu ela – estamos aqui numa mera e breve
passagem.
Na terça feira, Leo e Susana voltaram ao galpão dos automóveis antigos.
João Carlos, o mecânico, os recebeu e mostrou a eles os gráficos, as
fotos, as simulações, toda a documentação sobre a reconstrução do Fênix,
que mantinha em seu laptop. Era um material impressionante mesmo.
-- Existe um detalhe muito interessante – disse, por fim, o mecânico –
Vejam aqui a foto ampliada dessa ponta de eixo. Ela foi soldada, como
outras partes do carro também o foram. Todas as outras, porém, foram
partidas de maneira irregular, no acidente. Mas essa ponta de eixo tem
uma solda que une duas partes absolutamente regulares, exceto por uma
extremidade. Isso indica que ela foi cortada, por instrumento e não como
resultado do acidente.
-- Como assim? – disse Susana, espantada.
-- Essa emenda pode ser resultado de algum conserto feito no carro,
anterior ao acidente, mas é bem improvável que alguém precisasse cortar
assim, quase completamente, esse eixo. Por que? Para que? Isso é muito
intrigante e, de fato, sugere que alguém tenha sabotado essa carro para
torná-lo frágil e passível de um acidente, pois a ponta de eixo, presa
apenas por uma extremidade, certamente se desprenderia, em algum
momento, com o balanço do automóvel.
-- O acidente teria sido, então, deliberadamente provocado por alguém? –
perguntou Leo, espantado.
-- É o mais provável – respondeu João.
-- Mas – disse Susana, com a voz embargada – a partir do momento que o
senhor descobriu isso deveria ter procurado as autoridades. Afinal, isso
prova que não houve acidente, mas, sim, crime!
-- Moça – respondeu João Carlos com certa impaciência – Nós estamos
falando de um fato ocorrido há cem anos passados. Quem iria investigar
isso e por que? Todos os envolvidos estão mortos...
-- Sim, perdoe-me... Inclusive está há muito prescrito... de qualquer
forma, trata-se de um crime que ficou impune! –suspirou ela.
-- Uma coisa infelizmente muito comum em nosso país, não é verdade? –
disse ele.
CONTINUA...
Capítulo 25 -
Revelações
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