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(JGor, Quem Sabe das Abelhas?)

 

De Abelhas e Ressignificações
por Maria José Silveira
 


À frente do meu prédio, uma colmeia de abelhas africanas começou a dar o ar de sua graça. A prefeitura foi acionada.

 

Enquanto isso, quem sai do prédio dá passos aflitivos, espreme-se contra a grade externa para obter a maior distância possível das previsíveis picadas.


Pena me dão os “entregadores de encomendas” que nada sabem do perigo ao pensar em dar um respiro sob a sombra daquela árvore medianamente frondosa.

 

Pois nem lhes conto que nosso condomínio – participante da ânsia temerária de precarizar tudo – desempregou zelador, faxineiro e três porteiros (manhã, tarde e noite), substituindo-os por uma portaria virtual (empresa que atende em seu escritório a milhares de prédios como o nosso). O resultado é que os entregadores, caso não tenham a sorte de encontrar o porteiro na portaria – seu presumido local de trabalho como o próprio nome indicaria –serão obrigados a acessar a portaria virtual que, por sua vez (comecemos a contar os minutos) deve acessar o apartamento indicado para perguntar se tal entregador está sendo esperado – não, sem antes cumprir, com irritante calma, todas as formalidades com que foram treinados: Boa tarde, com que eu falo? Dona Fulana, como vai a senhora? Aqui tudo bem, obrigada. Chegou uma entrega de tal lugar para seu marido, ele está esperando? De onde é? Ela responde com um nome ininteligível. Um momento, vou verificar. (O marido estará no banho com chuveiro ligado e custa a entender a pergunta da mulher.)

 

Minutos depois, Dona Fulana volta, Sim, mas por favor, poderia pedir para o porteiro receber a entrega? Pois não, senhora. E enquanto ela verifica a disponibilidade do porteiro, que supostamente deveria estar no seu local de trabalho, a portaria – como o nome de sua profissão indica – a colmeia das abelhas já estará, todinha, afiando os olhos em direção ao inocente entregador.

 

Minutos depois, outra chamada pelo interfone. Senhora Dona Fulana? Não conseguimos localizar o porteiro (que, sendo também zelador, faxineiro e faz-tudo do prédio, estará em qualquer lugar, menos na portaria, já que o síndico eleito em eleição virtual deliberou criar novo significado para a palavra “porteiro”, que já não será porteiro e sim faz-tudo do prédio), a senhora poderia receber? Tudo bem. Vou descer. O que na pandemia significa colocar máscara, luvas, e esperar pelo elevador raramente a postos. E se enquanto isso (quantos minutos contamos?), nosso paciente entregador por acaso pensasse em se apoiar no tronco da árvore medianamente frondosa a sua frente, o que lhe teria acontecido?


Pobres trabalhadores precarizados! Ameaçados até em seu legítimo descanso à espera em prédios onde abelhas estarão voluptuosamente atentas a seu menor gesto em falso!
 

De onde terão vindo essas abelhas? Não a espécie das africanas, erro ecológico gravíssimo de quem achou bonito mudá-las de ambiente. Mas essas da minha rua, sub-reptícias, que chegaram sem ninguém perceber e, superlativamente rápidas, construíram esse espanto funcional e antiestético que é a moradia onde a rainha, em seu trono de mel, estará olhando para os bichos-homens que passam embaixo e que se ousarem olhar para cima – ai!ai!ai!, como se arrependerão!