voltar para índice da página Memória

 

 O Olhar da Minha Mãe e

as Células Tronco

memória de Isabel Fomm de Vasconcellos

 

Escaneando fotos antigas foi que reparei nos olhos da minha mãe. Eles tinham um brilho, uma alegria, que eu não conheci. 

 

Em 1951, quando nasci, os olhos dela ainda brilhavam, mas não tinham mais essa labareda de alegria que aparece claramente nas fotos mais antigas. Daí, até sua morte, nunca mais tiveram.

 

Ah, sim, ela era dona de um sorriso maravilhoso e a sinceridade evidente de seu rosto conquistava a tudo e a todos, com aquela coisa fácil de puxar conversa fácil, de encantar seu interlocutor. Todos, de clientes a vizinhos, passando pelos feirantes, garçons e motoristas de táxi, todos se encantavam com o jeito dela.

 

Mas eu não sabia que seus olhos haviam perdido, pelo caminho, essa incrível chama da alegria.

 

Foi a doença de meu irmão mais velho que tirou dos olhos dela essa maravilha que ora descubro nas fotografias muito antigas.

 

O sofrimento de ver o seu primogênito incapacitado para a vida intelectual, ele, que além de lindo, era (e foi até a morte) tão organizado, tão dandy, gavetas sempre em ordem, bonés guardados em ordem degrade de cores, lápis bem apontados, barba bem feita, perfume.

Me lembro dele, entrando aqui em casa, há uns quinze anos e dizendo com ar repreendedor, olhando para o tapete que acabara de chegar da lavanderia:

- Isabel, este seu tapete está sujo!

 

Meu irmão Alfredinho foi vítima de uma lesão cerebral causada por uma encefalite (literalmente: inflamação no encéfalo) que que só foi diagnosticada quinze anos depois de acontecer. Uma febre altíssima aos cinco anos de idade e, de repente, o menino lindo passou a desenvolver uma carinha meio boba, não conseguia juntar as letras em sílabas, não conseguia acompanhar os estudos. Tornou-se um jovem agressivo, meus pais o levaram a médicos, curandeiros, sacerdotes, doutores e mais doutores. Só com o eletroencefalograma no começo dos anos 1950 é que se descobriu o que havia de errado com ele.

 

A doença dele foi responsável por alguns abortos da minha mãe. Naqueles tempos pré-pílula não havia outro jeito e ela temia que nascesse outro igual a ele. Só quando soube que não era de nascença se deu o direito de me deixar nascer. Sou quinze anos mais nova que Alvan, meu irmão mais novo.

 

Alfredinho passou a vida indo e vindo dos hospitais psiquiátricos e clínicas que meus pais procuravam, desesperadamente, para ele. Tiveram a felicidade de encontrar alguns que não eram depósitos de loucos. Nos hospitais, outros doentes perguntavam se ele era doutor. Por causa de suas maneiras naturalmente finas e polidas, porque ele sabia nomes de políticos e fatos históricos. Mas era um verdadeiro samba do criolo doido: Getúlio Dornelles Vargas conversava com o Imperador D.Pedro II e Juscelino casava-se com a Conceição da Costa Neves.

 

Três anos depois da morte de meu pai, minha mãe conseguiu conservar o Alfredinho em casa pelo mais longo período de sua vida adulta: quinze anos. Mas, quando ela já estava com 93 anos, acabou me pedindo para voltar a interná-lo porque ela não conseguia mais discipliná-lo. Nessa época, minha mãe morava só com ele e com as empregadas malcriadas que ela conseguia arranjar.Meu irmão  Alvan, que também morava com ela nos últimos anos, também morrera e tudo se tornou muito difícil.

 

Mauro e eu quase enlouquecemos à procura de alguma instituição que pudesse aceitá-lo, nesses tempos de neurose antimanicomial. Acabamos conseguindo encontrar uma clínica para dependentes quimicos no interior de São Paulo, uma clinica que já fora meu anunciante no programa de TV.

 

Ironicamente, um enfarte fulminante matou o Alfredinho, no dia 6 de maio de 2007, antes dele completar 73 anos de idade.

Minha mãe morreu 40 dias depois. Ela já estava bastante debilitada e o psiquiatra me aconselhou a não contar a ela sobre a morte dele. Mas, de alguma maneira, ela soube. Porque no dia em que voltamos do enterro dele, esbodegados, depois de um dia estafante, de estrada e burocracias e desaforos feitos por uma das minhas primas, o telefone tocou a uma hora da manhã. Era da casa da minha mãe, do residencial de velhinhos onde ela morava. Ela estava muito mal. Só morreu 40 dias depois porque as modernas técnicas da Medicina tendem a prolongar inutilmente a vida de quem já está na hora de partir.

 

Depois que ela se foi, eu descobri um lindo caderno com capa de cetim, papel muito fino e ilustrações muito lindas, no meio das coisas dele. Era um Diário do Bebê que ela fizera para o Alfredinho, quando ele nasceu em 1934.

 

Num futuro não muito distante as células tronco serão capazes de recuperar as lesões cerebrais e ninguém mais, nascido com uma alma brilhante como a dele, passará uma vida condenado à ignorância intelectual. E os olhos das mães não precisarão se apagar.

 

Wanda Gonçalves de Almeida Vasconcellos

 

Alfredinho (moreno) e Alvan (louro) com minha mãe Wanda. 1937

 

 

 

 

Alfredinho e Wanda, com o retrato do Vincent Krausz Ochoa (filho da sobrinha dela, Mônica),

no Natal de 2001, na nossa casa.

 

 

Nos hospitais, outros doentes perguntavam se ele era doutor. Por causa de suas maneiras naturalmente finas e polidas, porque ele sabia nomes de políticos e fatos históricos.

 


Abaixo, nosso primo, o escritor OSMAR A MARQUES, num trecho de Memória dele, onde a descrição do Alfredinho é primorosa. Veja:
 

"...Vamos. E fomos. Pegamos o Cometa e no dia seguinte, lá estávamos. São Paulo. Imponente, congestionada, rica em cultura, artes, ciência, indústria, comércio e turismo. Mundo a ser redesbravado. A dois. A hospedagem, mais aconchegante, impossível. Os tios se desdobrando em homenagens e gentilezas. Só coisa boa. Impossível esquecer o cheirinho do café. O gosto do bolo. O bate-papo diário. O piano, o saxofone, a clarineta, a flauta, o violão, os aeromodelos e os filmes. O incessante ir e vir do Alfredinho, impressão de frenética busca para sair dos labirintos mentais que a vida lhe proporcionou. Suas paradas para conversar, subterfúgio para pedir mais um cigarrinho – uma das poucas contravenções permitidas e mostrar os seus desenhos de automóveis em dimensão única, traçados com mão firme e seriedade de grande construtor. Interessante foi a descoberta que os desenhos destes veículos imaginários, sem significação horizontal, tomavam forma, orientação espacial e era possível verificar lados diferentes, ao se dobrar a folha de papel. Era um verdadeiro holograma desenhado. Cigarro nas mãos, a conversa era seguida de frases nem sempre com nexo e uma rápida desculpa para o seu mundo e continuar o vai e vem sem fim, expondo no braço, suas obras de arte. Bom Comandante, sempre portava um boné, que era devidamente modificado com as insígnias que o momento exigia.../"

 

             Nossos pais, Alfredo e Wanda, com Alfredinho, 1985
 

 

COMENTE seu comentário será publicado, a menos que você diga que não quer.

 

 

 

Alfredinho, Wanda, Alfredo e Alvan, em 23 de dezembro de 1958, Bodas de Prata do casal Fomm de Vasconcellos.

 

08 de agosto de 2018

Carmen Victor Pinto

Bela História Isabel.!!!Emocionante.!!!!Tenho Fé que daqui a 50anos resolveremos a maiorias dos problemas.Acompanho às pesquisas sou da área da Saúde.
Meu Vitinho não será beneficiado. Mais sou feliz. Ele é bastante Inteligente. Extremanente carinhoso.Sociavel. Já sabe escrever.Ao chegar em Belém montei
Uma equipe multidisciplinar. Dr.Francisco foi um Norte
Na minha Vida e de seu Pai. (falecido há 3anos). Sou grata ao Dr.Francisco que atendia meu Vitinho no
H.Clinicas p 15anos. Ele me disse. Hajam como Pais do Vitinho. Parem de
Pesquisar. E somos felizes Depois de todas às orientações dele. Obrigado pela história.  Bjo no seu coração. Você é um exemplo p Todos Nós.!!!

 

29 de janeiro de 2017

Roza Renno Uma reflexão de vida que nos sensibiliza! Digna de um Editorial em Jornal de grande circulação para servir de exemplo de vida a milhões de pessoas que reclamam por questões pequenas!

 

De: "Facebook"

Assunto: Amarilis Rahner comentou seu link.

Data: quarta-feira, 11 de maio de 2011 20:58

  Amarilis Rahner comentou seu link.

 Amarilis escreveu:

"Bel, seu escrevinhador deve abrir mais e mais vezes. Amei suas crônicas (ou artigos) de hj. Bjo!"

 

De: "Cleds Fernanda"

Assunto: o artigo sobre os olhos da sua mãe

Data: domingo, 15 de maio de 2011 10:02

 Isabel, bom dia!

Fui às lágrimas ao ler esse artigo. Uma crônica de primeiríssima qualidade, Isabel.

Como admiro sua forma de superar as dores e seu amor aos seus familiares.

Abraço,  Cleds

 

 

 

24 de setembro, 2015
Maria Amélia Almeida, Anamaria Ferraz De Barros Paltronieri, Helo Nobrega, Stela Maris Grespan,Carla Bianchi Nogueira Da Cruz, Vera Krausz, Marlene Prismich e outras 20 pessoas curtiram isso.
 

Solange Aparecida Benfatti Linda ...

Maria Carmen Dowe Tive o privilégio de conhecer os três.

Isabel Fomm de Vasconcellos Nossa, minha amiga Maria Carmen... que blz!
 

Lucinda Maria Freire Magalhães linda sua mãe com as crianças.

Marlene Prismich Bom dia Bel. Muito comovente esse seu texto. Imagino como deve ter sido difícil principalmente para sua mãe. Alfredinho nasceu no mesmo dia que eu, somente anos diferentes. Bjs

 

From: elnora

  Sent: Sunday, May 15, 2011 12:51 PM

  Subject: Re: O Olhar da Minha Mãe e as Células Tronco

   Estou com voce em tudo, voce é ótima, tem argumentos para derrubar qq idiota....... bjs. elnora

 

 

De: "Editora Imprensa 18 anos"

Assunto: RES: O Olhar da Minha Mãe e as Células Tronco

Data: sábado, 14 de maio de 2011 22:32

 ISABEL, ADORO SUAS HISTORIAS DE VIDA. COMO VOCE ESCREVE BEM. ME EMOCIONO SEMPRE. JORNALISTA MARCO ZAPAROLLI  MARILIA,SP

 

29 de janeiro de 2016:

Analia Blanco Que maravilha Bel, ótimas lembranças.