“Quando você foi embora
Fez-se noite em meu viver”
Milton Nascimento e Fernando Brandt, Travessia, 1969
A vida é também uma coleção de perdas.
De repente, vem um sujeito bêbado, dirigindo como um louco numa estrada
qualquer de Moçambique, na África, e leva embora para sempre a minha
parceira de letras, a minha amiga virtual, maravilhosa, jovem, com um
marido amoroso e um filho pequeno; a minha amiga que, em apenas dois
anos de convivência virtual, aprendi a amar; a menina querida com quem
escrevi um dos mais belos romances dessa minha vida; aquela que eu, um
dia, queria encontrar pessoalmente, emocionada, abraçá-la, sentir seu
perfume, sua energia, tudo aquilo que – eu imaginava, esperava, sonhava
– não dá pra sentir pelo computador.
Um africano bêbado matou minha amiguinha, deixando órfão de mãe seu
filhinho, deixando em prantos sua família e, atordoado, o homem que a
amava, o seu companheiro.
Já faz um mês e sete dias e ainda escorrem lágrimas pelo meu rosto
enquanto escrevo isso.
Meu grande amigo-irmão, o médico psiquiatra Kalil Duailibi (também meu
parceiro em dois livros), disse-me certa vez que, para os sentimentos, o
tempo não existe.
A gente se consola, mas a cicatriz é tênue, a ferida se abre a qualquer
simples toque.
(Por outro lado, os fotógrafos sabem que, para sair bem na foto, uma
pessoa deve se concentrar na lembrança de algum momento de extrema
felicidade, na hora do clique, e essa felicidade voltará, aflorará em
seus olhos, na expressão de seu rosto!)
A lembrança é a tão procurada máquina do tempo!
Já a morte é sempre uma presença, uma certeza, uma questão de
probabilidade. Repentina ou anunciada, ela nos separará daqueles que
amamos, embora eles continuem bem vivos dentro de nós.
Mas nem sempre a morte de alguém próximo é uma perda. Às vezes é um
alívio.
Um marido opressor e violento, ao morrer, deixa uma viúva alegre.
E nem sempre as perdas são trágicas. Uma paixão, por exemplo, quando
termina apenas termina, não é uma perda. E a paixão nada é comparada ao
verdadeiro amor ou a verdadeira amizade, que são coisas construídas ao
longo do tempo, com dedicação, afeto, renúncia e, no caso de amor dos
casais, sexo.
Relendo um velho livro meu, me deparei com um conto, chamado “O
Desaparecimento de Mario Lucas”, que escrevi em 1984, há 32 anos,
portanto. Quando o escrevi, quando o publiquei, nas vezes em que o reli,
nunca, nunca mesmo, havia percebido o que estava por trás dele. Sem
perceber, eu estava escrevendo o futuro de uma das minhas grandes
perdas...
Creio que tenha sido a minha primeira grande perda. Mas essa, sem o
consolo da morte, da inevitabilidade. Ao contrário: a mim me parecia,
então, uma perda incomensuravelmente evitável.
Era surreal. Foi em
1978. Eu tinha 27 anos de idade e uma grande amiga, alguém que eu amava
muito, com quem dividia a vida, desde os tempos da adolescência.
Viajávamos juntas. Não passava um dia sem que nos falássemos, ainda que
brevemente e por telefone, em tempos muito pré-celular ou internet,
tempos de precariedade na comunicação. Para mim, ela era a irmã, a alma
gêmea da amizade, no entendimento e na alegria de conviver. Eu
trabalhava no Museu de Arte Moderna. Ela, numa grande empresa pública.
Um dia, armando a festa do meu aniversário – que, naquele ano, seria no
Bar do Museu (um bar lindo, ainda não destruído como está hoje, mas
preservado na decoração impecável do Ciccillo Matarazzo; um bar onde eu
desfrutava da companhia de grandes artistas, intelectuais e também de
uma outra amiga, recente, que era a própria diretora do MAM, boêmia como
eu naquela época, e quatro décadas mais velha).
Era o máximo! Poder comemorar meu aniversário ali, entre as paredes que
abrigavam pelo menos três gerações de grandes artistas, muitos deles
também boêmios como nós.
Feliz da vida, passei a mão no telefone para avisar a primeira
convidada: ela, a minha amiga inseparável. Resposta da atendente da
empresa: “a doutora está em reunião”. E esta continuou sendo a resposta
a todos os telefonemas seguintes. Não mais ela falou comigo.
Por que? Eu me perguntava, minha mãe se perguntava, meu pai se
perguntava, sentindo também a falta daquela que eles poderiam
considerar como mais uma filha, dado o grau de nosso envolvimento, dada
a intensidade daquela convivência.
O que eu teria feito? O que teria acontecido? Lembro-me de toda a
angústia, de todas as lágrimas, da sensação de abandono, de absurdo.
Escrevi. Telefonei. Tentei. Ela não me respondeu. Não me procurou.
Soube que tinha se casado. Soube que teve um filho. Vi um conhecido meu,
então de namorico com a irmã dela, ir à maternidade ver o bebê; o bebê
que eu deveria ter em meus braços, que seria como meu querido sobrinho e
a quem nunca conheci.
É uma dor indescritível. Uma perda sem explicação.
Até hoje dói. Lágrimas me descem pelo rosto enquanto escrevo isso.
Pois é, Kalil, o tempo não existe mesmo!
Mas foi apenas ontem,
relendo “O Desaparecimento de Mário Lucas” que eu percebi a brincadeira
do meu inconsciente, o desaparecimento inexplicável, narrado nesse
conto, a sensação de irrealidade, de estar em meio ao absurdo, tudo
isso, que coloquei no papel em 1984, seis anos depois de perder a minha
amiga-irmã, e foi exatamente o que senti, como a minha personagem sentiu
no enredo. Não, eu não tinha me dado conta disso.
Os anos passaram. Os filhos dela viraram homens.
Um dia, nem sei mais como, creio que lá para 2002 ou 2003, nos
reencontramos.
Timidamente, até hoje,
ela aparece. Vem à nossa casa. Foi ao meu programa de televisão, uma ou
duas vezes. Acompanhou os últimos meses de vida da minha mãe que, aliás,
ficou felicíssima por revê-la. Foi ao lançamento de alguns dos meus
livros.
Eu a amo, como sempre amei, mas há uma dor não resolvida que nos separa,
nos separa como a morte. Temos tentado, nessa última década, superar
isso. Na verdade, quando estamos juntas, o amor parece maior que a
morte. E assim vamos, nós duas, sabendo que a mesma vida que nos
separou, agora volta a nos unir.
Minha outra grande amiga, Diná Coelho, a ex diretora do MAM, morreu em
2003. Mas também não quis me ver mais, dizia que estava velha demais,
que não queria que eu a visse decrépita. Nunca mais saímos pela noite
paulistana, nunca mais fui jantar com ela na sua cobertura da Avenida
São Luiz, no prédio que tem, por nome, a santa de quem tenho o nome,
Santa Isabel; um apartamento de paredes cobertas por obras de arte dos
maiores pintores brasileiros. Também doeu, mas eu pude compreender a
vaidade e as razões dela. Não foi nada surreal, como o até hoje
inexplicado desaparecimento da minha primeira grande amiga.
A vida é uma coleção de perdas, posto que é finita, ao menos aqui na
Terra.
Hoje falei sobre as perdas das amigas queridas. Vou torná-las
personagens, em meus próximos livros, para que estejam sempre aqui,
comigo, já que nunca deixaram de estar em minha alma e em meu coração.
Afinal, na juventude, também li Exupéry e acreditei no Pequeno Príncipe,
que disse: "Tu te tornas eternamente responsável por aquele que
cativas."
Isabel Fomm de Vasconcellos
2016, 10 de outubro
Para Luciene de Almeida Figueiredo, I.M.S.M e Diná Lopes Coelho
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