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(Makenge Mamungwa, 2006, Congo Esperancoso)

 

"Como foi que deixamos isso acontecer?"

 

É Sábado

por Maria José Silveira

 

 

Olho pela janela e nada quero ver.

 

Já morei em uma rua em que o simples ato de abrir a janela me apresentava um cartão postal da cidade.

 

Hoje, não.

 

O cenário da minha janela mudou.

 

 

Mesmo nesse novo cenário, no entanto, o mesmo céu de São Paulo está lá, os mesmo prédios dessa minha nova rua estão lá, a mesma imensa falsa seringueira está lá com seus galhos estupendos que chegam quase até a janela do meu quarto.

 

Meus olhos também são os mesmos, mas hoje não querem ver nada disso.

 

Hoje apenas veem minha rua em sua corriqueira insignificância.

 

Até a amada falsa seringueira, hoje a vejo mais falsa do que de fato seringueira. E até acho bom que as janelas do apartamento em frente, onde mora Sebastião, meu amiguinho de três anos, que sempre acena ao me ver na minha janela e me manda um beijo com a palma aberta de sua pequena mão, hoje também estejam fechadas.
 

O que é isso? Padecimentos da pandemia? Ou mera exaustão pelas notícias que nos envolvem em indignação cotidiana?
 

Exaustão, é minha resposta.
 

Sei que na Av. Paulista, neste momento, há uma manifestação de repulsa pelo linchamento abjeto de Moïse, o jovem congolês, um daqueles muitos jovens que atendem, na praia, aos clientes de uma determinada barraca.

 

Um desses muitos jovens que fazem o mesmo trabalho em muitas praias deste país do sol. Um dos muitos congoleses que aqui chegaram, desde séculos atrás, para serem escravos, e continuam chegando agora para fugir da miséria e guerra do Congo, uma guerra que nunca termina, uma miséria que nunca termina, um país vítima de seus preciosos minerais que enriquecem apenas os larápios de sempre, e que hoje fogem para cá, acreditando que o nosso país agora os acolherá de braços abertos, nosso país de sol, nosso país de música, nosso país que dança, nosso país de muitas formas parecido com o deles.


Um país que nos últimos tempos, e muitas vezes, parece não existir mais.
 

Moïse foi apenas um desses jovens assassinados com tacos de beisebol e chutes.

 

Só neste mês, como se este mês tivesse sido designado para nos revelar, mais uma vez, a barbaridade em que estão nos enfiando, três outros jovens negros foram assassinados naquela mesma praia parasidíaca da Tijuca, hoje dominada pela milícia do Rio de Janeiro.

 

Contradição infame: um lugar de paraíso para alguns, dominado por milicianos e transformado em inferno para outros.
A manifestação da Av. Paulista agora é por todas essas mortes. Não só a do jovem Moïse, mas a de todos os negros que morrem sem saber por que estão morrendo, e cedo demais.


Como foi que deixamos tudo isso acontecer?
 

Como foi que deixamos as milícias chegarem ao Planalto Central, o próprio coração do país?
 

São essas perguntas que me tomam nesta manhã de um sábado do ano de 2022.

 

Algo está muito errado conosco. Algo que não podemos jamais aceitar com indiferença. Algo que deve estar em nossa mente ao apertar o botão da urna daqui a oito meses.