Ametista estava quase chegando à
Brigadeiro Luís Antonio quando viu um grupo de pesquisadores a sua
frente e se animou. Adora, simplesmente adora responder às pesquisas de
rua. Considera um dia de sorte quando encontra um grupo de
pesquisadores, fosse do que fosse.
Responde às perguntas como se o mundo tivesse parado ali pra escutar.
Nome: Ametista Salgado Benevides. Endereço: Rua Jundiaí, 305, Vila
Andrade, no Campo Limpo. Estado civil: solteira. Desempregada.
Escolaridade: segundo grau completo. Casa própria e mais duas casinhas
de aluguel (dela e das irmãs, herança do pai falecido, profissão:
ferramenteiro, mãe, doméstica, também falecida). A renda vem do aluguel
e do emprego fixo da irmã mais velha, Escarlete, e varia quando ela ou
Rubi, a irmã mais nova, estão com algum emprego, como agora, Rubi está
com um bico de vendedora de perfumes. A casa tem dois quartos, banheiro,
cozinha, copa, sala, alpendre, mas eles só querem saber do número de
banheiros. Só um. A casa é mobiliada, tem tudo de que precisam. Quatro
camas (uma que ninguém usa), dois armários para roupas, dois sofás na
sala, uma mesa de centro, mas isso também eles não perguntam. Perguntam
sobre os eletrodomésticos: uma tevê 25 polegadas tela plana (um luxo de
Escarlete), um telefone fixo, três celulares (um de cada irmã), na
cozinha tem a mesa, quatro cadeiras, geladeira, um freezer pequeno, um
fogão de quatro bocas, um forno micro-ondas. Enceradeira, aspirador de
pó, um liquidificador, uma batedeira. Carro, não, carro elas não têm.
Ametista desconfia que por isso eles são classe C ou D, classe média
baixa, mas os moços nunca respondem quando ela pergunta em que categoria
está, dizem que essa parte não é a deles, e que não podem dizer. Nem pra
ela, que sempre responde tudo com toda sinceridade e, pesquisa
terminada, tenta encompridar a conversa, saber mais. Manter a mente
aberta para aprender as aprendizagens da rua. E gosta ainda mais quando
o pesquisador é homem. Não por nada, é porque gosta mesmo, parece que
eles sabem perguntar melhor com aquele jeito deles de ter um tipo de
autoridade na voz, se concentram mais, têm mais postura. As
pesquisadoras ficam muito de tititi entre elas, dão risadinhas à toa,
parecem estar mais se divertindo do que trabalhando. E quando os
pesquisadores homens perguntam, “Srta. Ametista, em sua casa tem isso,
tem aquilo?”, ela adora. E gostaria que eles continuassem perguntando
mais coisas, por exemplo, a cor da casa (amarelinha por fora, com
janelas de esquadrias de metal), a cozinha azul, a sala amarela também,
os quartos cor-de-rosa e o banheiro verde. Ela escolheu as cores, as
irmãs gostaram. É uma casa colorida, gostaria muito de contar pra eles,
mas isso ninguém pergunta.
Também já deu duas entrevistas na rua para programas de tevê, e depois
ficou com as irmãs esperando pra se ver na tela, mas não apareceu. Não
devem ter gostado do que ela respondeu e tiraram sua parte. Mas pode ser
que tenha aparecido numa hora que elas não estavam assistindo, Rubi
disse. É, talvez, pode ser, só que nunca ninguém vai saber. Mas tudo
bem, não importa. O que importa é que ela foi útil, foi requisitada. É
um alívio grande saber que tem momentos em que ela importa para alguém.
•••
Quando
está na Avenida Paulista, muitas vezes Ametista vai até o final, a Casa
das Rosas, que acha bela. É o consolo que reserva para o dia mais
perdido do que o usual. Examina o cartaz com a programação. Nem sempre
tem coragem para entrar; fica por ali, zanzando pelo jardim, debaixo do
caramanchão de rosas que nem sempre tem rosas.
Não é a mesma coisa que nos shoppings, é outra coisa, mas, quando chega
ali, também se acha menor. Pequena. No shopping, é uma pequenez que a
humilha, que a exclui como se exclui uma casca de ferida. Na Casa das
Rosas, é uma pequenez vinda do amor. Da admiração. Aquelas pessoas tão
cultas, seguras de si. Poetas, escritores, professores. Só de poder
estar ali ao lado deles lhe parece um prêmio. Quase tudo é grátis e ela
poderia entrar sempre, mas, para ousar dar esse passo e se misturar com
essas pessoas, tem que ter coragem, e nem sempre tem. Pode contar nos
dedos as vezes em que entrou e se sentou logo na primeira cadeira que
encontrou, e lá ficou até o final. Da primeira vez, eram poetas
declamando poesias que a emocionaram muito. Gravou o nome de dois deles.
Frederico Barbosa. Um homem de voz doce, tonzinho meio quebrado no
final. O outro era Cláudio Daniel. Muito sério, parecendo bravo, mas não
deveria ser. E já tinha visto também uma poeta muita linda, e com um
nome bonito: Mariana Ianelli. Estava de botas de couro e um tipo de xale
vermelho sobre o vestido preto. Ametista poderia ficar ali para sempre
escutando aquelas vozes. Outra vez foi um cara alto, magrinho, boné na
cabeça, brinquinho na orelha, tênis, fazendo uma palestra. Luiz Bras,
ela também guardou o nome dele, e do que ele falou, uma coisa que às
vezes volta a sua cabeça.
A literatura, ele disse, deve servir para inquietar, despertar
perguntas e não respostas.
Inquietar, meu Deus? Mas se a vida já a inquieta tanto!
Será que estava lendo os livros de um jeito errado? Ou não tinha
entendido o que o escritor disse? Se os livros não dão respostas, quem
vai dar? Quer dizer, como saber? Quer dizer, talvez não seja mesmo uma
resposta que o livro dá, e, sim, uma passagem para outra coisa, um lugar
diferente. Será que é isso que ele estava dizendo que era a inquietação
que o livro serve para dar? Essa vontade de ir para outro lugar?
Se Rubi estivesse junto, teria entendido direito.
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