voltar para a pagina de contos da Isabel ou voltar para a página inicial do Portal  ou para a página-site do livro de Natal

(Boticello, século XV)

 

Natal Sem Lar
Conto de Natal de

Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano.
 


Aí estava então mais um Natal. Em todo o Universo, nas terras cristãs em inúmeros planetas, Jesus, o filho de Deus, nascera entre os povos habitantes na mesma época, respeitados, é claro, os diferentes calendários e outras circunstâncias de cada planeta. Isso acontecera havia aproximadamente 2023 anos, posta a medida do tempo, aqui, pelo Planeta Terra.

-- Sabe – disse Deus a Pedro – faz muito tempo que não visito a Terra no Natal. Da última vez – e deu uma boa gargalhada, continuando: -- Da última vez foi uma humilde trabalhadora, uma ascensorista de uma grande torre da cidade de São Paulo, no Brasil, quem conseguiu evitar que eu tivesse aquele encontro, que pretendia ter, com o chato do Lúcifer. Com sua bondade, aquela moça conseguira me passar a energia necessária para que, afinal, muito tardiamente, chegassem à Terra os anjos e os espíritos de Natal e da Solidariedade. Aquilo foi no dia 12...Imagine. Pedro, apenas 13 dias antes do Natal. Você sabe que os anjos chegam primeiro, quase um mês antes!

Pedro, pensativamente fitando as próprias unhas bem manicuradas, respondeu:
-- Chefe, achei que nesse ano você iria pro Terceiro Planeta das Três Estrelas de Capela!

 

-- Sim—respondeu Deus – essa era a minha primeira intenção. Mas creio que a Terra esteja precisando mais de mim, agora, do que quaisquer dos planetas desse nosso Universo.

-- Muita guerra por lá – disse Pedro—aliás, como sempre. Mas parece que agora a barra está mais pesada! E o Chefe vai especificamente pra onde? Pra Faixa de Gaza? Talvez Jerusalém?

-- Não – respondeu Deus – vou de novo pro Brasil. Vou pra Maceió, no estado das Alagoas, ver se consigo levar algum conforto às famílias que tiveram que deixar suas casas pela ganância de uma mineradora que foi acabando com o solo local, durante 50 anos, minerando irresponsavelmente o subsolo. É verdade que o último presidente do país, você sabe, aquele lá, relaxou na fiscalização desse tipo de atividade... e os caras abusaram! Imagine, Pedro, essas famílias tendo que abandonar seus lares, seu entorno, a realidade a que estavam habituadas, tudo por uma atitude inconsequente de uma mineradora e das autoridades que permitiram isso! No Brasil já aconteceram outros desastres ambientais recentemente por causa de mineradoras e de autoridades que fecharam os olhos para as eventuais consequências de suas atitudes, e, pior, com a conivência de quem deveria vigia-las. Você deve estar lembrado da destruição de Mariana, em Minas Gerais e, mais tarde, de Brumadinho, no mesmo estado, em que pessoas foram enterradas vivas pelos dejetos de uma barragem de mineração que simplesmente estourou! Não, Pedro, não foi pra isso que eu criei os seres humanos que habitam esse lindo terceiro planeta do sistema solar! Coloquei lá a mais linda natureza, o mais delicado equilíbrio ecológico e alguns dos mais inteligentes dos meus filhos! E veja o que eles estão fazendo agora! Destruindo a natureza, causando esse inacreditável desequilíbrio, em nome apenas do lucro, do dinheiro, que está nas mãos de muito poucos. Enquanto alguns usufruem de todo o conforto e benesses que a tal da tecnologia deles criou, a maioria passa fome, muitos países em guerra, destruição, genocídio mesmo! A Terra é o planeta que mais precisa de mim agora! E vou pro Brasil não apenas por causa do desastre ambiental nas Alagoas, mas também por causa das mulheres. Com o poder, de 2018 a 2022, nas mãos cegas da direita política, anos e anos de conquistas sociais do povo brasileiro sofreram sério retrocesso. Aqueles que estavam quietos, fingindo-se de politicamente corretos (uma besteira inventada pela esquerda que se esquece não ser possível eliminar preconceitos por “decreto”, a única coisa que livra os humanos da intolerância e da discriminação, você sabe, é estudo, cultura, arte... ) esses supostos politicamente corretos, saíram de suas tocas, soltaram a franga e aumentou grandemente a violência contra mulheres, homoafetivos, povos originários e até contra os simplesmente pobres! Se o candidato a ditadorzinho que foi presidente do Brasil causou tamanho estrago em apenas 4 anos, outro ditadorzinho, mas esse de esquerda, lá na Venezuela, está botando o Brasil na maior saia justa, ameaçando anexar grande parte do território da Guiana, isso tudo em área limítrofe ao Brasil. O exemplo de mais um ditador, na Rússia, querendo anexar a Ucrânia e guerreando ferozmente há quase dois anos e mais o exemplo de Israel...

-- Mas, Chefe – interrompeu Pedro, com delicadeza – isso tudo não é coisa demais, mesmo que seja Você, para se lidar em apenas umas feriazinhas de Natal?

-- Ah... Aí você tem razão, meu fiel escudeiro. É coisa demais, ainda que para Mim, que sou Todo Poderoso. Mas não vou ficar, como dizia Vinícius de Moraes, com as minhas “vastas mãos abanando”.

Pedro riu: -- Segundo o Poetinha, Você deveria ter ficado exatamente assim no tal do Sétimo Dia da Criação. Aí não haveria essa praga de ser humano pra destruir e contaminar um dos mais belos Planetas que Você concebeu nesse Universo.

-- Pois é. Mas também não haveria Mozart, Da Vinci, Maria José Silveira, Marie Curie, Dolores Duran, Alan Turing, Oscar Wilde, Érico Veríssimo, Beatles – só pra citar os primeiros que me vieram à mente -- não haveria nenhuma maravilha criada por alguns dos meus melhores Filhos! E essas maravilhas – tantas! – são parte fundamental do alimento do Universo, enriquecem os Registros Acásicos e, além disso, têm um efeito multiplicador na criatividade humana, de modo geral.

Pedro estava pensativo, refletindo. Criou coragem e resolveu dar voz às suas dúvidas:
-- Olha, Meu Deus, estive pensando... será que aquele babaca do Lúcifer deu um jeito de mandar mais almas demoníacas para a Terra do que seria permitido pelos Estatutos do Inferno?

-- Bom... desse sujeitinho tudo se pode esperar. Mas, pelo registro dos Anjos na contabilidade das Almas, os Bons estão superando em muito o número dos Maus. Tá certo que os Bons nem sempre são totalmente bons, alguma maldade sempre mora dentro deles. Mas com os Maus, não há chance: não existe nenhuma bondade, nenhumazinha assim pequetitita, neles.

-- É por isso que eles sempre vencem! – exclamou Pedro.

-- Eita! Essa não! – esbravejou o Todo Poderoso – Agora você está afirmando que o bestalhão do Lúcifer está ganhando a guerra, está me passando pra trás! E isso não é verdade. Se os Maus vencessem sempre, já teriam conseguido exterminar os Bons!

-- Ah, foi só força de expressão, Meu Mestre! – defendeu-se Pedro – Me perdoe.

-- Ego te absolvo a peccatis tuis in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti – respondeu o Pai.—Bom Pedro, já vou indo. Deseje-me boa sorte.

-- Ah – riu Pedro – a Boa Sorte anda sempre ao seu lado, meu Deus!
...

Maria Gracilene se pôs a relembrar os Natais da sua infância. Distante, a infância, já que nesse ano completara os temidos 60 anos de idade, o que a incluía na lista dos idosos.
-- Não sou idosa! – chiava ela – Sou Longeva!

Eram lindos os Natais, então! – matutava ela. Sua mãe sempre caprichava, na decoração da casinha onde moravam no Bairro do Pinheiro, um dos que mais cedo foi atingido pelo afundamento das terras, que começara em 2018, e logo obrigaria os moradores a abandonarem seus lares.

Quando Gracilene era criança, pouco se comemorava o Natal nas capitais nordestinas. Mas sua mãe viera do sul do país porque se apaixonara, na juventude, por seu pai, que a conhecera na cidade de São Paulo, quando lá fôra tentar a vida. Casaram-se e acabaram voltando pra terra natal dele. Construíram então uma pequena casa em Pinheiro. A casa foi espichando, com o passar dos anos. E Gracilene, que era a caçula do casal, passou a infância, a juventude e toda a vida naquela casa. Toda a vida, até que o desastre a expulsasse.

Se, no bairro, a comemoração do Natal era menor, então, naqueles tempos, em sua casa era maior. Sua mãe trouxera a tradição de sua família paulistana – de origens portuguesas -- com ela e a festa que ela armava então – com árvore decorada, presépio, ceia e tudo a que se tinha direito – atraíam até a vizinhança. No dia 24 de dezembro, a família de seu pai vinha em peso, tios, primos, uma loucura! E começavam a troca de presentes. Era a festa que a menina Gracilene mais esperava! Mais do que a de Nossa Senhora da Conceição, no dia 8 de dezembro. É verdade que não chegava aos pés, a “sua” festa de Natal, se comparada ao que se fazia na casa de um dos maiores “coronéis” da cidade. Homem de grande visão, dono de terras sem fim, cercado de jagunços e de puxa-sacos, o coronel fôra um dos primeiros a construir uma mansão no bairro de Vila Verde, à beira mar. Antes, a família dele morava em Jatiúca, ali pertinho. Mas, ainda no começo dos anos 1960, o coronel percebera que Ponta Verde seria o futuro bairro mais nobre da capital alagoana e ali mandara erguer a mansão que abrigava a família. A mãe de Gracilene, às quartas feiras, ia à casa nova do Coronel, ajudar os empregados fixos da mansão, na faxina. Um dia levou Gracilene com ela. Era dezembro e a enorme casa do coronel estava preparada para o Natal. Se a menina acreditava que o Natal de sua casa era o mais lindo da cidade, ficou profundamente chocada com a riqueza e o luxo que viu preparados na casa dos ricos.

Até hoje, já longeva e de cabelos grisalhos, pode lembrar-se dessa profunda impressão que marcara sua alma. Mas hoje, ri. Logo percebeu que, na sua boa e confortável casa de classe média, no Pinheiro, o Natal deveria ser bem mais sincero e autêntico do que a sofisticada comemoração da família endinheirada. Afinal, era voz corrente em Maceió que eles, os ricos, eram frequentemente abalados por seguidos escândalos de bebedeiras e coisas piores que grassavam na família.

Por isso, para Gracilene, mais do que para seus conterrâneos, o Natal ainda guardava aquele encanto, aquela magia, que ela trouxera da infância. Ou melhor, que carregara por toda a sua vida.

Quando seus pais morreram, ela apenas 2 meses depois dele, nos anos 1990, toda a família ainda morava na casa que eles haviam construído havia mais de 4 décadas. Gracilene já estava casada, assim como seus dois irmãos mais velhos. Com a ausência dos pais, os dois, com suas respectivas famílias, deram um jeito de se bandear para a cidade de São Paulo. Afinal, esse sempre fôra o sonho deles, desde muito jovens, porque cresceram ouvindo a mãe falar de sua cidade, das oportunidades que havia por lá, da riqueza, dos encantos daquela que já era então, nessa época, uma megalópole. Os pais, porém, não queriam nem ouvir falar nisso. Faziam questão de manter a família unida naquela casa que era simples, mas que fora espichando com o tempo, na medida do necessário, para abrigar a todos que à família se agregaram.

Ah, os Natais dos anos 1990! Gracilene, o marido, os dois filhos pequenininhos. Os irmãos, as cunhadas, os filhos deles (eram oito, ao todo!) e mais as famílias de todo esse bando de gente, sem contar os tradicionais vizinhos que, desde que ainda não era moda, passavam no casarão de Gracilene a véspera de Natal. Festança.

No entanto, havia um momento, a meia-noite, em que a mãe de Gracilene fazia com que todos os convidados se dessem as mãos e rezavam em coro, para lembrar que festança era para Jesus Christo, o filho de Deus, que viera à Terra com sua mensagem de amor e solidariedade e que ele, que morrera injustiçado como injustiçados geralmente são os que enxergam para além de seu próprio tempo, torturado, pregado a uma cruz, renascia a cada 25 de dezembro para renovar, no coração dos humanos, os sentimentos de amor, compreensão, tolerância e solidariedade.

Mas, quando morreram-lhe o pai e a mãe e as famílias dos irmãos foram tentar a vida na sonhada São Paulo, Gracilene, o marido e os filhos ficaram sozinhos naquele casarão. No entanto, nos Natais, todos voltavam e tudo era, de novo, alegria. Isso – pensava ela, divertida – sem contar as eventuais brigas... Que, aliás, logo passavam. Uma família criada sob o manto do amor verdadeiro, o mesmo amor que unira seus pais, não guardava mágoas e ressentimentos. Ah! Quão maravilhosos tinham sido aqueles Natais.

Muito embora a mineradora e a prefeitura da cidade tivessem alertado a todos, desde 2018, que aquele bairro do Pinheiro estava condenado e, com ele, todos os imóveis que ali se assentavam, a família de Gracilene foi a última a sair, no começo de 2023. Muitas casas, inclusive a deles, já apresentavam rachaduras e problemas hidráulicos. As ruas do bairro foram se esvaziando. Alguns dos seus mais queridos vizinhos, com os quais convivera por toda a sua vida, ainda se aventuraram a voltar para passar os Natais (exceto o de 2020, reflete ela, por causa da pandemia) de 2021 e 22. Mas o bairro estava numa penúria só. Já não tinha luz elétrica nas ruas, as casas abandonadas, sucateadas, sem telhas, sem torneiras, sem armários... Um bairro fantasma.

Por isso, no começo desse ano de 23, Gracilene, o marido, os dois filhos, as noras e os netos adolescentes não tiveram alternativa senão aceitar a casa alugada pela mineradora num bairro próximo e fora de perigo. Mas era uma lástima – pensava ela. A casa era muito menor do que o casarão em que passara toda a sua vida. Só uma das famílias vizinhas de décadas estava próxima, os outros foram dispersos... A comunidade rompera-se!

A mineradora responsável pelo afundamento dos bairros de Bebedouro, Bom Parto, Mutange, Pinheiro e Farol -- onde cerca de 14.500 casas jaziam abandonadas e sucateadas e de onde mais de 60 mil pessoas tinham sido obrigadas a sair – negociava, a passos de cágado, o reembolso pelos imóveis perdidos. Mas quem, pensava Gracilene, poderia reembolsar a história de suas vidas, as amizades afastadas do convívio cotidiano, a tristeza de deixar o chão que sempre a sustentara, a si mesma e aos seus tantos amados? Não há dinheiro que pague isso, que compense isso, que console a destruição de toda uma história de vida!

Nos primeiros dias na nova casa, ela chorara. Dia e noite. O marido argumentava:
-- Graci, para com isso! Pensa na Ucrânia, naquela guerra horrorosa que faz muito mais mal aos ucranianos do que essa filha da puta dessa mineradora fez a nós! Nós estamos vivos e em paz, não perdemos nossos filhos, nossos netos, estamos aqui e precisamos aceitar a nossa atual realidade. Pensa no povo de Minas, o povo de Mariana e Brumadinho, vítimas também da exploração descontrolada das riquezas minerais! Pensa na gente que foi enterrada viva sob os dejetos de uma barragem rompida!

-- Eu penso. Eu penso – respondia ela, sempre chorando. Rezo por eles. Mas não posso ser feliz pelo método comparativo!

Os meses foram passando e Gracilene foi tentando tornar a nova casa o mais parecida possível com a antiga. Até plantas e algumas árvores do jardim da casa que desmoronava, ela conseguira salvar e transplantar para o jardinzinho da nova residência. Muitos dos móveis porém ficaram para trás, teve que se desfazer deles, trocou alguns pelo transporte de caminhão que trouxe as árvores, outros pelo serviço do engenheiro florestal que viabilizou a operação de retirada e replantio dos seus irmãos vegetais. Essas árvores tinham sido plantadas, havia décadas, por seu pai, por sua mãe... tinham crescido junto com ela, junto com a sua família...

Quanto mais conseguia reunir as lembranças da velha casa na nova, mais as lágrimas iam minguando.

Mas agora... agora era de novo Natal. A turma de São Paulo viria, como sempre, para comemorar a data. Mas Gracilene duvidava que muitos dos ex-vizinhos com suas famílias também viessem..

No dia 12 de dezembro, terminou a decoração da casa. O enorme presépio (que, como as árvores, fora crescendo ao longo dos anos). O grande Pinheiro cheio de bolas coloridas, anjos, sempre-vivas e estrelas (mas que já não estava, para combinar, no bairro de Pinheiro, esse tragado pela irresponsabilidade dos homens da mineradora), luzes piscantes sobre as árvores no jardim... Apesar de tudo isso, Gracilene não estava feliz, ainda. Pesava em seu coração a triste expulsão do seu lugar nesse mundo, nessa vida.

A noite era cheia de estrelas. Estava sozinha em casa. Todos tinham ido ver a preparação da cidade para o seu famoso “Natal dos Folguedos”. Cansada e sem encontrar a felicidade que esperara descobrir naquele longo dia de decoração da casa, começou a chorar, sentada na varanda.

Mas, de repente, algo dentro dela explodiu! Não. Não iria deixar-se abater pelo fruto da ganância de alguns poucos homens insensíveis à sua grande perda. Teria uma nova casa, talvez essa mesma, onde já plantara as árvores que guardavam os espíritos dos patriarcas da família. Iria reconstruir tudo! Com novos vizinhos, se preciso. Com todos os seus queridos, que como dizia o seu amado, afinal, estavam todos vivos e, graças a Deus, com saúde. Não seria um bando de insensíveis capaz de destruir o amor que morava em seu coração, o amor por sua vida, pelos filhos, pelo marido, pelos netos, pelos amigos! E assim, subitamente, se viu tocada por uma grande alegria. Sim, o desafio da reconstrução poderia ser uma grande alegria! Levantou-se e, animada, decidiu ir ao centro da cidade, ao encontro da família, na praça onde haveria o “Natal dos Folguedos”, uma já tradição em Maceió.

Gracilene não sabia. Nem poderia saber. Mas naquele instante, em que se recuperara, Deus, chegando à Terra, passara por sua alma, por seu coração, vindo à reboque dos Anjos, aqueles que sempre chegam primeiro, no Natal.


Bel
2023 dezembro 11