O Dr.
Waldo despediu-se dela:
-- Não precisa se assustar. Você está nas melhores mãos nas quais
poderia estar.
Sentou-se num banco de pedra, na antessala, tentando ignorar a cena que
a janela mostrava, mas ouvia os gritos de dor, de pavor, as risadas
histéricas...
Finalmente a porta do consultório se abriu e uma enfermeira muito gorda
a pegou pelo braço: -- Vamos entrar.
-- Posso caminhar sozinha – protestou Susana – diante da brutalidade que
sentiu no gesto da enfermeira.
-- Mocinha, aqui ninguém pode nada, a não ser o que eu quiser que possa.
Susana imaginava que conversaria com o médico. Mas este mal levantou a
cabeça ao perguntar: -- A senhora é a moça sem memória, indicação do Dr.
Waldo, do Marianitas?
-- Sim – respondeu Susana.O médico ergueu a cabeça e em vez de olhar
para ela, olhou para a enfermeira:
-- Muito bem, Maria, você sabe o que fazer.
Susana foi levada a um aposento muito úmido, com as paredes mofadas e
teve suas roupas praticamente arrancadas pela enfermeira. Queria gritar.
Queria esmurrar a enfermeira, mas sabia que isso seria pior para ela. Se
reagisse, seria realmente tratada como louca e teria o mesmo destino
daquelas infelizes jogadas no pátio, sujas, descabeladas, algumas até
feridas, as moscas pousando nas chagas. A enfermeira a prendeu contra a
parede, pelos pulsos e pelos tornozelos, com cintas feitas de couro que
deixavam algum espaço para que ela se movesse. Foi então que viu as
grossas mangueiras penduradas na parede oposta. A enfermeira chamou
alguém pelo vão da porta: -- Pode vir, a franga já está no espeto!
Um homem entrou e ficou observando, encostado à porta que a enfermeira
fechara. Então Susana viu, com terror, que a enfermeira tirava do
suporte uma daquelas mangueiras e, de repente, Susana sentiu uma dor
descomunal na altura do peito, o feroz e grosso jato d’água a empurrava
contra a parede e ela escorregou. Aí já não podia mais dizer qual parte
do corpo doía. Tentou se levantar do chão, mas a enfermeira dirigia o
jato para as suas pernas e ia subindo. A água entrava por todos os
orifícios do seu corpo, pela vagina, pelo ânus, pelos ouvidos, pela boca
e até pelos olhos. No meio do martírio conseguiu ver que o homem,
encostado à porta, claramente se masturbava. Tinha prazer no sofrimento
dela! Depois de uma eternidade, sentiu que a erguiam. Percebeu que tinha
urinado e evacuado, a sujeira escorrendo por um ralo horizontal, no chão
junto à parede imunda. A enfermeira a empurrou, dizendo:
-- Já tomou o banho, agora vamos para os drinks.
Chorando, Susana foi obrigada a engolir diversas beberagens amargas e
algumas pílulas. Logo, começou a sentir tonturas e sonolência. Vestiram
nela um daqueles uniformes, iguais aos das moças do pátio e ela não
viu mais nada.
Acordou no pátio, junto às loucas. Todo o seu corpo doía, como se
tivessem lhe triturado os ossos. Os lábios estavam feridos e ela pensou:
Não. Isso não pode ser verdade. Eu devo estar sonhando..., Mas sabia que
não estava. Preciso manter a calma. Se eu surtar, nunca conseguirei sair
daqui. Não vão me abandonar aqui. O Dr. Waldo certamente virá me visitar
e eu direi a ele..., Mas se não vier? Bem, George deve estar me
procurando... E se não estiver? E se Evelyn tivesse dito que ela
simplesmente se esvanecera no ar, voltando pro seu próprio tempo? E as
freiras, tão gentis e simpáticas, como podiam permitir que a torturassem
assim?
Estava pensando em tudo isso, quase entrando em desespero, quando ouviu
a voz de George, aos gritos, exigindo que o levassem “até sua irmã” ...
Susana quase riu, teria rido, se não estivesse tão destruída. O diabo do
homem sabia que só mesmo dizendo que ela era da família é que
conseguiria tirá-la dali. E isso porque ele era rico e poderoso. Se não
fosse, certamente nem dizendo isso conseguiria.
Mais uma eternidade, em alguns minutos, se passou até que ele viesse até
ela, a abraçasse, erguesse e dissesse: -- Vamos embora daqui...
-- O senhor não pode levá-la dessa maneira – tentou esbravejar a
enfermeira gorda quando viu Susana, amparada pelos braços de George,
entrar na antessala do consultório do Dr. Francisco.
George respondeu:
-- Posso e vou, imediatamente. E vocês se deem por felizes por eu não ir
aos jornais denunciar esses maus tratos sofridos por minha pobre
irmãzinha...
-- Nós estamos trabalhando – disse a enfermeira com arrogância – com as
mais modernas técnicas de cura psiquiátrica, técnicas que visam, através
do tratamento químico, quanto físico, trazer de volta a preciosa memória
da sua irmã.
Mas George já saía pela porta e, auxiliado pelo chofer, Otto, acomodava
Susana no banco de trás do Ford, quase deitada e tendo o caríssimo
paletó de George por travesseiro. Ele sentou-se no banco da frente e
ordenou: -- Vamos para casa!
Sentado de lado no banco da frente, esticou o braço e segurava a mão de
Susana. Ela desandou a chorar e chorou por quase uma hora. Mas, quando
percebeu que já estavam saindo novamente da cidade, rumo ao sul, disse
com voz fraca:
-- O celular... ficou lá... no hospital das Marianitas. Eu o escondi num
fundo falso que fiz na gaveta da escrivaninha onde trabalhava.
O chofer fez meia volta, à mando de George. O sol já se punha quando o
carro entrou pelos portões do hospital, na Avenida Paulista. George
passou pela grande entrada da instituição com fúria, derrubando com um
empurrão um porteiro que tentou detê-lo. Abriu com violência a porta do
escritório central, onde uma freira, que escrevia, ergueu-se assustada:
-- O que é isso? Quem é o senhor?
-- Qual é a mesa de Susana? – perguntou ele.
-- Mas... o que significa isso? – perguntou a freira, assustada.
-- Qual é a mesa de Susana? – voltou a perguntar, dessa vez com um
grito.
A freira apontou para uma escrivaninha que, por sorte, tinha uma única
gaveta. George arrancou o fundo falso, pegou o estojo de couro onde
estava o celular e seu carregador e saiu, não sem antes dizer:
-- Boa noite, madre!
A noite já ia alta quando o Ford dos Meyer chegou ao Castelo. Susana,
tentando se recompor, já se sentara no banco do carro, os olhos agora
secos. Sabia que demoraria a esquecer aquela horrível experiência
traumática. Sentia muita pena das mulheres que vira no Juqueri e pensou,
que em 2019, apesar do movimento antimanicomial, na sua opinião, ser de
um radicalismo estúpido e sem fundamento científico, as pessoas com
doença mental recebiam um tratamento muito mais humanizado e eficiente,
em muitos casos. George ajudou-a a descer do carro e viu, horrorizado,
os hematomas que a água deixara no corpo dela:
-- O que é isso, Susana? Essas manchas roxas? Você foi espancada?
-- Não. Pior que isso, eu acho. Foram poderosos jatos d’água que me
empurravam contra uma parede.
-- Meu Deus! – fez George, horrorizado.
-- As marcas nos lábios – apressou-se ela em explicar – provavelmente
são resultado das beberagens que me fizeram engolir.
A governanta veio correndo em direção ao casal e ajudou Susana a subir
as escadas, dizendo solícita: -- Vou mandar ao seu quarto,
imediatamente, uma boa sopa e uma refeição mais leve.
Susana disse, para o escândalo da governanta:
-- E, por gentileza, se for possível, uma dose dupla de uísque sem gelo.
George riu:
-- Uma para mim também.
Susana tomou um longo banho de banheira, ajudada por uma das criadas,
vestiu seu traje de dormir e foi encontrar George, que não arredara o pé
do quarto, esperando por ela.
Brindaram com o uísque e ele perguntou:
-- Ainda dói?
-- Não – respondeu ela – só na alma.
-- Mas por que você foi embora, sem nem ao menos esperar que eu voltasse
para se despedir?
Susana ia dizendo: “Evelyn me expulsou” – mas percebeu que, se dissesse,
criaria um abismo entre George e a irmã e entre Evelyn e ela própria.
-- Percebi que sua irmã não acreditara na minha história e decidi
partir. Disse ao chofer do táxi que não tinha dinheiro, que perdera a
memória e que não sabia para onde ir. Ele me levou para as freiras, que
me acolheram e tentaram encontrar a minha família que, evidentemente,
não existe nesse tempo. Enquanto isso, em retribuição à moradia,
refeições e trajes que elas me deram, eu me voluntariei para trabalhar e
elas me puseram no escritório. Tinham até estabelecido um ordenado – e
aqui ela riu --, que no meu tempo seria “salário” – para que eu pudesse
me manter com dignidade até a suposta volta da minha memória.
-- E, como, afinal te mandaram para o Juqueri, meu amor? – e então um
pensamento horrível passou-lhe pela cabeça: -- Você não contou a elas
que veio do futuro, contou?
Susana riu:
-- Seria motivo suficiente para me trancarem lá para sempre – Não foi
isso. Quando perceberam que não conseguiam mesmo encontrar a minha
família, o Dr. Waldo sugeriu um tratamento para me fazer recuperar a
memória. E o tal “tratamento” deles passa por torturas aquáticas e
químicas...
-- Meu Deus! – exclamou George – Parece que loucos são esse médicos e
não os seus pacientes.
Susana pensou no sadismo do enfermeiro que se masturbava enquanto ela,
nua, era torturada pelos estúpidos jatos d’água. Não disse nada. Sabia
que se dissesse, George era capaz de ir lá e matar o sujeito.
-- E como foi que você me encontrou, afinal? – perguntou ela.
-- Contratei um detetive que descobriu que você estava lá no hospital
das freiras de Santa Marianita. Mas, hoje de manhã, quando cheguei lá,
você já não estava. Fôra levada pelo médico para o Juqueri na tarde
anterior.
-- Como? Isso significa que passei a noite de ontem lá?
-- Sim – respondeu ele.
-- Só me lembro do horror da tortura aquática e, de, em seguida, acordar
no pátio.
-- É melhor não lembrar mais nada – disse ele. Amanhã mando o chofer
buscar sua bolsa e seu vestido que estão lá nas freiras e tentaremos
esquecer todo esse pesadelo.
Capítulo 9 – De Volta ao Castelo
George acordou antes de Susana. Ela dormia profundamente e ele deu-lhe
um beijo no rosto, chamou uma das criadas para ficar ali, ao lado da
cama dela e desceu para o café. Os exportadores de algodão que se
danassem. Ele não deixaria Susana sozinha naquele dia, depois de tanto
sofrimento que ela experimentara.
Estava terminando o café quando Evelyn entrou na sala, as malas sendo
carregadas por Otto e pelo chofer de táxi, aquele mesmo.
-- Salve, minha amada irmã! – saudou-a George – Você saiu da praia de
madrugada para estar aqui a essa hora?
-- Não. Saí ontem à tarde e dormi na cidade, fui jantar em casa de
Úrsula.
George disse:
-- Posso lhe perguntar que fim, afinal, levou a nossa amiga Susana?
-- Ah... Ela desapareceu. Deve ter voltado para o lugar de onde veio. –
respondeu Evelyn, sentando-se à mesa.
-- Bem, eu sinto decepcioná-la, minha irmã. Mas ela não desapareceu.
Saiu daqui porque você não acreditava nela, foi se abrigar com as irmãs
Marianitas naquele novo hospital da Avenida Paulista, passou lá mais de
uma semana e foi internada, pelo benemérito fundador do hospital, Dr.
Waldo Song, no Asilo de Alienados do Juqueri. Por sorte, e também por
esforço, consegui tirá-la de lá, ontem. Ela está dormindo em seu quarto
agora.
-- Você ainda acredita nela, não é mesmo? – perguntou Evelyn.
-- Claro que acredito, minha irmã. Ela está dizendo a verdade. Confesso
que seria difícil de acreditar se ela não tivesse esse vestido de
estranho tecido e seu telefone celular.
-- Talvez se eu pudesse ver funcionando esse tal desse celular...
-- Você poderá – disse Susana, que descia as escadas em direção à mesa
do café. – Eu lhe peço perdão, Evelyn, por ter tido que mentir. Mas você
não acreditaria se eu contasse a verdade.
-- Mas contou a ele! – respondeu Evelyn irritada – Por que não a mim,
então? Quem me garante que você não inventou isso para conquistar o meu
irmão?
-- Aqui está o meu aparelho celular – disse Susana – tirando o celular
do bolso—Você pode ver que ele está apagado, está sem energia. Mas
George me disse que vocês têm um gerador elétrico na casa. Levem-me até
ele. Se eu puder tirar energia dele, se ele tiver um fio, com dois polos,
positivo e negativo, eu amarrarei a ponta descascada desses fios a esses
dois terminais da tomada do carregador e meu celular voltará a
funcionar. Eu poderei então mostrar a você o que George já viu.
O gerador estava no porão da casa. Subterrânea também era a adega, com
um elegante bar de paredes de lambri, onde Susana ainda não estivera, em
1910, mas onde seus pais haviam dado uma festa de aniversário em 1993.
Entraram na sala do gerador por essa adega. O chofer, que entendia um
pouco da coisa, conseguiu dois terminais de energia, um polo positivo e
outro negativo. Estava curioso para saber o que os patrões estavam
querendo com aquilo, mas George simplesmente disse:
-- É o bastante, Otto – Obrigado e pode se retirar.
Assim que foi estabelecida a corrente elétrica para o carregador, o
celular acendeu com o desenhinho da bateria sendo carregada. Evelyn deu
um grito de espanto. Alguns minutos depois, entrou a tela inicial e
Susana foi direto para as fotos. Lá estava o selfie noturno dela com
George, na grama coalhada de vagalumes. Evelyn olhava estarrecida. Viu
as imagens de uma cidade futurística, coisa que ela jamais sonhara...
Por fim, percebeu que aquilo tudo não poderia simplesmente ser um
truque... Afastou-se e desabou num dos grandes bancos de madeira do bar
da adega. George e Susana sentaram-se, quietos, ao lado dela.
Por um momento, que pareceu muito mais do que apenas um momento, havia
apenas o silêncio. Por fim, Evelyn deu um profundo suspiro e disse:
-- Minha cara, se essa pequena máquina for um truque é o truque mais
impressionante que já vi em toda a minha vida. Mais impressionante ainda
que as façanhas do Mestre Houdini.
-- Então, agora você acredita em mim? – perguntou Susana.
-- Não sei – respondeu Evelyn – Ainda pode ser um truque, um filme aí
dentro dessa caixinha e você pode ser qualquer uma, uma mulher do povo,
uma criada, uma operária, que inventou essa história porque soube que
meu irmão estava escrevendo sobre 2019...
-- Evelyn, -- disse Susana -- nós estamos em 1910. Não existem filmes
pequenos o suficiente para caberem num celular. O cinema ainda nem tem
som e você viu que todos os vídeos do meu celular têm som... Olhe, para
ser sincera, nem eu mesma estava acreditando quando cheguei aqui. Pensei
que também estivesse sendo vítima de uma brincadeira de mau gosto, que
estivesse em um cenário... – aqui interrompeu-se, ia dizendo “cenário
virtual”, mas, se dissesse, teria que se explicar ainda mais do que já
fizera. Continuou: -- Vítima de uma ilusão, enfim. Eu estava aqui mesmo,
em 6 de janeiro de 2019, no Castelo, que, no meu tempo é um clube. Não
vinha aqui desde 1999 e fiquei assustada com as mudanças. Estava
pensando nisso quando uma nuvem me envolveu e eu vim parar aqui, no
tempo de vocês. Não sei como isso foi possível.
-- Realmente – disse Evelyn – eu também não sei e confesso que essa sua
máquina me impressionou bastante, mas não sei se estou plenamente
convencida. Para mim, é muito mais provável que tudo isso seja um
engodo...
-- Se você ainda não acredita em mim, é melhor que eu me vá, então.--
respondeu Susana, desanimada.
-- Vá para onde? – perguntou Evelyn, com certo sarcasmo – De volta para
de onde veio?
-- Não sei se posso voltar ao meu tempo – respondeu Susana – Mas me
reconheço capaz de viver em qualquer tempo. Sou forte, formada, posso
trabalhar e me sustentar, posso dar aulas, qualquer coisa...
-- Nem pense nisso! – exclamou George – Não quero que você se vá, nem
para o seu tempo, nem para longe dessa casa. Seu lugar é aqui. Case-se
comigo e passará a ter o inquestionável direito de viver no Castelo.
-- Casar-se com ela? – perguntou Evelyn – Como? Ela não passa de uma
Maria Ninguém, sem família, sem nome. Nossos pais jamais aprovariam esse
casamento!
-- Evelyn, meu nome é Susana de Vasconcellos Expedito Gaetano, mas
alguns dos meus antepassados levam o nome de família de Carmen Fomm de
Vasconcellos, a escritora que sua amiga Úrsula e também sua própria
modista, disseram que se parece demais comigo, é minha bisavó. Ela se
casará com João Antonio Expedito, mas todos os seus descendentes farão
questão de carregar seu sobrenome de solteira, porque ela ainda será uma
figura importante no mundo literário. Corre, inclusive, na família, a
lenda de que, antes de se casar, Carmen teria tido um tórrido amor, um
amante que morreu muito jovem, antes de eles poderem se casar, e que o
meu bisavô, filho dela, teria sido filho desse amante e não do Expedito.
É uma lenda romântica, mas é uma lenda. Ah! Espere!! Eu tenho aqui, em
alguma pasta, no celular, uma fotografia dela, em 1915 e também uma
fotografia tirada quando eu me vesti e me penteei exatamente como ela...
Veja, aqui está!
Evelyn fitou longamente as duas fotografias que Susana colocara numa
única tela, em seu celular. Mais um momento interminável se passou.
Outro profundo suspiro e Evelyn disse:
-- Sim. São extremamente parecidas, mas são sem dúvida, duas mulheres
diferentes. Há pequenas diferenças, inclusive no porte, no
olhar...Digamos que seja verdade – começou Evelyn a capitular -- e
digamos que vocês dois estejam mesmo vivendo um amor de verdade, que
queiram se casar e formar sua família, o que diríamos aos nossos pais?
Como explicar a sua presença aqui, de onde você teria vindo, onde
estariam os seus parentes? Em que escola você teria estudado? Qual seria
a sua origem, a sua formação, a sua posição na nossa sociedade?
George disse impulsivamente:
-- Contaremos a verdade e está acabado.
-- Nossos pais diriam que enlouquecemos. Jamais acreditariam. Além
disso, seria inevitável – continuou Evelyn – que, convivendo em nosso
meio, Susana acabasse encontrando-se com Carmen e como explicaríamos tal
semelhança física? Não, isso não é possível.
George, convencido de que Evelyn recuperara a confiança em Susana, foi,
afinal para a fábrica. As duas mulheres passaram toda a manhã caminhando
por entre as árvores, no bosque do Castelo, almoçaram juntas e Evelyn,
ao ouvir Susana falar sobre o futuro, foi se convencendo de que tudo
era, de fato, verdade. Uma verdade sem explicação. Mas que explicação
tem a vida, afinal? – perguntava-se ela. No fim da tarde, estavam
subindo a alameda das árvores, quando viram que George chegava.
-- Veio mais cedo para casa, meu irmão? – perguntou Evelyn – Como foi
hoje a sua reunião com os exportadores?
-- Excelente! – respondeu ele, animado, dando um beijo no rosto de cada
uma delas – Vamos certamente conseguir fazer grandes novos negócios!
Papai vai adorar a notícia, quando chegar.
Nesse instante uma névoa baixou sobre eles e, quando se dissipou, George
se viu sozinho, na alameda das árvores. A governanta aproximou-se dele:
-- Senhor, sua irmã o espera na sala de vidros para o chá. Ela quer que
se junte às senhoritas que lá estão, senhoritas Úrsula e Carmen.
George, completamente desorientado, sem compreender ainda o que se
passara, mas sabendo que a névoa levara sua amada de volta ao seu
próprio tempo, recompôs-se do susto e dirigiu-se à sala de vidro onde as
moças tagarelavam alegremente. Antes, porém, bateu os olhos num jornal
que Evelyn deixara aberto sobre o sofá da sala: domingo, 9 de janeiro de
1910... Ele estava de volta a duas semanas antes, ao dia em que Susana
viera para ele. À mesa estavam Úrsula, Evelyn e Carmen... Carmen, a
versão 1910 da sua amada Susana. Quando seus olhos se encontraram, ele
soube que Carmen e Susana eram a mesma pessoa, a mesma alma e que,
independentemente do tempo e do espaço, aquela mulher era, fôra e sempre
seria, o amor das vidas dele.
Então Evelyn disse:
-- Essa noite eu tive um sonho completamente estranho com uma mulher que
veio do futuro...
....
Quando a névoa se dissipou, Susana percebeu que estava na alameda das
árvores do Castelo, sim, mas que era de novo aquela alameda de mirradas
árvores. Voltei – pensou – estou de novo em 2019... Estou exatamente
onde estava antes de partir para 1910.
-- Que dia é hoje? – perguntou ela com ar casual a uma mulher que
passava pela alameda.
-- 6 de janeiro de 2019 – foi a resposta.
Meu Deus... Tudo terá sido um sonho? Uma ilusão? Levou à mão à testa e
percebeu que estava vestindo, sobre o seu vestido godê de flores,
fabricado em 2019, o blazer de albene que Evelyn mandara fazer
especialmente para ela em 1910. Sentiu que alguém lhe tocava de leve no
braço. Quando se voltou lá estava ele, George! Os mesmos olhos azuis, a
mesma barba negra, mas em trajes de 2019, jeans, camisa polo, jaqueta.
-- Você está se sentindo bem? – perguntou ele – Tive a impressão de que
teve uma espécie de vertigem.
-- Sim, estou bem – respondeu ela – Mas você me parece estranhamente
familiar. Seu nome por acaso é George? Eu o conheço daqui do clube ou de
algum outro lugar?
Ele deu uma risada alegre:
-- Pouco provável. É a primeira vez que estou vindo aqui. George – disse
ele tirando do bolso da jaqueta um pequeno livro de bolso, impresso em
papel pardo, claramente tipográfico – foi esse meu antepassado, autor
desse livrinho. Eu sou Leo, Leopoldo Alfredo, na verdade, nome do meu
avô paterno. George, no entanto, era esse meu bisavô, cujo livro, de
autoria dele, encontrei ontem na biblioteca de meu recém-falecido pai...
-- Oh, meus sentimentos... –disse Susana, estendendo a mão para o
pequeno volume, mas já querendo arrancá-lo das mãos dele.
Ele continuou:
-- É engraçado... Agora percebo que você se parece muito com a mulher
que ilustra a capa do livro. Veja, é um desenho, parece-se com você.
Susana viu-se retratada na capa do volume: “Quando o Homem Desequilibrou
a Terra” por George Meyer....
--- Eu sempre soube... – continuou ele -- como é mesmo seu nome?
-- Susana.
-- Então, eu sempre soube, Susana, que esse Castelo, à beira da represa
do Guarabitinga, fôra construído por um dos meus antepassados. Mas nunca
me interessei muito por isso, até encontrar esse livro, escrito pelo meu
bisavô. Nunca também tinha visto ou ouvido falar em nenhum exemplar
dele, teve uma tiragem de apenas 500 cópias, como indicado aqui nessa
última página. Impressionante como esse meu avô anteviu o futuro. Na
primeira década do século passado, ele descreveu nesse livro os efeitos
do nosso atual Aquecimento Global. Quando eu li o livro soube então que
esse meu antepassado o escrevera aqui, na torre do Castelo. Assim,
resolvi vir conhecer o clube...
-- Posso ver o livro? – perguntou Susana tentando reprimir a emoção.
-- Claro – disse ele estendendo-lhe o exemplar. —É muita coincidência
encontrar aqui no Castelo uma moça tão parecida com essa da capa.
Susana abriu o exemplar e leu a dedicatória: “Para Susana, o amor dos
meus sonhos e para Carmen, grande amor da minha vida.”
-- Percebo que você se emocionou ao se ver retratada nesse livro tão
antigo... – disse Leo.
-- Sim – respondeu ela – é bastante emocionante, talvez seja uma
antepassada minha...
-- Você é sócia do clube? – perguntou ele.
-- Sou.
-- Se não tiver nada melhor para fazer, poderia me ciceronear por aí e
me mostrar tudo?
-- Claro, terei muito prazer. Eu amo esse lugar e, há pouco, estava
apenas lamentando que as árvores dessa alameda não sejam mais as mesmas
árvores da minha infância, velhos e grossos troncos que talvez
estivessem aqui desde o tempo do seu avô...
Saíram caminhando e, mais adiante, Susana tropeçou. Leo a amparou e suas
mãos e seus olhos se encontraram. Daí em diante, caminharam de mãos
dadas.
COMPRE
o livro e saiba tudo... |