voltar para a página-site de contos e artigos da escritora Isabel Fomm OU voltar para a página do Livro Todas as Mulheres São BRuxas
A Casa e O Vestido Conto de Isabel Fomm Vasconcellos, do Livro “Todas as Mulheres São Bruxas”
|
|
Amélia e Wanda Gonçalves de Almeida, 1916 - respectivamente minha avó e minha mãe. |
" Numa encruzilhada, encontrou uma velha senhora, muito elegante e bem cuidada, toda vestida de preto, com roupas do começo do século XX." |
Sim, a casa tinha vida . Foi percebendo aos poucos, nos primeiros dias da mudança. Estava entusiasmada, aquele seria o seu primeiro imóvel próprio. Trabalhara muito, estudara muito, lutara muito contra todos os preconceitos profissionais que ainda cercam as mulheres, até conseguir alcançar a sonhada promoção dentro do banco. Agora, acabara de fechar negócio com aquele apartamento de cobertura que ela sempre chamava de “a casa”, pois era assim mesmo que parecia: uma boa casa térrea, só que no vigésimo terceiro andar do edifício antigo, no centro da cidade de São Paulo. Ninguém queria morar no centro, mas muita, muita gente morava. Por vários motivos: os prédios eram ótimos, construídos em sua maioria nos anos 40 e 50 do século XX, apartamentos amplos, de grandes janelas e pé direito alto, cômodos grandes e preços muito acessíveis, se comparados às áreas consideradas “nobres” pelo mercado imobiliário. Na verdade pagara uma ninharia por aquela enorme cobertura, com terraço, três quartos, sala e sala de jantar, uma bela cozinha, dois banheiros e até um pequeno pátio, que ela inundara de plantas. Comprara também alguns novos móveis, já que vinha de um pequeníssimo apartamento alugado no bairro de Moema, onde morara nos últimos dez anos.
Levara mais de três semanas para colocar tudo em ordem em sua nova casa. Estava entusiasmada e feliz. Pôde, afinal, acomodar bem os seus livros em lindas estantes que comprara, acomodar suas roupas em largos armários embutidos que pertenciam ao apartamento e ocupara um quarto para si, no outro fizera um lindo aposento de hóspedes e no outro um sofisticado e bem equipado escritório, do qual, graças à Internet, podia se comunicar com o mundo.
|
Foi a velha faxineira, que a atendia havia muitos anos, quem primeiro reparou nos estranhos fenômenos que a fariam concluir que aquela velha casa tinha vida própria. - Dona Mariana, parece que esse apartamento não gosta de aspirador de pó.
Ela rira: - Como assim, Erundina?
- Veja bem, é uma coisa estranha. Eu passo o aspirador no chão e não fica limpo. Não fica, Dona Mariana. Depois eu passo a vassoura e fica tudo limpinho, isso sem contar que sai um monte de poeira que o aspirador já deveria ter tirado. Mas parece mesmo que esse apartamento não gosta do aspirador...
- Ora – respondera ela – deve ter algum defeito no aspirador. Algum entupimento nos tubos.
- Também pensei nisso, Dona Mariana. Limpei os tubos do aspirador e ele limpa maravilhosamente os móveis ou os tapetes, mas quando eu o uso no chão, o chão continua sujo. Só consigo limpar com a vassoura. Quando eu uso a vassoura, aí, sim, fica limpo.
Mariana não deu muita importância à conversa da faxineira, que achou meio sem sentido. Estava ainda muito ocupada com a arrumação das coisas, já que fazia apenas três dias que se mudara. Naquela mesma tarde foi, com a faxineira, olhar as muitas coisas que tinham sido abandonadas pelos antigos moradores e que tinham sido guardadas no quarto de empregada. A imobiliária lhe dissera que poderia retirar aqueles objetos, já que nenhum dos herdeiros se interessara por eles, mas Mariana sentiu uma forte atração por eles, imaginou que, examinando-os, poderia ter alguma ideia do tipo de gente que habitara aquele imóvel, poderia saber alguma história das pessoas que viveram ali antes dela. E dissera à corretora: - Se ninguém quer essas coisas, não se preocupe, eu mesmo me encarrego de jogá-las fora. A moça deu de ombros e esqueceu o assunto. Mariana também esquecera, naqueles dias de decoração e mudança, do antigo baú que mandara colocar no aposento de empregada. Mas, naquela tarde, sentiu um irresistível impulso de ir mexer naqueles objetos esquecidos. E foi, com a empregada, que agora resmungava outras coisas estranhas:
- Dona Mariana, é muito esquisito. Sabe aquela roupa que eu tirei agora há pouco da máquina?
- Sei, sei. O que é que tem?
- Bom, a senhora sempre quer que eu pendure suas camisas e vestidos nos cabides, para secarem. Mas o apartamento não quis que eu fizesse isso.
- Como o apartamento não quis?!
- Eu não consegui. Cada vestido ou camisa que eu pendurava, caía. Fiquei um tempão tentando colocar os vestidos e camisas nos cabides, mas eles sempre caíam. Não teve jeito. Quando os pendurei simplesmente no varal, eles ficaram lá.
Mariana já estava abrindo o baú, dominada por uma súbita e irresistível curiosidade e também não deu muita atenção ao que a empregada dizia, preferiu pensar que ela era teimosa e não queria de fato pendurar as roupas nos cabides. Um cheiro de mofo atingiu suas narinas quando ela abriu o baú e, nesse instante, o telefone tocou. Foi atender. Era o diretor do banco, seu chefe, pedindo a ela que fizesse a gentileza de antecipar sua volta das férias em uma semana, porque houvera um pequeno problema com seu assistente e ele tivera que demiti-lo.
- Mário, você demitiu o meu assistente sem falar comigo? – perguntou ela, sentindo-se traída.
- Não teve jeito, Mariana. Ele estava desviando centavos dos correntistas, pelo computador. Foi justa causa. Agora, sem ele, estamos descobertos e precisamos que você volte na segunda, no máximo.
- Mas, Mário – retrucou ela – ainda não terminei de arrumar a minha nova casa! – protestou ela, que imaginara mais uma semana apenas curtindo seu novo ambiente.
Mas logo se recompôs: - Bom, está bem. Se é preciso, eu vou, é claro.
- Obrigado pela compreensão. Nos vemos na segunda – disse ele, e desligou.
Quando entrou na cozinha, a empregada lutava com o microondas novinho. - Não funciona, Dona Mariana.
- O que houve?
- Não sei. Eu coloquei a carne para descongelar, apertei os botões certos e não adianta, nada acontece. Mas, agora há pouco, eu cozinhei as batatas nele e deu tudo certo.
- Deixa eu ver. Pode ser que a função de descongelar esteja com defeito.
Mariana executou as operações necessárias e o micro ondas imediatamente começou a descongelar a carne. - Ué, o que será que eu tinha feito de errado? – perguntou Erundina.
Mariana deu de ombros. Entrou no quarto de empregada onde o velho baú jazia aberto e sentiu, de repente, um perfume forte e adocicado. Subitamente percebeu que perdera a vontade de mexer naquelas velharias; depois do telefonema de Mário sua mente estava ocupada com aquela estranha atitude de seu assistente, que sempre lhe parecera um sujeito muito honesto e de boa formação. “Bem, pensou ela, amanhã é sábado e eu terei muito tempo para examinar as coisas do baú” e foi tomar banho e se preparar para o pequeno jantar que a empregada deixaria pronto para ela: bifes de panela com batatas (que ela adorava) e ia abrir um bom vinho francês para comemorar sua primeira refeição na nova casa que, afinal, estava completamente arrumada e pronta.
Quando saiu do banho, Erundina veio falar com ela: - Dona Mariana, essa casa é mesmo muito estranha.
- O que foi, agora? – perguntou ela já impaciente.
- Lembra daquele vaso de azaleias que a senhora tem e sempre se orgulhou de conseguir fazê-lo florir?
- O que é que tem?
- Eu fui lá fora e, embora já esteja escuro, está acontecendo uma coisa muito esquisita.
- Acontecendo o que, criatura de Deus?
- Ele está cheio de botões, assim de repente, hoje de manhã não tinha nenhum botãozinho.
- Você se enganou, Erundina. Não pode ser. A azaleia floresce em julho e nós estamos em novembro.
- Venha ver, então, a senhora mesma. Eu digo que ele está cheio de botões.
E estava. Mariana ficou olhando, atônita. Examinou a planta, eram sem dúvidas botões e já bem crescidinhos. Mas, como seria possível, em novembro? E como teriam aparecido assim, tão rapidamente?
Naquela noite, depois de se deliciar jantando sozinha e tendo tomado uma garrafa de vinho inteirinha, ouviu um pouco de música, foi para a cama levando um bom livro, que estava devorando (A Mãe da Mãe da Mãe das Suas Filhas, de Maria José Silveira) e adormeceu sobre o volume. Sonhou que estava numa fazenda cheia de flores, onde os pássaros nasciam das árvores, como se fossem seus frutos, e ela caminhava, ao lado da grande casa da sede da propriedade, encantada com o espetáculo de tantas e tantas flores imensas e diferentes e tonta com o maravilhoso canto daqueles pássaros que brotavam de árvores enormes, frondosas e lindas. Numa encruzilhada, encontrou uma velha senhora, muito elegante e bem cuidada, toda vestida de preto, com roupas do começo do século XX.
- Mariana – disse a estranha e aristocrática senhora – sempre quisemos que você, afinal, chegasse.
- Mas onde estou? – perguntou ela no sonho.
- Você está na Fazenda Azul. Aqui sempre é o mês de julho e as azaleias jamais deixam de florescer.
Mariana acordou assustada e perfeitamente sentada na cama. À luz do abajur todo o quarto parecia estranhamente azulado e ela sentiu o perfume adocicado que sentira à tarde a invadir-lhe as narinas. Calçou os chinelos e sentiu um arrepio de frio. Frente fria em novembro? pensou. Abriu o armário de roupas, já tremendo de frio e vestiu um robe. Seus passos a levaram até o quarto da empregada onde o baú, aberto, exalava uma mistura de cheiros: mofo e perfume. Sentou-se e começou a retirar de dentro do baú os objetos empoeirados. Livros. Álbuns antigos de fotografia. Tudo muito cheio de pó. Pegou um perfex e limpou a superfície da capa de um velho e grande álbum. Abriu-o. Fotos do começo do século, algumas com a assinatura do estúdio Tucci, um fotógrafo que, ela sabia, fora famoso por retratar a elite paulistana do começo do século XX. Como alguém poderia não se importar, dessa maneira, com a memória familiar? Eram lindas e raras fotografias e Mariana imaginou porque os herdeiros daquele clã, que lhe venderam a cobertura, não teriam tido sequer a curiosidade de examinar o que havia sido deixado ali? Ficou quase uma hora, ali sentada, examinando velhas fotos de pessoas desconhecidas, fascinada pelas roupas que usavam, pela excelente enquadração e iluminação de cada um daqueles retratos. Mas estava com muito frio e resolveu deixar o resto da inspeção para o dia seguinte. Antes de dormir, colocou um cobertor sobre a roupa de cama, pois a noite parecia realmente gelada.
Manhã seguinte, acordou ensopada de suor. Eram apenas seis horas da manhã mas o sol entrava por uma fresta da cortina e a despertou. Estava muito quente, como nos últimos anos acontecia nessa época do ano, em São Paulo, cidade que há muito se esquecera da fria umidade das garoas.
Mariana levantou-se e foi direto para o chuveiro. Estava se sentindo suja, deveria ter transpirado muito no sono pesado e sem sonhos, debaixo daquele cobertor. Depois foi para a cozinha preparar o café. Colocou o pó na cafeteira e a ligou, mas a máquina não funcionava. O que teria havido? Pegou uma caneca, colocou água, disposta a fazer o café da maneira tradicional. Quando a água ferveu e ela estava pronta a tirá-la do fogo, subitamente o fogão se apagou. Despejou a água sobre o coador e abriu a geladeira, enquanto passava o café, para pegar uma fruta. A geladeira estava escura. Estarei sem energia? – pensou. Apertou o interruptor de luz e... nada. Saiu pela casa, apertando interruptores, olhando aparelhos eletrônicos. Estava mesmo sem energia. Abriu a porta da frente e checou o elevador. Funcionava. Droga – imaginou – o eletricista deve ter feito alguma besteira. Foi à caixa de luz. Todos os disjuntores estavam em ordem, não tinham caído, mas, mesmo assim, não havia energia. Tentou o interfone. Também não funcionava. Decidiu não se deixar irritar por um detalhe desses. Tomou o café, comeu suas frutas, vestiu-se e desceu para procurar ajuda. O zelador subiu com ela para verificar onde poderia estar o defeito, mas quando entraram no apartamento estavam todas as luzes acesas e os relógios dos aparelhos eletrônicos em ordem e marcando a hora certa.
- Bom – disse o zelador – pode ter havido uma queda de energia, mas é muito estranho porque os disjuntores não caíram. A senhora me avise se acontecer de novo. Talvez haja algum mau contato no sistema de alimentação que traz a energia para a cobertura.
Mariana trabalhou algumas horas no computador, verificando as contas e pondo coisas em ordem, entrou na Internet, checou suas mensagens, respondeu a algumas e lá pelas 10 e meia da manhã, resolveu voltar ao tal baú. Quando passou pelo corredor, notou um pequeno monte de pó junto ao rodapé da porta da cozinha. Ué, como tinha sido que a Erundina, tão eficiente, tivesse esquecido de limpar aquele monte? Foi à área de serviço e voltou com o pequeno aspirador manual. Dirigiu-o para o pó, mas nada aconteceu. Checou o bico do cano com a mão: estava puxando. Mas não aspirava aquele pó de jeito nenhum. Lembrou-se do que a empregada dissera sobre o aspirador grande. Voltou com uma pá de lixo e uma vassourinha e recolheu o pó.
Então pensou que a casa tinha um jeito específico de fazer as coisas. Um jeito ao qual estaria acostumada. Mas pela lógica desse pensamento, se a casa não gostava de aspiradores, cafeteiras ou micro ondas, então os eletrônicos e computadores também não deveriam funcionar... Bah! Estou é devaneando, pensou Mariana. Vou colocar uma música e ir de novo ao velho baú. Mal acabou de decidir isso e aquele perfume adocicado voltou a invadir-lhe as narinas. De onde viria? Foi ao equipamento, colocou o CD do Caetano, aquele que ele gravara na Itália e que ela não se cansava de ouvir, em homenagem à Fellini e Giulietta Masina. Mas, logo na primeira faixa, o CD começou a pular. Bateu os olhos na estante de CDs e sentiu uma irresistível vontade de ouvir o Pavarotti cantando velhas canções populares italianas. O disco estava bem ali, à altura de seus olhos. Trocou o Caetano pelo Luciano e tudo funcionou perfeitamente. Arrastou o velho baú para o escritório, onde também ficava seu equipamento de som, e, de pano de pó na mão, começou a desencaixotar os objetos. Em volta dela, o chão ficou repleto de coisas: uma pilha de grandes álbuns de fotografia, uma pilha de livros jurídicos muito antigos, alguns velhos cadernos com lindas capas de tecido e um estranho vestido preto, de seda, que parecia ser do começo do século e a fez imediatamente lembrar-se dos trajes da mulher que lhe aparecera em sonhos.
Apenas um vestido, que estivera cuidadosamente dobrado e que parecia, ao contrário de tudo o que estava no tal baú, muito, muito limpo. Mariana fitou longamente o traje e, num impulso, tirou o agasalho esportivo que vestia e colocou o preto vestido no corpo. Foi até o espelho e estava perfeito! Parecia ter sido confeccionado sob medida para ela. O tecido brilhava, o caimento era impecável e Mariana começou a rir, de pura alegria. Voltou para o escritório e continuou a examinar os álbuns de fotos. Iam desde o começo do século até meados dos anos 1950 e, algumas horas depois, ela já identificava cada personagem daqueles, desde crianças, acompanhando seu crescimento. De repente, topou com uma fotografia de uma velha senhora, vestindo aquele exato vestido negro que agora ela própria vestia e a reconheceu, com um choque: era a mulher de seu sonho. Não, não – pensou – foi apenas um sonho e eu agora estou transferindo a imagem dessa mulher para a lembrança do sonho. As fotos estavam presas por cantoneiras, como se usava nos álbuns antigos. Ela retirou cuidadosamente a fotografia e viu, em seu verso, a inscrição: Maria Amélia, 1914. Passou a examinar cada verso de cada foto e quase todas tinham nomes e datas. Sentou-se ao computador e começou a criar uma árvore genealógica com os dados das fotos. No fim do dia, tinha a história da família na tela de sua máquina. Maria Amélia era a matriarca. Tivera quatro filhos: Turíbio, Ariosto, Desdemuna e Rosmunda. Todos com nomes de personagens clássicos. Mas não havia sinal de marido. Nenhuma foto, nada. Foi então que ela abriu um dos cadernos. Era uma espécie de contabilidade doméstica. Examinando seus dados e datas, descobriu que Maria Amélia havia se mudado, de um casarão nos Campos Elíseos, para aquele apartamento no centro da cidade em 1945. Deveria estar, então, com quase setenta anos. Mariana foi acumulando todos os dados da família em seu computador. O dia inteiro passou e ela nem percebeu.
Lá pelas nove da noite ela sabia, por exemplo, através do exame dos registros das contas de Maria Amélia, que sua renda havia diminuído drasticamente nos anos 30, depois da quebra da bolsa de Nova Iorque. Havia melhorado na década de 40, vindo a cair novamente na época da Segunda Guerra. No registro de entrada de dinheiro, figurava muitas vezes o nome de cada filho, significando que a família a sustentava, embora ela também tivesse uma renda, que em muitos anos foi considerável, de seu próprio trabalho. Ela fora modista, por anos e anos e, ainda segundo os registros contábeis, fizera mais de cinco mil vestidos entre 1931 e 1954. Havia, porém, uma outra fonte de renda, a maior de todas e a que mais diminuiu nos períodos difíceis, identificada apenas pela letra G. Os quatro filhos de Maria Amélia haviam nascido na década de 1910. Mas era estranho que não houvesse nem fotos nem referências aos netos. É claro que ela deveria ter netos. Mas nenhuma referência a esses? Só havia fotos e dados relativos aos quatro filhos. Desses, quem mais contribuía para o orçamento da Maria Amélia era Rosmunda. Mariana imaginou que ela deveria ter feito um bom casamento. Uma curiosidade muito grande fez com que Mariana passasse o dia todo a examinar os álbuns de fotos e os cadernos, ricamente encapados com tecido, onde Maria Amélia fizera, por décadas, a contabilidade de sua vida. Descobriu que ela tivera alguns empregados, que se resumiram a alguém chamado Adélia, depois que ela se mudara, em 1945, para o apartamento. Mariana imaginou ainda que certamente teria comprado o apartamento de um de seus netos, ou até mesmo bisneto. Foi examinar a escritura que recebera da imobiliária. Comprara de alguém chamado Antonio Luis. Mas não havia como saber se esse ex proprietário havia herdado ou comprado o apartamento que antes pertencera à Maria Amélia. O sobrenome era diferente e ela não tinha, pelo material que examinara, maiores pistas.
Foi aí que notou os livros jurídicos, que ainda nem vasculhara. Abriu um deles e havia um nome manuscrito na primeira página : Antonio Luís G. de Carvalho. Seria este senhor o misterioso G da contabilidade de Maria Amélia? E seria o Antonio Luis que lhe vendera o apartamento, seu descendente? Não se chamava ele Carvalho, mas poderia ser descendente de uma filha, ou neta, e trazer por isso o nome da família do pai ou do avô. Rapidamente descobriu que todos os livros jurídicos eram desse tal G. de Carvalho. Entrou na Internet à procura de lista de ex-alunos das faculdades de direito de São Paulo, mas nada encontrou. Procurou também um site das famílias chamadas Carvalho e... nada! Passava das onze da noite quando Mariana se deu conta de que não se alimentara o dia todo e que ainda trazia no corpo o impecável vestido negro de Maria Amélia. Todos os dados que encontrara terminavam em 1954 e Mariana assumiu que a sua nova amiga do passado falecera nesse ano. Fitou longamente a foto de 1914 e tentou imaginar quantos anos teria ela nessa época. Vinte e cinco? Trinta? Impossível precisar. Imaginou-lhe a data hipotética de 1880 por nascimento. Se realmente assim fosse, ela teria 65 anos quando se mudou para aquela cobertura e 74 ao falecer.
Mariana guardou todas as coisas de volta no baú, agora tudo limpo e livre do cheiro de mofo. Tirou o vestido, não sem antes fitar-se longamente, de corpo inteiro, no espelho do armário do quarto. Sentiu pena de tirar o vestido e novamente estranhou o fato de que ele estivesse absolutamente limpo, quando todas os outros objetos do baú não estavam. Deixou o vestido sobre a cama e foi para a cozinha esquentar alguma comida congelada. Retomou o livro que estava lendo, abriu outra garrafa de vinho, comeu, botou a louça suja na máquina de lavar pratos e foi dormir. Quando entrou no quarto, sentiu novamente aquele perfume adocicado, invadindo todo o ambiente, muito forte. Abriu a janela, tentando descobrir se, afinal, aquele estranho perfume viria de fora da casa. Mas não vinha. Pendurou cuidadosamente o vestido de Maria Amélia no seu armário de roupas e foi dormir.
Novamente estava, em sonhos, naquela fazenda encantada e procurava desesperadamente pela mulher que encontrara e que, agora, ela estava certa de que fosse Maria Amélia. Entrou na sede da fazenda e todos os ambientes eram luxuosos e bem decorados. Nas paredes, retratos pintados que reproduziam as muitas fotos que vira nos álbuns antigos. Chegou a uma cozinha enorme onde inúmeros negros trabalhavam. Panelões de comida fumegavam num enorme fogão à lenha. Perguntou a eles:
- Onde está aquela senhora de preto?
Nenhuma resposta. Foi de um a outro, sempre perguntando, mas eles a ignoravam, como se não a pudessem ver. No sonho, Mariana sentia uma incrível urgência de encontrar aquela mulher. Saiu da cozinha pela porta dos fundos e deu de cara com uma enorme touceira, toda feita de azáleas, de todas as cores. Sentiu então, com violência, aquele perfume adocicado a inundar toda a paisagem. Acordou, ainda com o perfume nas narinas. Seu quarto parecia impregnado daquele odor. E estava novamente com muito frio. Bateu os olhos no relógio: quatro e meia da manhã. Sem saber bem porque, vestiu o robe e saiu para o pátio da cobertura. Havia névoa e ela, tiritando de frio, se pôs a caminhar entre os seus muitos e queridos vasos. Na escuridão, viu as flores da azaleia, completamente abertas, vermelhas. Acendeu as luzes do pátio para poder ver melhor. Era incrível. Nunca aquele vaso florira dessa maneira, e ainda mais completamente fora da época. Azaleias em novembro? Frio em novembro? O que estaria havendo? Lembrava-se que o dia estivera muito quente mesmo. Como poderia, agora, estar garoando e este frio?
Foi até a amurada do grande terraço e olhou as ruas lá embaixo. O que acontecera com a iluminação? Era pálida e amarelada. Onde estavam os postes das luzes de mercúrio? Avistou um cartaz iluminado: “O Canto da Cotovia, em cartaz no Teatro Maria Della Costa. Prêmio Saci 1954 de melhor atriz para Maria e de melhor autor, para Rachel de Queiroz. Quintas, 21 horas. Sábados e Domingos, às 18 e às 21 horas”. Então reparou nos carros estacionados. Ainda estou sonhando, pensou. Pois tinha à sua frente todo o cenário do centro da cidade de São Paulo como deveria ter sido em 1954. Alguns edifícios traziam a flâmula do quarto centenário da cidade e os cartazes de propaganda vendiam produtos que ela nem mesmo chegara a conhecer, de antes do seu próprio nascimento. Viu nomes de lojas desconhecidos para ela, como Ducal, Galeria Paulista... E os carros? Poucos carros, quase todos escuros... Não, só podia ser sonho. Ouviu a voz da senhora da Fazenda Azul: “Aqui sempre é julho”.
Tremendo de frio e de medo, voltou correndo para dentro do apartamento, temendo já encontrá-lo com outros móveis, outra decoração...Mas estava tudo em ordem. Era a sua casa. Acendeu todas as luzes, foi ao banheiro, lavou o rosto. Estava acordada. Beliscou-se. Temia voltar lá fora e olhar a paisagem do passado. Deve ter sido uma alucinação... Mas era tão real! Ligou o computador e foi pesquisar na Internet, buscou por uma peça de teatro chamada O Canto da Cotovia e descobriu que essa peça ganhara de fato o prêmio Saci, em 1954.
Sem dúvida, concluiu Mariana, eu tive uma visão de 1954. Talvez Julho de 1954. Sentiu-se incomodada, de repente, pelo pesado robe que vestia. Estava fazendo, de novo, calor. Criou coragem e saiu para o grande terraço. A azaleia continuava florida, mas a paisagem lá embaixo era a atual. Suspirou aliviada. Apagou as luzes todas, desligou o computador e voltou para a cama, ansiando sonhar de novo com a Fazenda Azul.
Na manhã de domingo acordou pensando que tudo não passara mesmo de um sonho. Mas seu computador registrava a pesquisa que fizera de madrugada e lá estava a tal peça do Prêmio Saci de 1954. E, lá fora, em torno do vaso de azaleias, todas as flores jaziam murchas no chão.
Mariana marcara um almoço para que seus pais viessem conhecer sua nova casa, da qual estava tão orgulhosa e a empregada chegou às dez horas. Seus pais, ao meio dia e trinta. Convidara ainda duas amigas queridas, uma delas com o marido e um amigo íntimo seu, que era padre católico e com quem fizera amizade há muitos anos, ainda no colégio. Pensava em comentar com os seus visitantes os estranhos fatos que vivenciara e um pouco da história da antiga moradora, falar do lindo vestido e até mostrar a eles algumas fotos e o próprio vestido negro. Mas a cada vez que ia se referir ao assunto, alguém começava uma nova conversa e assim passou-se o almoço, toda a tarde e, quando Mariana se deu conta, todos tinham ido embora e ela nada dissera. Quando se viu novamente sozinha, resolveu sair.
Mariana sempre fora uma pessoa extremamente prática, jamais tivera ou se importara com experiências místicas ou sonhos. Orgulhava-se de ter boa cabeça para matemática e para as ciências lógicas, diferentemente de suas amigas que inclinavam-se mais às questões humanas e acreditavam em horóscopo. Não ia se deixar apanhar numa armadilha obsessiva por uma personagem que morara sim, naquela casa, antes dela e nem ia prosseguir com aquela maluquice de tentar descobrir mais coisas sobre uma família com a qual não tinha nenhum vínculo. Fora apenas curiosidade e já passara, concluiu ela em pensamentos. Assim, ligou para uma amiga e resolveu sair.
Segunda feira de manhã retomou a sua rotina de trabalho. A sede do banco onde trabalhava ficava no centro da cidade, bem próxima a sua nova casa e ela resolveu ir a pé. Trabalhou normalmente, saiu para almoçar com o diretor. No meio da tarde, estava completamente concentrada na tela de seu computador, em seu escritório, quando aquele adocicado perfume a atingiu.
Levantou-se, perturbada e resolveu ir dar uma volta. No térreo do edifício havia uma agência do banco e ela caminhou entre as mesas dos gerentes, cumprimentando a todos com um aceno de cabeça, quando reparou num velho senhor, muito elegante, sendo atendido por uma das gerentes da agência. Aproximou-se discretamente e bateu os olhos na tela do computador da gerente. “Correntista: Antonio Luis Turíbio G. de Carvalho Filho”. Quase desmaiou. A gerente perguntou se ela estava bem.
- Sim, estou. Foi apenas uma súbita tontura.
- Mariana, disse a gerente, quero que conheça o Sr. Antonio Luís Turíbio de Carvalho, titular de uma das contas mais antigas de nosso banco. Sr. Antonio, essa é Mariana da Silva, nossa gerente geral.
O homem levantou-se para cumprimentá-la. Teria ele uns 80 anos de idade, mas ainda trazia uma face bem delineada e seus olhos exprimiam jovialidade. O porte era atlético e o corpo, esguio e esbelto.
- Encantado, senhorita.
Contrariando seus hábitos de conduta profissional, Mariana disse:
- Creio, meu caro senhor, que eu, por coincidência, acabo de adquirir um imóvel que já pertenceu à sua família.
- É mesmo? E que imóvel é esse?
- É uma cobertura na Avenida São Luiz.
Uma sombra passou pelos olhos do homem. - Sim, é verdade. No edifício Santa Rosa, pois não?
- Esse mesmo.
- Minha falecida mãe morou lá. Mas morreu em 1954 e o deixou, em testamento, para um de seus sobrinhos. Mas, nos últimos anos, creio que esteve alugado ou mesmo fechado. Nunca mais, desde a morte de minha mãe, estive nesse apartamento. E a senhorita está contente com a aquisição? Vai morar lá?
- Na verdade estou morando há três dias. E estou muito feliz.
- Minha mãe também foi muito feliz nesse imóvel – disse ele com um suspiro.
- De fato é uma agradável coincidência encontrá-lo. Talvez o senhor se interesse em saber que encontrei no apartamento um velho baú que creio ser da sua família. A corretora da imobiliária me disse que o antigo dono não tinha interesse naqueles objetos que lá estavam, mas eu, antes de me desfazer dele, o abri e vi que há alguns livros e também álbuns de fotografias. O senhor teria algum interesse nesses objetos?
- Oh, mas é claro! – exclamou ele. – Eu jamais poderia imaginar que ainda houvesse alguma coisa da família nesse apartamento. Afinal, já se vão mais de cinquenta anos da morte da minha mãe.
Mariana sentiu voltar todo aquela curiosidade que a fizera passar o dia inteiro pesquisando a história de Maria Amélia e, num impulso, disse:
- Olhe, senhor Antonio, são quase cinco horas e eu vou sair do trabalho direto para casa. Quando o senhor terminar com a gerente, se quiser me acompanhar até em casa, posso servir-lhe um café ou um aperitivo e o senhor poderá examinar os objetos do baú, porque afinal ele lhe pertence por direito, não é verdade?
- Ah, mas eu não quero incomodar.
- Será um prazer. E, assim, o senhor verá novamente aquele que foi o lar de sua mãe e eu prometo tratar muito bem dele...
- Não tenho a menor dúvida. E, se realmente não for incômodo, eu a acompanharei de bom grado.
A cobertura que Mariana comprara fora um bom negócio também porque grande parte daquele edifício já não se destinava a residências. Muitos escritórios haviam se instalado ali e, no térreo, funcionava uma sofisticada agência de viagens. Antonio Luis comentou, quando entraram no prédio:
- Cinquenta anos é muito tempo! Tudo aqui agora é tão diferente...
Entraram no apartamento, Mariana deu ordem à empregada para preparar alguns canapés, já que, no caminho, ele dissera que aceitaria uma dose de uísque. Serviu-o, pediu licença, foi guardar sua pasta e, quando voltou à sala, ele disse:
- Sabe, Mariana, posso chamá-la de você, pois não?
- É claro.
- Afinal você poderia ser minha neta. Mas eu ia lhe dizer que seu apartamento está muito lindo e bem decorado, muito diferente das minhas lembranças do tempo de moço. No entanto, aquela parede ali, onde você colocou o órgão eletrônico, está muito parecida com o que era quando minha mãe morava aqui. Onde está o órgão havia um piano de armário, minha mãe arranhava nela sua músicas prediletas e a disposição dos quadros, a mesinha, a poltrona, era tudo muito parecido. Claro que o estilo dos móveis era outro, mas a disposição era exatamente a mesma!
- O senhor me disse, lá no banco, que sua mãe foi muito feliz aqui. Ela vivia sozinha ?
- Sim, minha mãe mudou-se para cá em 1945. Ela e a sua antiga empregada, Adélia, que ficou com ela até o dia de sua morte. Foram nove anos muito tranquilos para a minha mãe pois nós, seus filhos, estávamos vivendo dias relativamente prósperos e pudemos proporcionar-lhe o conforto que nem sempre ela teve. Antes morávamos todos na velha casa dos Campos Elíseos, que também era da família, crescemos ali, mas tivemos tempos duros em que minha mãe teve que costurar para prover o nosso sustento.
Mariana ajeitou-se no sofá, morrendo de vontade de perguntar sobre o pai dele, estranhamente ausente dos álbuns de fotos, mas, justamente por isso, sem coragem para fazê-lo. Ele olhou direto nos olhos dela.
- Sabe, minha mãe nunca se casou com meu pai. Quando nós éramos crianças, isso era um grande problema. A sociedade não aceitava filhos bastardos. Mas hoje em dia, depois de anos de análise e diante dos novos costumes vigentes, encaro esse fato com tranquilidade. Nos anos trinta meu pai se mudou com a família dele para a Colômbia. Ele foi um grande jurista, mas abandonou o fórum para dirigir uma fábrica de bicicletas que teve tanto sucesso que abriu filiais em vários países da América. Minha mãe era a sua amante, a “outra” como se dizia então. Pouco vimos o nosso pai, mas ele sempre nos amparou, mesmo em tempos difíceis, como no tempo da guerra, a segunda guerra, você sabe.
Nesse momento a empregada entrou na sala trazendo o baú e o depositou ao lado do sofá. Antonio Luis levantou a tampa e exclamou: - Mas está tudo tão limpo aqui dentro!
- Eu limpei – disse Mariana e continuou – e se me permite ser sincera, não resisti à curiosidade e olhei algumas fotos. Espero que você não se importe.
- Não, é claro que não – disse ele, já com a atenção voltada para um dos álbuns que abrira.
- Veja, Mariana: esse aqui sou eu...
E ficaram, os dois, olhando as velhas fotos do álbum, como se fossem íntimos e da mesma família. Quando chegaram à foto de Maria Amélia com o tal vestido, ele disse:
- Ah, minha mãe adorava esse vestido. Foi ela mesma quem o fez e o guardou por décadas... Onde terá ido parar? Nós o procuramos quando ela morreu, para vestir nela, mesmo que não servisse perfeitamente pois ela estava mais gorda, mas pensamos que ela gostaria de chegar ao outro mundo com ele.
- Está no meu armário.
Antonio olhou espantado para ela.
- Sim, o vestido estava guardado ai no meio dessas coisas e eu o pendurei no meu armário, porque não pretendia jogá-lo fora. É um lindo vestido e em perfeito estado.
- Gostaria de vê-lo. Mariana levantou-se e foi buscar o vestido.
Antonio pegou a peça como se fosse uma relíquia, acariciou o macio tecido, os olhos marejados de lágrimas.
- Mas está lindo! Novo e limpíssimo. Você o lavou?
- Não. Ele estava cuidadosamente dobrado e envolto em papel de seda.
- Está até perfumado! E parece o seu perfume.
Mariana corou. - Na verdade, Antonio, eu sou mulher e sabe como são as mulheres, eu fiquei encantada com esse vestido e...
- Você o vestiu?
Ela balançou a cabeça numa afirmativa.
- E serviu?
- Sim, perfeitamente.
- Mariana, você está sendo muito gentil comigo, me recebendo aqui, se importando com as minhas velhas lembranças... nem sei como dizer isso, mas seria pedir demais que o vestisse para mim?
Mariana sorriu: - Com prazer!
Voltou minutos depois, deslumbrante, dentro do vestido. Antonio deixou correr as lágrimas: - Perdoe mais essa tolice de velho, Mariana. Mas você ficou muito parecida com a minha mãe, no vestido dela! Parece que voltei ao passado.
Mariana deixou-se cair no sofá e, de repente, começou a contar tudo, tudo a ele: o sonho, o dia que passara tentando recompor a história de Maria Amélia, a estranha visão que tivera de 1954. Levou-o até o computador e mostrou-lhe tudo o que fizera com os dados contábeis e os dados das fotos. Ele sorria, feliz como um garoto. Disse, por fim:
- Mariana, foi Deus quem pôs você nesse apartamento. Eu sempre fui um intelectual, distante de Deus, agnóstico, eu dizia com orgulho. Mas agora que sou um velho e que a morte está muito próxima de mim, eu admito simplesmente que existe uma inteligência superior que governa o mundo. Minha mãe sofreu muito porque as pessoas a consideravam não só pouco mais que uma prostituta, já que tinha filhos e amante, mas também uma bruxa. Muitas vezes ela predisse fatos da vida de suas freguesas de costura e nem sempre essas previsões eram benvindas. Ela era ainda considerada uma grande jardineira. Suas plantas cresciam e floresciam, a despeito das condições climáticas ou de estação. Tinha, como se diz hoje em dia, o dedo verde. Causava inveja às amigas e conhecidas. Na cozinha era também imbatível. Seus bolos eram mais fofos. Suas receitas davam mais certo do que as receitas das outras mulheres. E, apesar de termos atravessado tempos economicamente difíceis, nunca nos faltou o pão de cada dia. Como se alguma coisa misteriosa viesse sempre em seu socorro, quando ela mais precisava.
Sei que meu pai sempre se comunicava com ela, por carta e mais tarde por telefone, para pedir seus conselhos nos negócios. Ela era dona de uma intuição poderosa. Sempre acertava na escolha dos melhores caminhos. Jovem, eu desprezava todos esses dons maternos, julgando tudo apenas superstição e ignorância. Mas hoje sou mais sábio. Escute, esse vestido é seu. Quero que fique com ele, já que veste tão bem em você.
- Mas Antonio...
- Não tem mas nem meio mas. Minha mãe escolheu você para morar aqui. Não sei como nem porque mas estou certo disso. As histórias que você me contou, a fazenda onde existiam tantas flores e até a azaleia... Minha mãe tinha vasos de azaleias de todas as cores e dizia que elas eram a flor símbolo dessa cidade que ela amava. Fiquei impressionado quando, anos mais tarde, a prefeitura municipal escolheu a azaleia como a flor de São Paulo. E estou impressionado agora, com tudo o que você me contou e com esse baú e com essa coincidência que, acredite, não é uma coincidência: hoje é 24 de novembro e fazem hoje, exatamente, 120 anos que minha mãe nasceu. E tem mais uma coisa: ela detestava aspiradores de pó. Nunca quis usá-los, só acreditava na vassoura e no espanador. Então, minha menina, tudo isso somado...
- É incrível! – exclamou Mariana. – E pensar que eu nunca acreditei em nada de sobrenatural...
- Certamente não é sobrenatural. Deve ser natural, nós é que ainda não conseguimos entender e trabalhar com essas coisas. Mas, depois de conhecer você, eu sei que minha mãe realmente aprovou sua vinda para cá, para essa casa onde ela foi tão feliz com suas recordações e suas plantas. Você certamente terá lindas flores no seu jardim de vasos aí fora. E encontrará, aqui, a felicidade que ela encontrou. Agora vou ligar para o meu chofer, pedir para que ele venha buscar esse baú e agradeço de coração toda a atenção que você dedicou à minha família e também agradeço por ter me resgatado essas lindas lembranças de um passado tão distante que eu quase esquecera.
- Você vai embora? Vamos nos ver novamente? Você nem me contou nada da sua vida...
- Sou um velho solitário, Mariana. Meus filhos se espalharam pelo mundo. O mais velho é engenheiro em Londres, a moça do meio casou-se com um italiano e vive na Sicília, a mais nova é decoradora no Rio de Janeiro e a minha mulher me deixou há um ano. Obrigado mais uma vez por tudo, minha menina e trate de viver feliz. Ah! E guarde a foto da Maria Amélia, com o vestido, como lembrança. É sua. Nos veremos no banco, se Deus quiser.
Mas Mariana nunca mais o viu. Um ano depois soube que ele falecera e mandou flores à família.
Foi vivendo feliz naquela linda antiga cobertura, até que um dia foi convidada para ir a uma festa na Casa das Rosas, na Avenida Paulista, em comemoração aos 120 anos de inauguração da Avenida. Achou que cairia bem ir com o antigo vestido de Maria Amélia. Pegou a antiga foto, levou-a ao cabeleireiro e pediu para que ele a penteasse como a senhora da foto:
- Mas Mariana – respondeu o cabeleireiro – vou ter que mudar o seu corte.
- Mude.
Á noite, vestida e penteada como Maria Amélia, foi a festa. Lá, encontrou um belo rapaz, engenheiro e se interessou imediatamente por ele. Quando saíram dançando pelos antigos salões da aristocracia paulistana e ele lhe disse seu nome – Turíbio – ela soube que reencontrara o seu grande amor e que, desta vez, estavam livres para viver plenamente a felicidade.
|