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(Djanira, 1952, Ciranda)

 

Um passado, portanto, bem resguardado na memória, bem protegido desse presente à beira de abismos.
Que passado seria esse?

 

Escapes

por Maria José Silveira

 

 


Como anda difícil escrever crônicas neste país onde tentamos viver uma vida normal enquanto o chão dá solavancos! Penso, então, que uma das poucas maneiras de escapar do cotidiano de indignação e impotência como tem sido o nosso é voltar para algum momento do passado, um passado bem distante do qual nada mais exista a não ser lembranças quando acionadas. Um passado, portanto, bem resguardado na memória, bem protegido desse presente à beira de abismos.
Que passado seria esse? A que tempo desse passado recorrer?


À infância, quem sabe. O tempo mais distante, mais protegido, mais envolto em uma bruma possível de dissipar. Um tempo que pode estar bem resguardado, é verdade, mas quando, com o olho de quem quer ver, olho as cenas infantis que me chegam em cascatas, vejo nelas também conflitos, angústias, contradições. Tive uma infância feliz e fantasiosa, não tenho dúvida disso, rodeada de irmãos, primas, primos e, pode-se dizer, com quase duas mães: uma, a verdadeira e outra, a madrinha que esbanjava em mim seu carinho, e me chamava de Rosa. Mas se é para ser sincera comigo mesmo, tenho que repassar também os momentos de medo, incertezas, inseguranças, sentimentos perturbadores, descobertas incompreendidas dessa idade. Quero falar disso, hoje? Não, não quero.
 

Vamos, então, para a adolescência, mas aí o passado piora. Fui uma adolescente ávida, inquieta, corpo e cabeça experimentando contradições e gerando conflitos intermináveis e descobertas. Adolescente rebelde. Quero falar sobre isso? Com sinceridade? Também não. Mas guardo muitas coisas boas dessa idade.

 

Chegamos à juventude, e aqui posso dizer que, de alguma forma, ela foi como deveria ser a juventude de qualquer pessoa. Descobertas e encantamentos me acompanharam. Tive batalhas duras para adquirir a liberdade que precisava respirar, e tive a UnB, o movimento estudantil, o primeiro trabalho digno desse nome (jornalista do JB), tudo quase um paraíso, fora o que não era. E o que não era paraíso? A ditadura que, por princípio, era algo contra o qual lutar, por mínimas que fossem nossas lutas, até que ela afundou suas garras no gramado do campus, levou de roldão vários estudantes, e fechou-nos as portas. Mas quero mesmo falar dessa ditadura e seu AI-5? Agora, não. Não vale sair de uma para cair em outra.


Então falo da vida de adulta? O tempo que costuma ser o de maior duração em uma vida? Deixa para lá. Crônica não é biografia. Só vou dizer, que no meio dos trabalhos, das batalhas, das responsabilidades, experiências, contradições da vida adulta, nada melhor do que a chegada dos meus dois filhos. Quando me colocaram nos braços o primeiro, nascido no Peru, olhei seu rosto perfeito de nenê, contei seus dez dedinhos e disse, “Não precisava ser tão lindo assim”. E quando a segunda, a carioca da família, veio para meu colo com uma determinação visível e rara, contei seus dez dedinhos e disse, “Como é forte, esse tesouro! Só vai me dar alegrias.”


E assim é.
Coisas lindas, coisas boas de qualquer idade são para nunca se deixar para trás.