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Às
três e vinte e cinco pensou que Mário era realmente um sujeito muito
simpático e sociável e que, na certa, teria entabulado uma conversa
casual com o dono do loja e estaria agora deliciando-se com um papo
furado.
Às três e trinta acendeu outro cigarro, sentindo-se desconfortável
naquele carro abafado e quente. Abriu a porta e desceu.
Às três e trinta e três, tendo já explorado a pequena área em torno do
automóvel, já constatada a presença de três orelhões próximos, duas
padarias fechadas, um ponto de ônibus e cinco semáforos, resolveu entrar
na loja. Tirou a chave do contato, jogou-a na bolsa e entrou, procurando
Mário.
A loja estava calma, vazia mesmo. Não era muito grande.
Um vendedor, solícito, aproximou-se:
-- Pois não...
Sandra armou um sorriso:
-- Não é nada, obrigada. Vim encontrar meu marido.
-- Oh, sim senhora. Se quiser sentar-se e esperar que ele chegue...
Sandra continuou caminhando:
-- Ele está aqui há meia hora, obrigada.
Chegou ao fundo da loja, onde um senhor de cabelos brancos estava
inclinado sobre um jornal estendido no balcão de embrulhos. Não viu
Mário.
Talvez tenha ido ao banheiro, pensou.
-- Por favor..
O senhor, que lia jornal, levantou a cabeça:
-- Pois não.
-- Estou procurando pelo meu marido...
Cada maluca que me aparece! - pensou ele.
-- Sim...seu marido?
-- É. Ele está aqui, não está?
-- Não sei, minha senhora. Como vê, aqui só estamos eu e o meu
empregado.
-- Não...Isto é...É que eu estava lá fora, no carro, esperando por
ele...
-- Sim. E o que a faz pensar que ele esteja aqui?
-- Escute, o senhor não está entendendo. Ele estacionou o carro, aquele
ali fora, está vendo? E entrou aqui para comprar uns fios de som...
-- Minha senhora, não entrou ninguém nesta loja hoje, para a minha
infelicidade. E estamos abertos desde as oito horas da manhã.
-- Mas eu o vi entrar aqui!
-- Sinto muito, senhora. Talvez na loja ao lado...
-- Não há nenhuma loja ao lado! -- respondeu ela, quase gritando.
-- E quem me garante que haja algum marido? -- zombou o velho. E voltou
ao jornal.
Às nove e cinquenta e cinco da noite Sandra pára o carro de Mário em
frente ao prédio onde mora. Ou será que nunca morou neste prédio? Para a
sua tranqüilidade, o porteiro aproxima-se gentil:
-- Boa noite. Devo guardar o carro, D. Sandra? Ou a senhora ainda vai
sair hoje?
Sandra começa a chorar.
-- A senhora sente-se bem?
Resmunga alguma coisa, entrega o carro e dirige-se à portaria. Quase
corre. Uma esperança cruza-lhe a mente. Sim, Mário deve estar em casa,
deve ter voltado, tudo não passara de um simples desencontro... Mas
--racionaliza-- mesmo que ele tivesse ido a pé a outra loja próxima, por
que não voltara para onde estava estacionado o carro? Bem, talvez ela
tivesse se precipitado indo embora e ele então, não a encontrando,
viesse tranqüilamente para casa...
-- Não vai subir?
Sandra percebe que estancou diante do elevador e que o porteiro espera
que ela entre, enquanto segura gentilmente a porta.
-- Ah, sim, obrigada.
Deve estar bêbada, pensa o porteiro. Será que apertou o botão certo?
Os números luminosos indicam a subida.
Sandra, entre as estreitas paredes do elevador, tenta se animar. Sim,
Mário só pode estar em casa. Ela é que fora precipitada, não o esperara
na loja, nem se lembrara de telefonar para casa...Claro, não passava de
uma estúpida! - censurou-se - Coitado do Mário, imagine a aflição dele
sem saber o que fora feito do carro e de sua mulher... e ela a armar
toda esta confusão!
Alguma coisa porém, dentro dela, afirma que está errada. Mesmo que toda
aquela tarde absurda, as humilhações pelas quais passara, a descrença
nos olhos das pessoas, as zombarias dos policiais que a atenderam como
se ela fosse uma maluca qualquer...mesmo que tudo isso não fosse mais
que um pesadelo...
Coloca a chave na fechadura com uma fúria, uma alegria... Ah, claro que
ele só pode estar ali, esperando por ela, meio bravo...e poderá ela
atirar-se no abraço dele e chorar...chorar até esquecer...Na confusão de
sua ansiedade a chave lhe escapa, cai. Neste exato momento a luz
automática do corredor do edifício se apaga. Sandra sente que vai
desfalecer. Recomeça a chorar.
-- Meu Deus, estarei enlouquecendo? - pensa. A lembrança do absurdo
daquele tarde turva-lhe o raciocínio.
Saíra da loja, ofendida e preocupada. Afinal, onde se metera o Mário?
Caminhara um pouco por ali, perguntando às raras pessoas que encontrara
na calma do sábado. Ninguém vira um homem alto, de óculos, moreno,
usando uma calça jeans e uma camisa de tênis meio manchada no ombro
esquerdo.
Caminhou bem uma meia hora. Voltou ao carro. E recomeçou a procurar, no
sentido oposto ao que viera.
Não se atreveu a entrar novamente na tal loja, embora notasse o arzinho
de riso do funcionário a observá-la da porta.
A decisão foi repentina. Correu de volta ao carro, entrou e partiu. Para
onde?
Voltou. Estacionou no mesmo lugar. E falou com o empregado da loja,
tentando ignorar sua expressão de zombaria. Descreveu o marido, disse
que ia à polícia, pediu que, se Mário afinal aparecesse, fosse avisado.
O moço ouvia tudo, com ar entre imbecil e gozador.
O mesmo ar que encontraria em quase todos os rostos das pessoas a quem
pediu ajuda naquela tarde.
Tudo fora ridículo, ridículo! E ridícula sentia-se agora, quase deitada,
no escuro, à porta de seu próprio apartamento.
Levantou-se, acendeu a luz do corredor, ajeitou o vestido, limpou as
lágrimas, pôs a chave na porta, abriu.
-- Mário?
Silêncio.
O telefone tocou. Na polícia, depois de todas as humilhações passadas,
tinham-na mandado para casa. Telefonariam. Embora, oficialmente,
tivessem que aguardar vinte e quatro horas para considerar alguém
desaparecido, o investigador mais moço e simpático (o único que parecia
acreditar nela) prometera fazer alguma coisa.
Correu para o aparelho. Eram eles, tinha certeza, eles teriam alguma
notícia.
Aí então me levarão a sério -- pensa enquanto voa até o telefone.
-- Alô! Alô!
Apenas o ruído da linha sendo desligada.
Sandra suspira. E sai pelo apartamento abrindo e fechando portas, ciente
da continuidade do pesadelo. Pára à porta do armário do quarto de
vestir. Ofegante. Apóia a cabeça contra a porta de madeira e tenta
colocar em ordem os pensamentos. Calma, vão encontrá-lo, repete para si
mesma, o telefone vai tocar. Ele pode estar num hospital, pode estar
morto...Não. Sente que Mário está vivo. Mas onde? Como? Por que?
Então, pela primeira vez, ocorre a ela que as insinuações e risadinhas
que ouviu durante toda aquela tarde talvez tivessem sua razão de ser.
Talvez Mário tenha simplesmente resolvido abandoná-la...Mas às três
horas da tarde e numa loja de material elétrico? Absurdo. Ou não?
Num impulso, abre o armário. Está vazio. Nem os cabides...
Sandra não compreende. Mas sente então que a sensação de irrealidade e a
angústia das últimas horas vão abandonando seu corpo, seus
pensamentos... Está perplexa, mas aliviada. Certo, tudo estava certo e
era muito simples: fora abandonada! Apenas isto, meu Deus! Mas...ele me
amava, pensa.
Corre lentamente seus grande olhos pelo quarto. E percebe que o único
vestígio da presença dele é o livro que ele estivera lendo e largara
aberto sobre a mesinha da cabeceira.
Sai caminhando pelo apartamento. Os cachimbos? Não estavam. Os seus
uísques queridos? Nem sinal. Porta retrato com foto da lua de mel?
Sumira.
Nada poderia, de fato, denunciar a presença dele naquela casa.
Talvez ele nunca tivesse, realmente, estado ali...pensa Sandra, antes de
perceber que a irrealidade da tarde a influenciava.
O espelho do banheiro revela uma Sandra decomposta.
Abre o chuveiro. Toma um banho furioso, esfregando as sensações.
Vinte minutos depois, profundamente triste, os cabelos metidos numa
toalha enrolada, o corpo descansando em um roupão de banho, os pés em
confortáveis chinelos, Sandra -- uma dose de uísque e um cigarro --
comunica-se com a portaria do prédio.
-- Seu Aloísio?
-- Pois não, dona Sandra.
-- Será que um dos porteiros poderia me informar a que horas o meu
marido saiu?
-- Seu marido?...
-- Sim, o Mário.
-- ...
-- Seu Aloísio?
-- Dona Sandra, a senhora me desculpe, mas eu não estou lembrado do seu
marido...
-- Seu Aloísio! O senhor bebeu ou está brincando comigo?
Quem bebeu foi a senhora -- pensa o porteiro, que a viu chegar há pouco.
Toca o telefone. Sandra desliga da portaria para atender. Passa uma
eternidade até que um homem se identifique como o investigador moço e
simpático que a atendera à tarde. Ela pode sentir o seu coração pulsando
forte contra os músculos do peito.
-- Eu sinto muito -- diz o homem ao telefone -- não pude encontrar nada,
nenhum registro, nada. Para nós, oficialmente, a pessoa que a senhora
diz chamar-se Mário Lucas não existe.
Para a polícia Mário Lucas poderia não existir. Mas casara com ela. Lá
estavam a certidão, as assinaturas, mesmo as das testemunhas
desconhecidas arranjadas pelo cartório (fora um casamento discreto).
E agora? --pensa Sandra-- deveria procurar amigos ou conhecidos que
pudessem afirmar à polícia a existência de Mário?
Ora...isto aqui está parecendo um filme... Deveria ela tentar reunir
provas da existência de Mário para que a polícia pudesse agir? E de que
adiantaria a ação da polícia? Estavam em São Paulo, Brasil, 1974. As
pessoas desapareciam. Aos montes. Era rotina. Por que se importariam com
a história dela?
Sandra procura afastar o terror da sensação de irrealidade que volta a
angustiá-la...Quem seriam as suas testemunhas? Poucos meses de casada,
poucas semanas morando em São Paulo, um único casal de amigos comuns
que, por ironia, estava na Europa... Não conhecia a família dele. Nem
ele, a dela. Haviam apenas cartas e nomes e datas. As fotos da lua de
mel, as fotos de ambos juntos também haviam sumido dos álbuns...
Lembra-se então de um rapaz simpático e sorridente que sempre atende ao
Mário na seção de importados do supermercado...Ou o homem do posto de
gasolina, ali ao lado... Todos hão de lembrar- se do Mário. Ainda mais o
Mário, tão galante e simpático.
O porteiro... o porteiro não se lembrava...
Ora, mas amanhã é domingo e depois é segunda feira e existe um
escritório de advocacia, recém-inaugurado, que pertence ao Mário, que é
onde ele trabalha e lá existem pessoas, funcionários e clientes e... um
mundo de gente para trazê-la de volta à realidade!
Mesmo que a realidade fosse a triste ausência de Mário, fosse o
abandono.
Mário Lucas existia.
Mas ninguém se lembrava.
Nenhum dado oficial.
O porteiro do prédio só sabia de eventuais companheiros da dona Sandra,
não de um marido.
No prédio de escritórios jamais houvera --juravam todos-- um advogado
com este nome. Mudara o homem do posto de gasolina e não existiam
funcionários na seção de importados do supermercado.
Foi um longo trabalho, o do esquecimento.
Alguém o conhecera? Estava nos arquivos? Nos jornais? Na lembrança das
pessoas? Quem sabia dele?
Aparentemente, ninguém.
Pensou que fosse enlouquecer.
Depois pensou que tivera enlouquecido, antes. E que agora é que estava
com a razão.
Mas esqueceu.
Não pensou mais.
Aceitou.
Varreu cada vestígio dele, lentamente. Tirou-o do corpo, a pele se
esqueceu, o rosto dele foi se apagando, a figura confundiu-se em sua
memória a muitas outras já vistas, diluiu-se no cotidiano.
Esqueceu.
Fazia já muito tempo, alguns bons anos, quando, numa tarde, quase
esbarrou nele, ao atravessar a avenida Paulista, num semáforo de
pedestres. Estava fazendo frio e as pessoas andavam depressa, meio
encolhidas. Olhou para ele e o reconheceu. Foi atrás dele, rompendo a
multidão, o coração aos pulos. Era ele! Ele! Estava ali, a poucos
passos, ao seu alcance, afinal! Mas como, se ele nunca existira?
Acabaram se apresentando um ao outro, no saguão do hotel onde ele
entrara e ela o seguira. Tudo muito casual, mas pareciam ambos saber que
não era casual. Ela notou as pequenas linhas que o tempo imprimira no
rosto dele, os fios grisalhos nos cabelos...Falaram sobre política,
sobre a campanha das Diretas Já, sobre a frente fria, sobre o trânsito
de São Paulo.
Jantaram juntos. E, se alguém estivesse disposto a observá-los, saberia
que eram amantes, essa privilegiada classe de seres humanos que se
diferenciam dos demais por um leve brilho de estrela nos olhos, uma
certa patetice nos gestos e um ar arrogante de quem enxerga para além do
horizonte.
Isabel Fomm de
Vasconcellos, 1984 |