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(capa livro Maria José)

 

"Esse meu sonho foi premonitório e bonito. Sonhei que a filha que está dentro de mim nasceu no alto de uma serra grande. O corpo dela era todo rosado e transparente, o cabelo negro encaracolado, as mãos e os pezinhos todos muito bem feitos, com seus vinte dedinhos de guerreira, e ela já veio falando."

 

(Lara Denys, 2021, Nossa Senhora da Amazônia)

 

Rumo Novo

por Maria José Silveira

 


O mundo em seu entorno muda quando você está feliz. Reveste-se de uma misteriosa camada luminosa que ressalta cores, formas, belezas. Tudo parece certo, e bom. E você se sente mais leve, como se andasse com seu passo certo outra vez, sem peso desnecessário, sem perturbações. Parece magia, mas não é. Tem algo a ver com nosso cérebro e corpo banhando-se em endorfinas. Ou é apenas a natureza sendo simplesmente como ela é, quando está em paz.


Estou assim, hoje, segunda-feira depois da eleição do Lula para Presidente.


Não só por mim, mas pelo país que virou seu rumo para um futuro bem mais aprazível, igualitário e justo. Escapou de uma ameaça cujos miasmas faria de nós um povo que jamais desejamos ser. Escapamos. O caminho será duro, mas recompensador.


Essa noite caiu uma chuva grossa, ruidosa, limpando os ares. E quando saí, de manhã, asfalto molhado, árvores livres de poeira, pessoas caminhando tranquilas pelas ruas, prédios ostentando cores recém-lavadas, os grafites de suas empenas ainda mais bonitos, sol saindo aos poucos e reluzindo nos fios d´água que o esperavam para se despedir, percebi, mais uma vez, o quanto pode ser bonita uma cidade, obra coletiva de tanta gente, construída no caminhar do tempo.


Lembrei, então, do parágrafo final do meu romance “Aqui. Neste Lugar”, publicado recentemente pela Editora Autêntica e para o qual ainda não foi possível fazer um lançamento aí em Goiânia. (Que pena! que pena! Goiânia, mas desde a pandemia, por algum motivo que eu mesma não entendo, há dois romances meus que ainda não foram lançados aí; com sorte, devem estar na prateleira de alguma de suas livrarias, oxalá!). Lembrei-me desse parágrafo porque, de alguma forma, creio que ele passa o espírito do qual estou falando aqui, hoje.
É este:


“Na Cidade das Tendas, Denda alimenta escova e acaricia seu cavalo. Depois vai se banhar com as outras guerreiras chegadas há pouco da guerra. Sua barriga de grávida ainda não está à mostra, mas a mais velha das parteiras, a mais entendida e experiente, diz não ter dúvida de que ela terá filha mulher. Além disso, na noite em que chegaram, ela teve um sonho que agora, sentada em uma pedra da margem do ribeirão da cachoeira, conta para as icamiabas que estão mais próximas:

 
- Esse meu sonho foi premonitório e bonito. Sonhei que a filha que está dentro de mim nasceu no alto de uma serra grande. O corpo dela era todo rosado e transparente, o cabelo negro encaracolado, as mãos e os pezinhos todos muito bem feitos, com seus vinte dedinhos de guerreira, e ela já veio falando. Os animais juntaram-se em volta para alegrá-la. Todo tipo de animal de que a gente gosta: potros aves jaguatiricas macacos cobras tatu quati capivara cutia veado, todos. Até que anoiteceu e minha filha sentiu fome; meus peitos ainda não tinham leite, e ela chorou. Nesse momento um bando de beija-flores e borboletas azuis trouxeram mel de flor, e lhe deram. Imediatamente ela se calou, seu rosto todo sorriu e os animais a lamberam de alegria.”