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Nascer menina
Maria José Silveira
 

(Di Cavalcanti, 1967, Menina com Gato e Piano)

 

 

 

 

8 de março de 2017, Dia Internacional da Mulher.

Declaração do Presidente do Brasil:

 

“Tenho absoluta convicção, até por formação familiar, por estar ao lado da Marcela (Temer), o quanto a mulher faz pela casa, o quanto faz pelo lar, o quanto faz pelos filhos. Se a sociedade, de alguma maneira, vai bem, e os filhos crescem, é porque tiveram uma adequada formação em suas casas, e seguramente isto quem faz não é o homem, mas a mulher ...Na economia também a mulher tem grande participação. Ninguém mais é capaz de indicar os desajustes de preços no supermercado do que a mulher”
Michel Temer, presidente da República
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

outras subpáginas sobre o 8 de março, aqui no Portal S&L

 

 

 
 

Neste surpreendente mês de março dedicado à luta das mulheres, meu dia anda começando cedo.
Hoje, por exemplo, já fui e voltei dos Supermercados Temer (como bem batizou Zé Simão), onde fiquei um bom tempo estudando as flutuações dos preços dos legumes, frutas e carnes, exercendo meu cívico papel feminino de controladora de preços da nação. Depois, para descansar um pouco, antes de contribuir para formação dos netos, dei uma olhadinha nas estatísticas nacionais, ainda que essas, segundo presidentes não eleitos, sejam tarefas tão só do provedor da casa, o homem.
 

Eis o que vi:
- o país ocupa o 5º lugar “no ranking de assassinados femininos no planeta”;
- a cada hora e meia uma mulher é assassinada por um homem, resultando em 13 feminicídios por dia;
- a cada 4 minutos há uma violência sexual, física ou psicológica sofrida por mulheres, ou seja, 405 por dia;
- a taxa de assassinatos de mulheres negras aumentou 44% em dez anos;
- calcula-se que 527 mil estupros são cometidos no país anualmente, dos quais apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia;
- 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados, amigos ou conhecidos;
- em São Paulo, a grande metrópole do país, nos últimos quatro anos houve um aumento de 850% (sim, oitocentos e cinquenta por cento!) no número de boletins de ocorrência por estupro, ato obsceno, importunação ofensiva ao pudor e estupro de vulnerável no transporte público da cidade;
- em todo o país, mulheres nos mesmos cargos continuam ganhando 30% menos que os homens.
 

Frente a tudo isso, o relatório da Anistia Internacional sobre violações de direitos no Brasil em 2016, afirmou que “o Brasil é um dos piores países da América Latina para quem nasce menina, em especial devido aos níveis extremamente altos de violência de gênero e gravidez na adolescência, além das baixas taxas de conclusão da educação secundária.”
 

Dizer mais uma vez que o nosso é um país com autoridades machistas que piamente acreditam que as competências das mulheres, essas cidadãs de segunda categoria, estão relegadas aos trabalhos do lar, é regurgitar uma dolorosa obviedade que a sociedade contemporânea há muito repudia. E, além de ressaltar ainda mais o crescimento que as estatísticas de desigualdades e violência contra as mulheres expõem, nos remete a um passado assustador.
 

Simone de Beauvoir, a filósofa que revolucionou a questão feminina, há 68 anos formulou uma preciosa verdade: não nascemos mulher; tornamo-nos mulher, a partir da história da civilização humana (que é a história da dominação masculina) e da história particular de cada uma. Com essa consciência e a luta das mulheres, a opressão em que a história teimava em nos jogar, vem sendo há décadas, com esforço e paulatinamente, desconstruída. Mas eis que, então, neste março do século XXI, quiseram nos passar uma rasteira e nos arremeter de novo para o século passado.


Não deu certo. Desculpas tiveram que ser pedidas no dia seguinte. Mas as estatísticas que aí estão mostram com clareza o crescimento do perigo de nascer mulher neste país.

(Crônica publicada em “O Popular” em 16/março/2017)