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como começou
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Veja reprodução da
matéria internacional que cita o livro e aproveite para conhecer
Luciene Almeida de Figueiredo, minha parceira nesse livro.
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Capítulo 18 - Veneno de
Abelha (trecho)
Luanda estudara – e ainda
estudava – desde criança a arte da manipulação das muitas substâncias
que existiam nas plantas e também as que eram produzidas por insetos e
outros animais. Eram segredos guardados há séculos pelos curandeiros e
bruxos africanos e, na história da humanidade, haviam sido posse apenas
de alguns povos da Antiguidade e da Idade Média, como alguns egípcios e
alguns celtas. Segredos que possivelmente estariam hoje enfurnados nas
prateleiras secretas da Biblioteca do Vaticano, segredos que faziam
parte de um conhecimento que não cabia e que nem era conveniente que
coubesse no rol do que se convencionara chamar de ciência. Luanda ria:
ciência limitada, branca, ocidental, capitalista e cristã. Mas o mundo
não era feito apenas desses itens. O mundo era África. O mundo era
Amazônia. O mundo era Oriente. E muitas eram as técnicas e tecnologias
excluídas dessa cultura dominante, orquestrada pelos países
economicamente desenvolvidos que, na visão de Luanda, eram também
subdesenvolvidos holística e magicamente. Um mundo que pensava poder
aprisionar a realidade em caixinhas estanques, um mundo que pensava –
com sua tecnologia baseada apenas no lado racional – poder classificar e
dominar a natureza, ignorando que havia muito mais, na vida do planeta,
do que os olhos e a razão conseguiam enxergar. O mundo dos bobos –
julgava ela. O mundo dos padres que vieram para esse continente
“catequizar” e escravizar seu povo, classificando-os de selvagens e
passando por cima de sua sabedoria, ignorando arrogantemente que existia
essa sabedoria... Luanda casara-se com Aravan sem saber que ele
pertencia, de corpo e alma, ao mundo ocidental, ao mundo “branco”, como
ela o chamava. Ela não. Era negra. Por fora e por dentro, com muito
orgulho. E, assim como se casara com ele por interesse, na tentativa de
recuperar um pouco do conforto financeiro com o qual fora criada, seria
também capaz de mata-lo por interesse. Só não podia ser descoberta. Por
isso o induzira ao sono e ao acidente. Mas existiam poderes ainda
maiores. Esses poderes, no entanto, ela sabia, tinham um preço a cobrar,
proporcional à sua grandeza. Um preço que ela, nem de longe, estaria
disposta a pagar.
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foto africana por
Luciene A Figueiredo
Capítulo 19 - Cor de
Laranja (trecho)
Tudo para ser feliz.
Exceto naqueles mornas tardes de verão em que a paisagem evocava
África. E o vento nas árvores, e o céu cor de laranja, todo o
entorno, parecia chama-la de volta à África, como se ela jamais,
depois que vivera lá, pudesse se livrar do terror, da magia e da
beleza daquele continente ancestral. Sentia no peito a vibração dos
inaudíveis tambores das aldeias que visitara, via, no céu alaranjado
do crepúsculo, refletida a sua angústia, uma angústia aparentemente
inexplicável, sem razão de ser, como se todos os feiticeiros, lá do
outro lado do oceano, conspirassem para leva-la de volta.
Capítulo 14 - Até no
Inferno (trecho)
“Adel se lembrava de
quilômetros de praias desertas, poucas construções. Tudo mudara. Até a
maresia tinha outro cheiro. Mas não se desgostou do que viu. Salvador
continuava linda. E tinha ares de modernidade, progresso. O hotel era
maravilhoso e nada devia a qualquer cinco estrelas do mundo. Nos dois
primeiros dias, enquanto Beth ia cobrir o tal evento, se deixou ficar na
piscina do hotel, um grande deck sobre a praia, leu muito, nadou muito e
pouco saíram, as duas, à noite. Ambas cansadas. Adelaide, fisicamente, e
Beth, moralmente. Reclamava muito dos discursos femininos que ela
julgava ultrapassados.
— Mas você sempre foi declaradamente feminista! Sempre trabalhou pela
igualdade das mulheres e de outras minorias discriminadas! — Protestou
Adel ao ouvir as queixas de Beth.
— Meu Deus, Adel! — Exclamou a amiga — Você não percebe que já estamos
num pós-feminismo? Não vê que as mulheres do mundo estão se negando a
enfrentar essa tal de dupla jornada de trabalho e aderindo a atividades
que lhes permitam ser produtivas em suas próprias casas, com seus
filhos, seu universo tão feminino, que passa pela magia da manipulação
da matéria...
— Magia da manipulação da matéria?
— Sim, a cozinha! A cozinha, a horta, as plantas ornamentais, tudo isso
é alquimia, Adelaide! Alquimia do universo feminino! As mulheres estão
redescobrindo o lado bruxa que a fogueira da Inquisição católica roubou
delas. Não dou dez anos para que o computador, a informática enfim,
transforme muitos lares em “home offices” liberando as mulheres e os
homens de um trabalho insano, que passa por um deslocamento insano num
tráfego insano. Tudo vai mudar, Adel! Uma nova geração já não quererá
saber de trancar-se por oito horas num escritório impessoal. Veja o que
já acontece nos Estados Unidos, nas empresas do Vale do Silício, onde
cada funcionário faz seu horário, sua carga de trabalho, muitos se
deslocam de bicicleta e abandonaram os trajes formais. Esse é o futuro
próximo. Nesse futuro as mulheres participarão da vida produtiva como já
o fazem hoje, mas sem a angústia de se verem divididas entre a vida
profissional e o cuidado dos filhos. Veja quantas mulheres estão se
tornando empresárias dentro da sua própria casa, montando oficinas
profissionais de costura ou de cozinha ou de artesanato e sendo
bem-sucedidas, trabalhando em casa. E, no entanto, eu estou aqui, em
pleno ano de 2008, cobrindo uma reunião de mulheres supostamente
empreendedoras que praticam o discurso de suas mães e avós feministas
dos anos 1960. Não dá!
— Você vai escrever tudo isso? — Perguntou Adelaide.
— Vou — respondeu Beth — Mas tenho certeza que meu editor vai cortar a
metade. A revista dele está comprometida com alguns anunciantes que tem
interesse nessa organização de mulheres chamadas “de negócios”, cuja
matriz, é claro, está nos Estados Unidos. Além disso, as poucas mulheres
políticas brasileiras, principalmente as de esquerda, endossam esse
discurso feminista e ultrapassado. O pior é que essas mulheres que estão
aqui reunidas se acham muito avançadas por terem incorporado em sua
briga, pelo o que elas chamam de “empoderamento feminino”, alguns itens
feministas. Todas estão cegas, atrasadas, enganadas! O caminho é bem
outro! Mas, enfim, melhor mudar de assunto.
E retomando seu ar zombeteiro perguntou à Adelaide:
— Ainda teremos um dia para ficar em Salvador depois do término do
evento, que será no almoço de amanhã. Você nem saiu do hotel, quer ir a
um desses centros de candomblé que são abertos aos turistas?
Adel sentiu os pelos do braço se arrepiarem:
— Você pirou, Beth? Fugi da África, massacrada pela feitiçaria, e você
quer me levar de volta a ela, aqui no Brasil?
— O Brasil é muito mais africano do que os brasileiros admitem. Esses
“contentinhos” de agora vivem indo pra Miami e Nova Iorque gastar
dólares em bugigangas, mas dentro da alma deles estão todas as raízes da
nossa história e a nossa história tem as duas pernas e o braço direito
mergulhados em África.
— É, pode ser — disse Adel, já rindo dos exageros e da veemência da
amiga — mas eu prefiro o Brasil americanizado. Vamos a um shopping
qualquer e depois vamos comer num restaurante baiano. Uma boa comida dos
orixás.
— Está vendo? — Disse Beth, com um tapa na mesa — Orixás!
E riram as duas.”
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