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Quando Fiquei Pobre

memória de Isabel Fomm de Vasconcellos

 

Meu pai, Alfredo Fomm de Vasconcellos, era um pesquisador independente, apaixonado por imagem -- cinema e fotografia – e acabou se tornando um pioneiro nas técnicas cinematográficas no Brasil. Isso num tempo em que importação era uma palavra maldita no país. Já que não podia importar, meu pai construía suas próprias máquinas de fazer cinema. Essa é uma história complicada e comprida, pra se contar em tempos de imagens digitais. O fato é que o Velho Vasco (como eu o chamava) tinha um laboratório cinematográfico em 16mm que ninguém mais tinha na América do Sul.

 

Um dia, nos anos 1960, o governo da ditadura militar acabou inviabilizando o trabalho dele, taxando as importações de filmes e outras matérias primas na estratosfera. Meu pai vendeu seu laboratório pelo preço da sucata. Máquinas em que ele passara longas noites trabalhando, descobrindo os mistérios do som ótico e do processo químico das revelações das cores... Foi o primeiro passo da descida da ladeira.

 

A fonte secou. Está certo que havia a oficina de costura da minha mãe, que fazia vestidos caríssimos para as endinheiradas quatrocentonas paulistanas. Havia ainda um salário dele, como diretor do serviço de filme patrulha do Jockey Club de São Paulo. Mas tudo estava mudando. As endinheiradas começaram a comprar roupas no novíssimo Shopping Iguatemi (o primeiro shopping do Brasil, que revolucionou todo o comércio) e nas boutiques que já vendiam o até muito pouco tempo antes inexistente pret-a-porter. O cargo de meu pai no Jockey, que tinha a mágica dos pioneiros do cinema nos anos 1940 e 50, há muito deixara de ser mágico... Os badalados e respeitados câmeras e cinematografistas do primeiros anos da TV e do cinema no Brasil estavam, aos poucos, sendo reduzidos a meros técnicos de terceira categoria. O gordo salário do diretor do filme patrulha emagrecia consideravelmente e o seu prestígio idem.

 

Mas as despesas continuavam as mesmas. Tínhamos dois automóveis (numa época em que pouca gente tinha um) barco, casa enorme, gordas refeições onde a mesa era farta e aberta a quem estivesse por perto, duas avós morando conosco, meus irmãos, eventualmente algum amigo ou primo que vinha passar uma temporada na nossa casa, duas ou três empregadas... Uma casa que varava quarteirão e que eram, na verdade, duas, porque o laboratório do meu pai era uma “continuação” da casa (e, quando ficou vazio, virou uma espécie de clube para mim e um enorme bando de amigos adolescentes que passavam parte do dia lá, usufruindo de coisas não muito comuns na casa das pessoas de então, como sofisticados sistemas de som e projetores e câmeras de cinema)... Mas, estou divagando...

 

Em 1969,  com minhas avós mortas, meus irmãos fora de casa (Alvan na TV Excelsior Rio – depois Globo— e Alfredinho internado) meus pais chegaram a conclusão que poderiam vender aquela casa enorme, comprar uma menor, sobraria alguma coisa... Venderam; a prazo, em 36 meses e sem correção monetária. Foi bem no ano em que a inflação galopante que dominaria o Brasil por mais três décadas mostrava sua cara. Ou seja, eles deram uma casa de 500m2 de área construída de presente pro comprador.

Nunca mais conseguiram comprar outra.

Compraram um terreno, com o dinheiro da entrada, pensando em construir... Alguns anos depois venderam o terreno e o dinheiro se foi.

 

 

 

Milton Zanella, José Rosa e meu pai, diante de uma então moderna maquina de revelar filmes.

 

Meus tios: Therezinha Walter de Almeida, Oswaldo Martins Marques e Otto Krausz com meu pai (o baixinho) na entrada da nossa casa.

Demorei algum tempo pra perceber que eu não era mais uma garota de classe média alta e, também,  que o dinheiro tinha valor. Porque até então, pra mim, o dinheiro não tinha nenhuma importância. Claro. Pra quem tem dinheiro à vontade o dinheiro pode não ter importância. Quando não se tem, ele passa a ser tudo.

 

Apesar do nível econômico familiar ter mudado, aos 18 anos eu tinha o meu próprio carro, financiado pelo papai. Só aos vinte e tantos, trabalhando como redatora numa agência de publicidade, paguei pelo meu próprio fuska. Todo mundo tinha fuska no Brasil dos anos 1970.

 

 

 

Meus pais, Alfredo e Wanda, em 1974

 

 

Foi o pior Brasil da minha vida, esse dos anos 1970.

 

Todos os valores nos quais eu acreditava, os valores da geração dos sessentinhas, geração do “faça amor, não faça a guerra” começaram a descer pelo ralo.

 

Foram os anos em que a filosofia do Gerson (Levar vantagem em tudo) substituiu a gentileza, a educação e a solidariedade. Foram os anos em que os brasileiros passaram a estudar em faculdades que eram meras criadoras de mão de obra especializada e estavam muito distantes dos ideais das verdadeiras Universidades.

 

Foram os anos em que quase todos os nossos ídolos foram presos ou exilados, incluindo aí os inocentes músicos como Caetano, Gil e Chico.

 

Foram os anos de terror da Ditadura. Os anos de “Pra Frente, Brasil” e milagre brasileiro. O Milagre era uma farsa, endividou o país até os gorgomilos. E pra frente, uma ilusão, já que, cultural e humanamente, estávamos andando para trás.

 

Foram os anos da censura, nos quais eu também quase fui em cana por causa de uma simples crônica que escrevi e que fez o jornal ser retirado, de madrugada, das máquinas. Anos em que tudo precisava ser dito nas entrelinhas para tentar escapar da histórica burrice dos censores.

 

Foi por isso que, mais do que sem o dinheiro fácil com que fui criada, nos anos 1970 eu fiquei pobre.

Pobre de amigos, de ídolos e de esperança.

  

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Oscar Ultravitrine

13 de fevereiro às 21:43

 

 

 

Isabel, eu não passei por essa experiência (por motivos óbvios) rsrsrs. Mas passei por circunstâncias parecidas e aí me veio uma curiosidade: - Quando se fica pobre, o que vai primeiro (depois do dinheiro, lógico):
( ) Os amigos?
( ) Os ídolos?
( ) A esperança?

Oscar Ultravitrine, acho que vc apagou seu comentário, mas ele veio por email e eu vou responder: 1. são os amigos."Nobody knows when you're down and out". Depois, quando você vem morar na Avenida Paulista, eles tentam voltar, mas vc só fica com os verdadeiros, sacou? Deve ser por isso que todos adoram as nossas festinhas aqui em casa. 2. Os ídolos independem da grana, eles vão te decepcionando com a natural passagem do tempo e 3. a esperança é a última que morre, esqueceu? Bjs e bom carnaval. Gostou da sua publicação no portal SAÚDE&LIVROS?

  • Oscar Ultravitrine Bom dia Isabel. Na realidade eu apaguei porque escrevi de sopetão e, ao conclui-lo, vi que deixaria dúvidas. Principalmente na frase "por motivos óbvios", onde poderiam entender que nunca fiquei pobre, enquanto a realidade é oposta rsrsrsrs. Porém, nas diversas oportunidades em que "estive bem" era impressionate a quantidade de amigos/as que gravitavam ao redor e, à qualquer sintoma, saiam de órbita... Mas li recentemente no facebook uma frase muito legal, mais ou menos assim: "O motivo de muitos amigos se afasterem de ti é a resposta à sua prece: Livrai-nos de todo mal, amém".

    Isabel, fico lisonjeado com sua resposta. Ela só confirma o que sinto ao ler suas crônicas: Que somente uma pessoa sensível, humilde sem deixar de ser grandiosa, eloquente na construção de uma simples frase e natural... tão natural ao usar uma gíria ou até um palavrão (não os vi, ainda), que posso escrever com todo o orgulho: Ela é minha amiga.

    Bom final de semana e ótimo Carnaval, Isabel.