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(Harmonia Rosales, Virgem Negra)

Ver Chamada.

A Segunda Anunciação

Conto de Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano.

 

Olhando a filhinha, recém-nascida, que dorme tranquilamente em seu berço, Maria da Glória –Glorinha, ela prefere – não pode deixar de lembrar-se do Anjo Anunciador que lhe aparecera havia 10 anos*, quando ela tinha apenas 12, e voltava da escola, subindo o morro da favela (ops... o nome certo é comunidade! – pensa.)

 

Bom, de fato, por todo esse tempo, ela jamais se esquecera dele.  Devia ser mesmo um Anjo, julgava, porque ninguém além dela pôde vê-lo e ele era translúcido, quase transparente e, quando ela tentara pegar no braço dele, sua mão passara por dentro da imagem dele, como se ele fosse uma projeção holográfica. Às vezes, Glorinha duvidava de suas próprias lembranças sobre tudo isso. Afinal, ele afirmara que tinha vindo à Terra para revelar a ela – então ainda criança – preta, pobre e mulher e, assim pensava, quatro vezes discriminada – um segredo.

 

O Anjo dissera que o sonho dela tornar-se-ia realidade: ela seria atriz de novela, escritora e rica! E teria uma filha que viria a ser alguém de muita importância para a Humanidade, alguém que faria diferença na Terra e isso seria um grande privilégio. Explicara a ela que era um Anjo Anunciador.

 

Glorinha acaricia a cabecinha da bebe e tem um risinho irônico: de tudo o que o Anjo previra para ela, a única coisa que se realizava era a filha!

 

Mais uma filha que cresceria sem pai, como ela própria crescera! Seu pai, que nunca ela chegara a saber quem era, também sumira no mundo ao saber que a mãe dela estava grávida. Exatamente como desaparecera o calhorda do Zé, seu namorado de então, ao saber da gravidez dela... Essa o Anjo não previra, afinal!

 

A condição das mulheres mudara muito pouco em duas gerações. Mulheres ainda se iludiam e acreditavam em amor quando esses eventuais namorados, com o seu, estavam apenas em busca de sexo. Mulheres ainda eram assassinadas por homens possessivos quando tentavam sair de uma relação que, para elas, não interessava mais. E eles... Não todos, é verdade –reconhece ela em pensamento—eles as usavam e caiam fora quando a responsabilidade de ser pai os assustava...

 

Sim, isso o tal do Anjo não previra... que sua filha nasceria sem pai. E sabe Deus se essa bebê, nascida agora às vésperas do Natal, estaria mesmo destinada a ter alguma importância no mundo, como afirmara o Anjo! Afinal, das três “anunciações” dele, só a filha acontecera...

 

Glória estava agora com 22 anos de idade e nada conseguira realizar de seus sonhos, ou antes, muito pouco, quase nada mesmo... Escritora ela o era, sem dúvida. No notebook tinha livros e livros que escrevera e aos quais jamais conseguira editar... Ninguém se interessava por livros, hoje em dia, muito menos quem mais deveria fazer isso: as editoras! Glória sabia que era muito mais simples e lucrativo, para as editoras, publicar livros traduzidos e já consagrados lá fora. Para um autor nacional e estreante, pediam que bancasse de 80 a 100% dos custos de edição... e ela... ela continuava pobre! Como fazer isso?

 

Pobre – refletia ela – mas menos pobre do que quando morava no morro, na favela carioca.

 

Lágrimas lhe vêm aos olhos, até hoje, quando pensa na mudança do Rio para São Paulo. Fôra uma decisão de sua mãe, depois da morte do irmão dela, havia dois anos. As lágrimas são pela morte de seu tio amado, que ensinara a ela como amar os livros, que ensinava a todos, na comunidade onde viviam, o nome “certo” de cada coisa... “Banda, não mais conjunto; Comunidade, não mais favela; população, não mais povo” – dizia ele. Entre lágrimas, sorri à lembrança de seu tio amado.

 

Seu tio fôra morto por, supostamente, uma bala perdida, num dos muitos conflitos entre a polícia carioca e os traficantes do morro. Sua morte causou inúmeros protestos, manifestações públicas de todos os moradores da favela, que o tinham como um grande sábio, um homem muito querido mesmo, pela comunidade.

 

Havia quem acreditasse que a morte dele não fora acidental. Que a bala que o atingira na cabeça não tinha nada de “perdida”. Afinal, entre os policiais que participavam da ação naquele dia fatídico estava o Romualdo, um capitão de Polícia Militar que, dias antes, discutira com seu tio num bar, quase chegando mesmo às vias de fato, porque seu tio votara em Lula, para presidente, e o policial em questão afirmava que as urnas eletrônicas tinham sido fraudadas e que o verdadeiro presidente do Brasil ainda seria o outro. Mas eram meras suposições. De fato, no fundo de seu coração, Glorinha não acreditava que um policial pudesse, deliberadamente, matar seu tio apenas porque ele votara em Lula. No entanto, como dissera várias vezes aquele seu Anjo Anunciador, “nunca se sabe...”

 

O fato é que sua mãe, profundamente triste e revoltada com a morte de seu amado irmão, decidira mudar-se para São Paulo, vindo morar com uma prima em Paraisópolis, pensando talvez que assim se livraria do domínio de bandidos sobre comunidades.

 

Glorinha protestara:

-- Mas, mãe, é aqui no Rio que está a Rede Globo, onde está a produção das novelas e eu sonho em ser atriz de novela...

 

-- Em São Paulo também tem televisão. E, ademais, ninguém mais vê TV, Glorinha! Você vive mesma com a cara enfiada no celular!

 

Em busca de seu sonho de ser atriz, Glorinha conseguira, ainda no Rio, fazer um curso numa ONG, Teatro Para todos. Até participara de uma peça, encenada num teatro popular, e sem renumeração, como figurante.

 

Depois... nada!

 

Instaladas em São Paulo, sua mãe arrumara um ótimo emprego como atendente numa loja no badalado Shopping Morumbi e Glorinha também tivera sucesso, tornando-se redatora de conteúdo para redes sociais. Assim, puderam deixar a casinha da prima de sua mãe e mudaram-se para um condomínio próximo a Paraisópolis, num apartamentozinho bonito e confortável.  Viviam bem.

 

Mas cadê as realizações dos sonhos que o Anjo Anunciador lhe prometera? Até agora... nada!

 

A bebezinha se agita no berço. Glorinha percebe que está na hora de amamenta-la. Traz a menina para o peito, sorrindo... Tão linda... Dera a ela o nome de Madalena, o amor de Jesus Christo!

 

Está amamentando quando entra uma ligação por WhatsApp no seu celular. Atende.

 

-- Maria da Glória, desculpe-me ligar hoje, em plena véspera de Natal. Sou produtora de uma rede de TV e o João, lá do Rio, da “Teatro Para Todos”, acaba de me dizer que você é a atriz que preenche os requisitos que estou procurando... Teria disponibilidade para fazer um teste na quinta-feira, 26, às 9 da manhã?

 

Glorinha olha, pela janela do apartamento, para o Céu. E, de dentro de uma estrela, pensa ver o rosto do Anjo Anunciador a sorrir para ela.

 

“O que são 10 anos, afinal, para um Anjo? Ele estava certo, percebe, ele estava certo! Vou passar no teste, vou trabalhar numa novela de TV...” Sentindo que, algum dia, realizaria o sonho, também, de ver um dos seus livros publicado, acaricia a filha, tão pequenininha, que ainda suga-lhe o peito, sente que, talvez por ser Natal, a Esperança volta a dominar sua vida.

 

“Uma coisa de cada vez .”

 

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