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(Boticello, século XV)
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Natal Sem Lar
Isabel Fomm de
Vasconcellos Caetano. |
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-- Sim—respondeu
Deus – essa era a minha primeira intenção. Mas creio que a Terra esteja
precisando mais de mim, agora, do que quaisquer dos planetas desse nosso
Universo.
-- Muita guerra por lá – disse Pedro—aliás, como sempre. Mas parece que agora a
barra está mais pesada! E o Chefe vai especificamente pra onde? Pra Faixa de
Gaza? Talvez Jerusalém?
-- Não – respondeu Deus – vou de novo pro Brasil. Vou pra Maceió, no estado das
Alagoas, ver se consigo levar algum conforto às famílias que tiveram que deixar
suas casas pela ganância de uma mineradora que foi acabando com o solo local,
durante 50 anos, minerando irresponsavelmente o subsolo. É verdade que o último
presidente do país, você sabe, aquele lá, relaxou na fiscalização desse tipo de
atividade... e os caras abusaram! Imagine, Pedro, essas famílias tendo que
abandonar seus lares, seu entorno, a realidade a que estavam habituadas, tudo
por uma atitude inconsequente de uma mineradora e das autoridades que permitiram
isso! No Brasil já aconteceram outros desastres ambientais recentemente por
causa de mineradoras e de autoridades que fecharam os olhos para as eventuais
consequências de suas atitudes, e, pior, com a conivência de quem deveria
vigia-las. Você deve estar lembrado da destruição de Mariana, em Minas Gerais e,
mais tarde, de Brumadinho, no mesmo estado, em que pessoas foram enterradas
vivas pelos dejetos de uma barragem de mineração que simplesmente estourou! Não,
Pedro, não foi pra isso que eu criei os seres humanos que habitam esse lindo
terceiro planeta do sistema solar! Coloquei lá a mais linda natureza, o mais
delicado equilíbrio ecológico e alguns dos mais inteligentes dos meus filhos! E
veja o que eles estão fazendo agora! Destruindo a natureza, causando esse
inacreditável desequilíbrio, em nome apenas do lucro, do dinheiro, que está nas
mãos de muito poucos. Enquanto alguns usufruem de todo o conforto e benesses que
a tal da tecnologia deles criou, a maioria passa fome, muitos países em guerra,
destruição, genocídio mesmo! A Terra é o planeta que mais precisa de mim agora!
E vou pro Brasil não apenas por causa do desastre ambiental nas Alagoas, mas
também por causa das mulheres. Com o poder, de 2018 a 2022, nas mãos cegas da
direita política, anos e anos de conquistas sociais do povo brasileiro sofreram
sério retrocesso. Aqueles que estavam quietos, fingindo-se de politicamente
corretos (uma besteira inventada pela esquerda que se esquece não ser possível
eliminar preconceitos por “decreto”, a única coisa que livra os humanos da
intolerância e da discriminação, você sabe, é estudo, cultura, arte... ) esses
supostos politicamente corretos, saíram de suas tocas, soltaram a franga e
aumentou grandemente a violência contra mulheres, homoafetivos, povos
originários e até contra os simplesmente pobres! Se o candidato a ditadorzinho
que foi presidente do Brasil causou tamanho estrago em apenas 4 anos, outro
ditadorzinho, mas esse de esquerda, lá na Venezuela, está botando o Brasil na
maior saia justa, ameaçando anexar grande parte do território da Guiana, isso
tudo em área limítrofe ao Brasil. O exemplo de mais um ditador, na Rússia,
querendo anexar a Ucrânia e guerreando ferozmente há quase dois anos e mais o
exemplo de Israel...
-- Mas, Chefe – interrompeu Pedro, com delicadeza – isso tudo não é coisa
demais, mesmo que seja Você, para se lidar em apenas umas feriazinhas de Natal?
-- Ah... Aí você tem razão, meu fiel escudeiro. É coisa demais, ainda que para
Mim, que sou Todo Poderoso. Mas não vou ficar, como dizia Vinícius de Moraes,
com as minhas “vastas mãos abanando”.
Pedro riu: -- Segundo o Poetinha, Você deveria ter ficado exatamente assim no
tal do Sétimo Dia da Criação. Aí não haveria essa praga de ser humano pra
destruir e contaminar um dos mais belos Planetas que Você concebeu nesse
Universo.
-- Pois é. Mas também não haveria Mozart, Da Vinci, Maria José Silveira, Marie
Curie, Dolores Duran, Alan Turing, Oscar Wilde, Érico Veríssimo, Beatles – só
pra citar os primeiros que me vieram à mente -- não haveria nenhuma maravilha
criada por alguns dos meus melhores Filhos! E essas maravilhas – tantas! – são
parte fundamental do alimento do Universo, enriquecem os Registros Acásicos e,
além disso, têm um efeito multiplicador na criatividade humana, de modo geral.
Pedro estava pensativo, refletindo. Criou coragem e resolveu dar voz às suas
dúvidas:
-- Olha, Meu Deus, estive pensando... será que aquele babaca do Lúcifer deu um
jeito de mandar mais almas demoníacas para a Terra do que seria permitido pelos
Estatutos do Inferno?
-- Bom... desse sujeitinho tudo se pode esperar. Mas, pelo registro dos Anjos na
contabilidade das Almas, os Bons estão superando em muito o número dos Maus. Tá
certo que os Bons nem sempre são totalmente bons, alguma maldade sempre mora
dentro deles. Mas com os Maus, não há chance: não existe nenhuma bondade,
nenhumazinha assim pequetitita, neles.
-- É por isso que eles sempre vencem! – exclamou Pedro.
-- Eita! Essa não! – esbravejou o Todo Poderoso – Agora você está afirmando que
o bestalhão do Lúcifer está ganhando a guerra, está me passando pra trás! E isso
não é verdade. Se os Maus vencessem sempre, já teriam conseguido exterminar os
Bons!
-- Ah, foi só força de expressão, Meu Mestre! – defendeu-se Pedro – Me perdoe.
-- Ego te absolvo a peccatis tuis in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti –
respondeu o Pai.—Bom Pedro, já vou indo. Deseje-me boa sorte.
-- Ah – riu Pedro – a Boa Sorte anda sempre ao seu lado, meu Deus!
...
Maria Gracilene se pôs a relembrar os Natais da sua infância. Distante, a
infância, já que nesse ano completara os temidos 60 anos de idade, o que a
incluía na lista dos idosos.
-- Não sou idosa! – chiava ela – Sou Longeva!
Eram lindos os Natais, então! – matutava ela. Sua mãe sempre caprichava, na
decoração da casinha onde moravam no Bairro do Pinheiro, um dos que mais cedo
foi atingido pelo afundamento das terras, que começara em 2018, e logo obrigaria
os moradores a abandonarem seus lares.
Quando Gracilene era criança, pouco se comemorava o Natal nas capitais
nordestinas. Mas sua mãe viera do sul do país porque se apaixonara, na
juventude, por seu pai, que a conhecera na cidade de São Paulo, quando lá fôra
tentar a vida. Casaram-se e acabaram voltando pra terra natal dele. Construíram
então uma pequena casa em Pinheiro. A casa foi espichando, com o passar dos
anos. E Gracilene, que era a caçula do casal, passou a infância, a juventude e
toda a vida naquela casa. Toda a vida, até que o desastre a expulsasse.
Se, no bairro, a comemoração do Natal era menor, então, naqueles tempos, em sua
casa era maior. Sua mãe trouxera a tradição de sua família paulistana – de
origens portuguesas -- com ela e a festa que ela armava então – com árvore
decorada, presépio, ceia e tudo a que se tinha direito – atraíam até a
vizinhança. No dia 24 de dezembro, a família de seu pai vinha em peso, tios,
primos, uma loucura! E começavam a troca de presentes. Era a festa que a menina
Gracilene mais esperava! Mais do que a de Nossa Senhora da Conceição, no dia 8
de dezembro. É verdade que não chegava aos pés, a “sua” festa de Natal, se
comparada ao que se fazia na casa de um dos maiores “coronéis” da cidade. Homem
de grande visão, dono de terras sem fim, cercado de jagunços e de puxa-sacos, o
coronel fôra um dos primeiros a construir uma mansão no bairro de Vila Verde, à
beira mar. Antes, a família dele morava em Jatiúca, ali pertinho. Mas, ainda no
começo dos anos 1960, o coronel percebera que Ponta Verde seria o futuro bairro
mais nobre da capital alagoana e ali mandara erguer a mansão que abrigava a
família. A mãe de Gracilene, às quartas feiras, ia à casa nova do Coronel,
ajudar os empregados fixos da mansão, na faxina. Um dia levou Gracilene com ela.
Era dezembro e a enorme casa do coronel estava preparada para o Natal. Se a
menina acreditava que o Natal de sua casa era o mais lindo da cidade, ficou
profundamente chocada com a riqueza e o luxo que viu preparados na casa dos
ricos.
Até hoje, já longeva e de cabelos grisalhos, pode lembrar-se dessa profunda
impressão que marcara sua alma. Mas hoje, ri. Logo percebeu que, na sua boa e
confortável casa de classe média, no Pinheiro, o Natal deveria ser bem mais
sincero e autêntico do que a sofisticada comemoração da família endinheirada.
Afinal, era voz corrente em Maceió que eles, os ricos, eram frequentemente
abalados por seguidos escândalos de bebedeiras e coisas piores que grassavam na
família.
Por isso, para Gracilene, mais do que para seus conterrâneos, o Natal ainda
guardava aquele encanto, aquela magia, que ela trouxera da infância. Ou melhor,
que carregara por toda a sua vida.
Quando seus pais morreram, ela apenas 2 meses depois dele, nos anos 1990, toda a
família ainda morava na casa que eles haviam construído havia mais de 4 décadas.
Gracilene já estava casada, assim como seus dois irmãos mais velhos. Com a
ausência dos pais, os dois, com suas respectivas famílias, deram um jeito de se
bandear para a cidade de São Paulo. Afinal, esse sempre fôra o sonho deles,
desde muito jovens, porque cresceram ouvindo a mãe falar de sua cidade, das
oportunidades que havia por lá, da riqueza, dos encantos daquela que já era
então, nessa época, uma megalópole. Os pais, porém, não queriam nem ouvir falar
nisso. Faziam questão de manter a família unida naquela casa que era simples,
mas que fora espichando com o tempo, na medida do necessário, para abrigar a
todos que à família se agregaram.
Ah, os Natais dos anos 1990! Gracilene, o marido, os dois filhos pequenininhos.
Os irmãos, as cunhadas, os filhos deles (eram oito, ao todo!) e mais as famílias
de todo esse bando de gente, sem contar os tradicionais vizinhos que, desde que
ainda não era moda, passavam no casarão de Gracilene a véspera de Natal.
Festança.
No entanto, havia um momento, a meia-noite, em que a mãe de Gracilene fazia com
que todos os convidados se dessem as mãos e rezavam em coro, para lembrar que
festança era para Jesus Christo, o filho de Deus, que viera à Terra com sua
mensagem de amor e solidariedade e que ele, que morrera injustiçado como
injustiçados geralmente são os que enxergam para além de seu próprio tempo,
torturado, pregado a uma cruz, renascia a cada 25 de dezembro para renovar, no
coração dos humanos, os sentimentos de amor, compreensão, tolerância e
solidariedade.
Mas, quando morreram-lhe o pai e a mãe e as famílias dos irmãos foram tentar a
vida na sonhada São Paulo, Gracilene, o marido e os filhos ficaram sozinhos
naquele casarão. No entanto, nos Natais, todos voltavam e tudo era, de novo,
alegria. Isso – pensava ela, divertida – sem contar as eventuais brigas... Que,
aliás, logo passavam. Uma família criada sob o manto do amor verdadeiro, o mesmo
amor que unira seus pais, não guardava mágoas e ressentimentos. Ah! Quão
maravilhosos tinham sido aqueles Natais.
Muito embora a mineradora e a prefeitura da cidade tivessem alertado a todos,
desde 2018, que aquele bairro do Pinheiro estava condenado e, com ele, todos os
imóveis que ali se assentavam, a família de Gracilene foi a última a sair, no
começo de 2023. Muitas casas, inclusive a deles, já apresentavam rachaduras e
problemas hidráulicos. As ruas do bairro foram se esvaziando. Alguns dos seus
mais queridos vizinhos, com os quais convivera por toda a sua vida, ainda se
aventuraram a voltar para passar os Natais (exceto o de 2020, reflete ela, por
causa da pandemia) de 2021 e 22. Mas o bairro estava numa penúria só. Já não
tinha luz elétrica nas ruas, as casas abandonadas, sucateadas, sem telhas, sem
torneiras, sem armários... Um bairro fantasma.
Por isso, no começo desse ano de 23, Gracilene, o marido, os dois filhos, as
noras e os netos adolescentes não tiveram alternativa senão aceitar a casa
alugada pela mineradora num bairro próximo e fora de perigo. Mas era uma lástima
– pensava ela. A casa era muito menor do que o casarão em que passara toda a sua
vida. Só uma das famílias vizinhas de décadas estava próxima, os outros foram
dispersos... A comunidade rompera-se!
A mineradora responsável pelo afundamento dos bairros de Bebedouro, Bom Parto,
Mutange, Pinheiro e Farol -- onde cerca de 14.500 casas jaziam abandonadas e
sucateadas e de onde mais de 60 mil pessoas tinham sido obrigadas a sair –
negociava, a passos de cágado, o reembolso pelos imóveis perdidos. Mas quem,
pensava Gracilene, poderia reembolsar a história de suas vidas, as amizades
afastadas do convívio cotidiano, a tristeza de deixar o chão que sempre a
sustentara, a si mesma e aos seus tantos amados? Não há dinheiro que pague isso,
que compense isso, que console a destruição de toda uma história de vida!
Nos primeiros dias na nova casa, ela chorara. Dia e noite. O marido argumentava:
-- Graci, para com isso! Pensa na Ucrânia, naquela guerra horrorosa que faz
muito mais mal aos ucranianos do que essa filha da puta dessa mineradora fez a
nós! Nós estamos vivos e em paz, não perdemos nossos filhos, nossos netos,
estamos aqui e precisamos aceitar a nossa atual realidade. Pensa no povo de
Minas, o povo de Mariana e Brumadinho, vítimas também da exploração
descontrolada das riquezas minerais! Pensa na gente que foi enterrada viva sob
os dejetos de uma barragem rompida!
-- Eu penso. Eu penso – respondia ela, sempre chorando. Rezo por eles. Mas não
posso ser feliz pelo método comparativo!
Os meses foram passando e Gracilene foi tentando tornar a nova casa o mais
parecida possível com a antiga. Até plantas e algumas árvores do jardim da casa
que desmoronava, ela conseguira salvar e transplantar para o jardinzinho da nova
residência. Muitos dos móveis porém ficaram para trás, teve que se desfazer
deles, trocou alguns pelo transporte de caminhão que trouxe as árvores, outros
pelo serviço do engenheiro florestal que viabilizou a operação de retirada e
replantio dos seus irmãos vegetais. Essas árvores tinham sido plantadas, havia
décadas, por seu pai, por sua mãe... tinham crescido junto com ela, junto com a
sua família...
Quanto mais conseguia reunir as lembranças da velha casa na nova, mais as
lágrimas iam minguando.
Mas agora... agora era de novo Natal. A turma de São Paulo viria, como sempre,
para comemorar a data. Mas Gracilene duvidava que muitos dos ex-vizinhos com
suas famílias também viessem..
No dia 12 de dezembro, terminou a decoração da casa. O enorme presépio (que,
como as árvores, fora crescendo ao longo dos anos). O grande Pinheiro cheio de
bolas coloridas, anjos, sempre-vivas e estrelas (mas que já não estava, para
combinar, no bairro de Pinheiro, esse tragado pela irresponsabilidade dos homens
da mineradora), luzes piscantes sobre as árvores no jardim... Apesar de tudo
isso, Gracilene não estava feliz, ainda. Pesava em seu coração a triste expulsão
do seu lugar nesse mundo, nessa vida.
A noite era cheia de estrelas. Estava sozinha em casa. Todos tinham ido ver a
preparação da cidade para o seu famoso “Natal dos Folguedos”. Cansada e sem
encontrar a felicidade que esperara descobrir naquele longo dia de decoração da
casa, começou a chorar, sentada na varanda.
Mas, de repente, algo dentro dela explodiu! Não. Não iria deixar-se abater pelo
fruto da ganância de alguns poucos homens insensíveis à sua grande perda. Teria
uma nova casa, talvez essa mesma, onde já plantara as árvores que guardavam os
espíritos dos patriarcas da família. Iria reconstruir tudo! Com novos vizinhos,
se preciso. Com todos os seus queridos, que como dizia o seu amado, afinal,
estavam todos vivos e, graças a Deus, com saúde. Não seria um bando de
insensíveis capaz de destruir o amor que morava em seu coração, o amor por sua
vida, pelos filhos, pelo marido, pelos netos, pelos amigos! E assim,
subitamente, se viu tocada por uma grande alegria. Sim, o desafio da
reconstrução poderia ser uma grande alegria! Levantou-se e, animada, decidiu ir
ao centro da cidade, ao encontro da família, na praça onde haveria o “Natal dos
Folguedos”, uma já tradição em Maceió.
Gracilene não sabia. Nem poderia saber. Mas naquele instante, em que se
recuperara, Deus, chegando à Terra, passara por sua alma, por seu coração, vindo
à reboque dos Anjos, aqueles que sempre chegam primeiro, no Natal.
*
ler o conto de Natal aqui
citado por Deus.
Bel
2023 dezembro 11