Voltar para a página inicial ou página-site de contos e artigos da escritora Isabel Fomm ou subpágina do Livro Todas as Mulheres São Bruxas
Todos os Bruxos por Isabel Fomm de Vasconcellos |
|
clique nas imagens
|
|
Existe uma noite, aqui na Terra,
em que aqueles que morreram
voltam para visitar os que aqui ficaram e, com eles, têm laços de afeto
e amor.
É a Noite dos Mortos, conhecida e celebrada pelos Druidas e Magas
Celtas, durante séculos antes da era cristã. |
Meu Encontro com Wanda |
|
No Dia das Bruxas, quando se abriu aquela porta que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos, embora eu não tivesse providenciado nenhuma abóbora iluminada, saí a caminhar pela beira da praia ao entardecer e, de repente, na praia já bem deserta, uma figura muito esbelta que vinha em sentido contrário, chamou a minha atenção. Era uma mulher longilínea, usava um vestido fora de moda e um elegante blazer de albene, certamente colocado às pressas para protegê-la do friozinho de fim de tarde. Quando nos cruzamos ela sorriu e eu a achei incrivelmente familiar. Parecia ter saído de um velho álbum de fotos. Demos apenas alguns passos e ela me chamou: - Seu nome não é Isabel? Eu me voltei. - Sim, eu sou Isabel. Ela riu, meio tímida, levando a mão direita aos lábios. Então a reconheci. Era a minha mãe, Wanda, aos 18, talvez 20 anos de idade. - Você é Wanda? – perguntei. - Como sabe? – respondeu ela se aproximando. - E como você sabia que eu era Isabel? - Não tenho certeza, foi um palpite. Sabe, um dia, terei uma filha e darei a ela o nome de Isabel, em homenagem à Princesa, a Redentora, que acabou com a escravidão no Brasil. Isso porque minha filha vai nascer em 13 de maio. - Você parece muito segura do seu futuro, Wanda. - Ah, -- riu ela, tirando um cisco imaginário da saia godê de seu vestido, -- isso é porque eu já vivi essa história e parece que estou pronta a vivê-la de novo...Não sei explicar muito bem. Lá adiante, sob os coqueiros, havia um quiosque. Propus: - Vamos nos sentar numa daquelas mesas e conversar um pouco? Isto é, se você não se importar de ser vista conversando com uma mulher tão mais velha como eu... - Imagine, Isabel, você é uma simpatia e nem parece velha... - Bom, eu tenho um bom cirurgião plástico, mas nem ele consegue fazer milagres quando se está a um passo dos sessenta... Ela riu: - Você é vaidosa! - Muito. - Ah, você pode ser mais velha, mas tem um corpo muito bom, muito sensual. E olhe para mim: meus primos costumam me chamar de Chico Esqueleto de tão magra que sou. - Mas você, magra assim, é o sonho de todas as mulheres de hoje. Ela pareceu desconcertada. - Hoje? Que dia é hoje? - 31 de outubro de 2010. Desta vez, o que li no rosto dela foi alívio e logo veio uma gargalhada, daquelas bem sinceras, que eu passei a vida admirando nela. - Ah, bem que eu sabia que estava sonhando. Bem bonito esse sonho com o futuro. Porque todo mundo sabe que hoje é 11 de agosto de 1933... - E você deve estar preparando o seu enxoval... – interrompi eu. - Ué, você é alguma adivinha? - Você vai se casar com o Alfredo em dezembro. É uma vitória, não? Vocês lutaram contra o mundo para ficar juntos. - Ainda bem que isso é mesmo um sonho. Você sabe até o nome dele. - Sei muita coisa sobre você. - Mas olhe – disse ela então com aquela praticidade que sempre a caracterizou—se você tem quase 60 anos em 2010, então no meu tempo você está longe de nascer... - Nasci dia 13 de maio de 1951. Ela deu um pulinho, um sobressalto, como num soluço. Nós estávamos sentadas, então, nas mesas do quiosque e a noite estrelada descia rapidamente sobre nós. - Você é a minha filha. - Sim, eu sou Isabel Almeida Fomm de Vasconcellos Caetano, sua filha caçula, nascida 15 anos depois do seu filho mais novo. O mais velho é o Alfredinho, nascido em 1934 e o mais novo é o Alvan, de 1936. - Eles morreram antes de mim, não é? - Sim. - Eu sabia. Ainda ontem eu disse à Jeannette, minha irmã, que sabia que morreria depois dos meus filhos... oh... me desculpe. - Depois dos seus filhos, não da sua filha... - Eu já morri, não é? Não poderia estar viva em 2010... eu teria 98 anos... ah, mas melhor não saber. E você, filha? Como tem sido a sua vida? Você é feliz? - Sim, mãezinha, sou feliz, mas trago no peito uma dor aguda, a mesma que me fez enfartar... - Por que, minha filha? Que dor é essa? - É a dor de imaginar que não fiz tudo o que podia por você. - Ah... Mas você fez sim. Você fez até mais do que podia. - Como você sabe, mãe? Para você eu ainda nem existo. - Não sei como eu sei, mas sei e pronto. Eu ri. - “...E pronto”. Você vivia dizendo isso. Estava sempre ocupada com seu trabalho e eu, acostumada com o excesso de mimos do meu pai, vivia pedindo beijos pra você e você me beijava e dizia: “pronto.” Como quem acaba de cumprir uma obrigação... – e eu ri: -- agora eu acho engraçado mas me lembro que ficava muito puta da vida... -- E hoje? Você tem quem te mime? -- Ah, claro, o Caetano vive me mimando, o meu marido. Então ela aproximou a mão do meu peito e fez um gesto parecido com aquela brincadeira da minha infância, em que os adultos fingiam arrancar o nariz das crianças e, ato contínuo, ergueu o braço com a mão fechada e fingiu jogar alguma coisa ao vento. - Pronto – disse ela. Joguei fora a sua dor no peito. - Simples assim? E as tuas dores, as dores que eu te causei? - Não me lembro de nenhuma. Você se lembra de alguma dor que eu te causei? Tive que sorrir: - Imagine, se houve alguma eu já a esqueci. - É isso – disse ela, com firmeza, e já se levantando. - Onde você vai? - Não sei, mas tenho que ir. Meu tempo nesse tempo está esgotado. Fiz um gesto para me levantar também. - Não. Fique aí, Bel – disse ela, usando o meu apelido. – Peça uma cerveja e curta um pouco as estrelas. Eu vou indo em direção ao mar. E o mar me levará às estrelas, essas mesmas que você estará fitando. - Adeus mãezinha – disse eu com lágrimas nos olhos e querendo abraçá-la mas já sabendo que isso seria impossível.-- Você é linda, maravilhosa e chique com esse vestido esvoaçante e esse chiquésimo casaco de albene. - Acha mesmo? – perguntou ela toda coquete. – Fui eu mesma quem fiz. - É claro – disse eu, lembrando do sucesso dela como modista das ricaças paulistanas nos anos 1950 e 60. Então ela se voltou e saiu caminhando em direção ao mar. Foi sumindo, se esmaecendo de leve, e eu pensei ter vislumbrado o vulto de um homem ao lado dela. Pedi uma cerveja à garçonete. A noite estava muito estrelada. Isabel, 31 de outubro de 2010.
(ps: eu não me lembrava. Mas a foto que escolhi para ilustrar esse texto foi tirada no dia 13 de maio de 1934 e minha mãe estava grávida do Alfredinho, que nasceria em 24 de setembro do mesmo ano...) |
Graça Teixeira Bjs linda, adorooooo suas dicas no quadro do Mister Volpi, vou fazer, e te falo,
o que você ensinou, obrigada, que coração iluminado, bjs😘😘😘