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O HOMEM QUE COMIA MITU
 

por Nelson Primi

Goya, Fuzilamento

Nos tempos bicudos dos anos de chumbo quase tudo era proibido.
Imaginem que no próprio colégio Alberto Conte uma pequena reunião ou agrupamento de alunos no pátio , não importando o assunto que corria, era imediatamente dissolvida pelo seu Martins, dona Zuzu, dona Maurina ou o sargento Garcia para que não se caracterizasse o cunho político da conversa.
 

Aguentamos firmes de 1964 no golpe do Marechal Castello Branco do ato 1 até 1967 com o ato 4; quando da promulgação do ato 5 em 1968 não tivemos escolha, nossos direitos constitucionais estavam simplesmente abolidos e vários amigos eram presos e sumiam misteriosamente tendo culpa no cartório ou não.
Quaisquer denúncias, independente da fonte, era motivo para prender para depois e muito depois se averiguar o fato, tanto é que nessa época se popularizou o termo - preso para averiguações.

 

A imprensa de um modo geral estava censurada ( quem se lembra das receitas de arroz publicadas na primeira página do Jornal da Tarde ?), as informações chegavam truncadas, os aparelhos (locais de reunião do pessoal da oposição) eram descobertos através de informações de infiltrados nos nossos grupos.
Eu felizmente ou infelizmente não aderi aos movimentos políticos; tomado por uma paixão de adolescente, troquei o ufanismo pelo parnasianismo.
Vários dos nossos seguiram bravamente para mudar o País, outros simplesmente desistiram do Brasil e foram se instalar em outros cantos mirando o movimento do Make love not war seguiram para Londres, Liverpool, Paris com os parcos recursos dos dois anos de inglês e dois de francês que tivemos no colegial.


Duas lendas interessantes eram contadas na época:
 

Havia um dos nossos amigos especializados em produzir factoides, espalhar boatos e criar fofocas a respeitos dos militares e delegados da época.
Acontece que um dia o nome dele caiu nas orelhas do Sérgio Paranhos Fleury morador ali na Rua Conde de Itu e diretor do DOI-CODI que resolveu dar uma coça no bocudo.
Apreenderam o amigo,levaram-no no camburão para um terreno baldio ali onde seria a Marginal Pinheiros, vendaram seus olhos, amarraram-no em uma árvore e antes da saraivada de balas que ele esperava o delegado avisou:
-Isso é para você aprender a respeitar as autoridades; nessas alturas o amigo estava já todo lambuzado; quando ele deu a ordem para atiram, as balas eram de festim, largaram ele todo sujo e foram embora.
No dia seguinte voltou às reuniões do aparelho e foi aclamado com palmas por ter sobrevivido, de repente pediu a palavra e alertou a moçada:
- Companheiros, desta vez ganharemos a luta, as Forças Armadas estão sem munição.
 

A outra é do amigo que comia Mitu.
Chegou a Londres com a ajuda da família que comprou a passagem só de ida e da vaquinha dos amigos que separaram roupas de inverno para sobreviver nos frio europeu e parcos cruzeiros que lhe davam vinte dias de sobre-vida até conseguir o emprego prometido.
Procurou um restaurante pé-sujo na periferia e sem entender patavina do menu, dava uma olhada geral nas mesas dos clientes e se sentava.
Quando o garçom se aproximada e apresentava o cardápio ele imediatamente se levantava, apontava o prato do cliente escolhido e dizia em alto e bom som.
-Me too.
 

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Oscar Ultravitrine

Aproveitando a deliciosa crônica do Nelson Primi sobre os Tempos Bicudos para relembrar alguns “causos”:

Em 70 ou 71, costumávamos ir, quando a tarde estava bonita, o José Carlos Heinze, o Ronaldo Câmara, o Álvaro Paes Leme (o filho), o Vitor Rolim de Freitas, eu e mais alguns amigos que moravam na Mal Deodoro, à pé pela Adolfo Pinheiro.

Sempre íamos conversando, tirando sarro um do outro e cada um ficava no meio do caminho, conforme chegasse perto de sua casa. O Vitinho na Gal Carneiro, o Ronaldo na Nove de Julho, o Zé Carlos na Fraternidade, o Álvaro e o Jandir eram os que iam mais longe - perto do Clube Banespa.

Naquela tarde não foi diferente, mas, depois de deixarmos o Vitinho e o Ronaldo, quando estávamos quase chegando na Fraternidade, fomos “abordados” por uma viatura da polícia, que queria saber o que fazíamos, de onde víamos, para onde íamos. Como ainda naquela época não podíamos andar em grupos (nem no pátio do Alberto Conte e muito menos nas ruas), eu menti dizendo que era office-boy e estava indo ao Banco. O Álvaro, com aquele jeito de quem não tinha que dar satisfação prá ninguém, disse que estava indo prá casa e ainda perguntou, provavelmente contando com as costas quentes do pai, que era da Record: Por quê?

Quando perguntaram pro Zé Carlos, ele disse a mesma coisa: Office-boy, mas os milicos duvidaram, obviamente. Quando iam nos revistar, encostando-nos no muro do Colégio Anglicano (hoje banco Bradesco), apareceu o Positivo. O Positivo era um negrão que vivia ali na região, principalmente no bar do Fernando (esquina da Fraternidade com a Adolfo) e a gente imaginava que fosse parente do Big. Quando o milico segurou o braço do Zé, empurrando-o contra o muro, como dizia, apareceu o Positivo, colocou a mão no ombro do policial e disse: - Deixa o garoto, ele é boy mesmo.

Até hoje não sabemos porque, o policial olhou pro Positivo, para seus companheiros, deram de ombros uns para os outros, entraram no carro e foram embora. O triste é que a partir desse dia, todo mundo passou a achar que nosso benfeitor era um espião infiltrado.

O pior, mas pior mesmo, é que eu sempre andava com uma moeda no bolso, uma espécie de amuleto do tipo a "moeda nr. 1 do Tio Patinhas". Imaginem o medo que senti, deles me revistarem e acharem essa moeda:

 
 

Estanislau Rybczynski Nelson, muito boa a cronica, aqui em meu bairro, nessa mesma época , anos de chumbo, um senhor (muito popular no bairro) foi preso e torturado, porque ele era conhecido como manipulador de massas, conhecedor das massas, ate explicar que ele era padeiro e fazia uma massa boa, já tinha apanhado muito na 11ª. (omiti o nome e o bairro de próposito)

 

Nelson Primi Ah ah ah ! que maravilha, eram anos também de muita desinteligência; o Chico Anysio contava uma história que um dia ele foi submeter uma peça de teatro que havia escrito aos censores e em uma das falas o ator dizia: Fui à Roma e adorei os afrescos da Capela Sistina, o censor mandou substituir por " rapazes de maus hábitos" da Capela Sistina.
 

Isabel Fomm de Vasconcellos O meu irmão Ronaldo Alvan contava que um censor cortou, no programa Times Square, da TV Exclesior (onde Alvan era gerente de programação, na época) um poema do Bilac, o famoso "onde a brisa do Brasil beija e balança", alegando que " é imoral o ato de beijar e balançar ao mesmo tempo".
 

Nelson Primi Ah ah ah! dá um anedotário, é não Isabel?