Precisava dar um
jeito de sair dali, ter nascido ali parecia um castigo de Deus.
Ela sempre se
perguntava como faria isso, pois queria ser estrela de novela na TV
Globo, queria andar naqueles iates que ela via passar, lá de cima do
morro, do alto da laje da sua casa. Até que a laje era uma benção. Por
causa dela, seu pai conseguia faturar uma boa grana em dolar, quando
chegava o fim do ano. Os turistas estrangeiros achavam sensacional
passar o Reveillon na laje. De lá, avistavam toda a baía de Guanabara,
assistiam ao show de fogos de artifício, aquele espetáculo de formas e
luzes coloridas que saíam das balsas atracadas em frente à praia de
Copacabana... E tudo por um preço que, para eles, era barato, mas para a
família dela, uma pequena fortuna. Seus pais tinham mandado construir
cercas em volta da laje pra que seus clientes não caíssem de lá de cima,
quando tomassem muito champagne.
“Pró-seco”,
corrigiu-se em pensamento, era
proibido – e ela não sabia porque – chamar aquele vinho branco,
espumante, de champagne. Sua mãe sempre errava, sempre falava o nome
antigo e o irmão dela vivia corrigindo... Aliás, aquele seu tio era
mestre em viver corrigindo os outros. Nada de dizer “conjunto”, músicos
em grupo agora eram “banda”. Nada de dizer “favela”. Casas e barracos
amontoados em vielas e construídos sobre os morros, agora eram
“comunidades”. Nada de dizer “povo”, o certo é “população”... Glorinha
ria de seu próprio pensamento, enquanto subia a viela que levava até sua
casa.
Hoje, na escola, a professora avisara que haveria
uma ação de uma ONG, uma semana antes do Natal.
Até o Natal de pobre era uma semana antes
do que o dos ricos. Claro. Quem iria querer sair lá debaixo, do conforto
da cidade e das praias, para vir aqui em cima fazer caridade em pleno
Natal? A turma de baixo vivia muito ocupada no Natal, era aquela
correria com compras e festas... Ela sabia. Quando tinha 5 anos uma
madame levara ela pra passar o Natal numa casa enorme lá na beira da
Lagoa Rodrigo de Freitas, Rua Resedá n.8. Nunca esquecera. Também nunca
vira um lugar tão lindo, uma mesa tão linda, umas comidas tão
diferentes... Puseram um vestido nela e todo mundo olhava e dizia “que
gracinha de menininha”!
Foi assim que ela descobriu que o mundo tinha muito
mais coisas do que o morro. E ficou
muito brava mesmo. Tambem que ainda trazia viva, dentro de si, a
lembrança de outro desses natais caridosos. Ficara numa fila enorme,
debaixo do sol, de olho numa Barbie lindona, mas, quando chegou a sua
vez de ganhar presente, todas as Barbies já tinham sido dadas para as
meninas que chegaram antes dela. Passou a noite chorando e, no dia do
Natal de verdade, sabe-se Deus como, seu tio aparecera com uma Barbie
igualzinha pra ela... Ai! Ficara tão feliz, tão feliz, que até tinha
começado a acreditar que Deus existia mesmo e que, um dia, a tiraria
dali, a levaria para a cidade, para o estúdio de novelas que ela, que
não era boba nem nada, já sabia muito bem como se parecia, vira nas
revistas velhas do salãozinho de beleza da Cleide.
É, porque ela, Glorinha, tinha só 12 anos, mas, a
despeito do que dizia o estatuto da criança
e do adolescente, já trabalhava sim, aos sábados, no cabeleireiro, era a
“encarregada da limpeza”. Riu de novo: outro novo nome, ninguém queria
mais dizer o nome certo das coisas. Encarregada da limpeza... uma ova!
Faxineira, isso sim! No Brasil – ela estava cansada de ver na TV – era
tudo assim agora: nomes bonitos para esconder feias realidades e
estatutos e leis para fingirem que um monte de coisas ruins não estavam
acontecendo. Imagine se fosse mesmo proibido trabalhar... Quase toda a
turminha da idade dela fazia alguma coisa pra conseguir dinheiro, ali na
fave...hum... co-mu-ni-da-de. Isso sem contar a turma “de menor” que
trabalhava pro tráfico de drogas e era sempre quem fazia o serviço
pesado, o serviço sujo, mesmo que não fosse. Quer dizer, os adultos
matavam e os menores se entregavam “pros homem” assumindo o crime. Para
eles, os “de menor” a pena nunca passava de três anos. Além disso, eles
quase nunca ficavam presos pra valer porque a turma do lado de cá dava
um jeito de organizar uma fuga...
-- Para uma menina de 12 anos, você raciocina com
um clareza de doer. – disse uma voz
firme de homem que caminhava quase ao lado dela.
-- Mas, moço – respondeu Gloria – todo mundo é que nem eu, hoje em dia.
Meu tio mesmo diz que a Internet, a TV a cabo, todo esse progresso faz
progredir também as nossas cabeças... Ei! Pera aí... Eu estava pensando
e não falando! – gritou ela, assustada, de repente se dando conta que
aquele homem havia conseguido ler seus pensamentos...— Nossa! Será que
já inventaram isso também? Um leitor de pensamentos?
-- Não – respondeu ele.—Ainda não inventaram não. Na verdade, isso
continua sendo privilégio dos anjos.
-- Sai prá lá, gabiru! – você vai querer me
convencer que é um anjo? Com essa
cara de malandro?
-- Se não existisse celular e viva voz – disse ele – todos por aqui
achariam que você enlouqueceu, que está falando e gesticulando pra
ninguém...
-- O trouxa aí – disse ela para uma terceira pessoa inexistente – vai
querer me convencer não só que é um anjo, mas que é invisível. Deve ser
um pedó.. como é mesmo? Pedóssilo!
-- Pedófilo – corrigiu ele. – Não. Eu não sou pedófilo coisa nenhuma.
Você duvida? Tente me pegar.
Gloria estendeu a mão e seu braço passou por ele, como se ele não
estivesse ali.
-- Bom, então você é uma projeção holo... holográfica! Ufa... Essa eu
acertei!
-- Não, não, Maria da Glória, eu sou mesmo um anjo, juro por Deus!
-- Tá bom seu anjo sabe-tudo! Então também deveria saber que eu detesto,
de-tes-to!!!, está entendendo? Que me chamem disso aí.
-- Maria da Glória?
-- Aie!!! Para com isso, seu Anjo de merda! Meu nome é Glorinha, no
máximo, Glória. Minha mãe pos esse nome em mim em homenagem à Glória
Pires, a atriz. Eu também vou ser atriz.
-- Mas a sua mãe não a chamou de Maria a troco de nada, não é?
-- Bom, aí você tem razão. Ela me chamou de Maria por causa da Nossa
Senhora, aquela, a que é cheia de graça, como a Garota de Ipanema.
-- Então você sabe como é: o Senhor é com ela e bendita ela é entre as
mulheres.
-- Mas eu não, moço. Eu sou, mas é maldita!
Nasci pobre, preta, negra como dizem que a gente tem que falar agora,
negra, não preta, mulher. Meu tio
diz que sou três vezes discriminada, sacou? E sei que sou.
-- Dos pobres é o reino dos céus – Respondeu o anjo.
-- Olha, seu anjo, não me venha com essa. Eu não quero saber de reino
dos céus. Eu já moro pertinho do céu e o reino da terra, que eu saiba, é
um inferno pra uns, mas é um céu muito do bom pra outros. Vem cá, chega
aqui ao lado do barranco. Tá vendo lá embaixo aquele barco enorme?
Aquilo é um iate e lá dentro os ricaços gastam num dia o que o meu pai
leva cinco anos pra ganhar. Eles é que estão no reino dos céus.
-- Talvez não – disse o anjo—você está julgando pelas aparências, você
não tem ideia do que se passa em suas mentes e em seus corações. Você
não sabe nada de suas aflições, de seus medos, do que rola em suas
consciências... você não sabe.
-- O meu tio disse que tem uma francesa famosa que, muitos anos antes de
eu nascer, falava que é melhor chorar num Mercedes do que num buzão.
O anjo teve que rir, capitulando:
-- Nossa, Glorinha, você tem resposta para
tudo, não é?
-- O meu tio...
-- Pelo jeito, esse seu tio é quem ensina muitas coisas a você, né?
Ela riu:
-- Só pra mim não. Ele ensina todo mundo aqui na comunidade. Ele aprende
essas coisas nos livros que ele vive lendo e o que ele quer saber
procura no google e pronto.
-- E você? Gosta de ler?
-- Aprendi a gostar, por causa do meu tio. Ele me trouxe da biblioteca
da escola uns livros legais de um tal de Jorge Querido, não, Amado... –
e riu de novo – uma coisa muito velha mesmo, mas eu gostei, aprendi pra
caralho...ops... desculpe o palavrão.
-- Se você vai ser atriz, deve ler muito. Deve adquirir muita cultura
para poder vivenciar os papeis que vai representar no palco ou no
estúdio com muita verdade, muita compreensão. Os livros trazem o mundo
até nós.
-- Ah... mas a Internet e os vídeos e as novelas também – retrucou ela.
-- Só que tem uma grande diferença – explicou ele – quando você assiste
a uma história, ela vem pronta pra dentro da sua consciência, mas quando
você lê um livro, é você quem cria a imagem dos personagens, da cena
descrita... Por isso nenhum livro é só do autor, mas é também do leitor.
-- Nossa! – exclamou Glorinha – que máximo,
cara! Nunca tinha pensado nisso.
Será que eu posso ser atriz e escritora também?
-- Você pode ser o que quiser ser e, com a sua determinação e
vivacidade, vai conseguir isso mesmo!
-- Agora, me conta uma coisa. O que é que um anjo como você veio fazer
aqui na nossa comunidade? Vai salvar alguém? Parar uma bala perdida, é
isso?
O anjo riu:
-- Não, não, isso é missão pros anjos da Guarda.
-- Guarda metropolitana?
-- Não Glorinha – respondeu o Anjo morrendo de rir – você não finja que
não sabe quem são os anjos da guarda.
-- Bom, eu sei. Mas tava tirando uma com a sua cara. Pensei que todos os
anjos podiam fazer o papel de anjos da guarda, oras!
-- Eu sou um anjo natalício. Um anunciador.
Você sabe, no Natal, Primeiro Chegam os Anjos.
-- Então veio pra festa da ONG da Dona Mariana e do padre Tião?
-- Não. Eu vim por você.
-- Nossa, o que é que eu fiz de errado agora?
-- Nada. Você quase sempre faz tudo certo. Eu só vim pra te contar um
segredo.
-- Ué... Um segredo? Pra mim? Criança, pobre, negra e mulher? Acho que
sou quatro vezes discriminada.
-- Só vim pra te dizer que um dos seus filhos será um grande líder
político e...
-- Ah, essa não! Meu tio diz que político nenhum presta, é tudo uma
cambada de filhos você sabe de que... Eu vou ser uma você-sabe-o-que,
então?
O anjo riu de novo.
-- Não é nada disso! Você vai ser mãe de uma pessoa muito legal, uma
pessoa que vai trabalhar pelo bem da humanidade, entendeu? Não é todo
dia que essas pessoas vêm à Terra e você precisa saber disso. Mas é um
segredo, só entre nós.
-- Olha aqui, seu anjo, é claro que é só entre nós. O pessoal vai achar
que estou louca ou drogada se eu sair por aí que um anjo desceu do céu e
veio aqui na terra pra me dizer que o meu filho...
O anjo a interrompeu:
-- Ou será uma filha?
-- Filha?
-- Nunca se sabe...
-- Ah, já tô com pena dela, coitada. Outra mulher preta... Bom, pelo
menos não vai ser pobre porque até lá eu já serei escritora, atriz e
rica... mas mesmo assim...Ninguém vai dar bola pra ela, não, seu anjo...
-- Nunca se sabe... Bom, chegou a minha hora. Fica com Deus, Glorinha.
Vou embora.
-- Ué, não vai ficar pro Natal?
-- Não pra esse. Daqui a alguns anos eu volto.
-- Prazer então em conhecer você.
Ele desapareceu e Glorinha continuou o seu caminho, subindo o morro,
agora com a certeza absoluta de que seria atriz... e mãe de alguém muito
importante.
Pra uma preta, pobre, mulher e criança até que isso vai ser um grande
negócio – pensou, satisfeita.
conto de Natal de 2014.
LEIA. |

Portinari, Menina
Sentada

C. Nascimento, Favela
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