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Herança

(ou Quando Fiquei Pobre 2)

 
 

 Vasco, meu pai, filma Wanda, minha mãe, década de 1930

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Memória de Isabel Fomm de Vasconcellos

Já ouvi muita gente me perguntar se eu não me ressentia dos maus negócios que meus pais fizeram no final dos anos sessenta e que nos levaram a baixar drasticamente nosso nível de vida.  As pessoas, principalmente aquelas que me invejavam (ou ainda me invejam) adoram provocar dizendo que, afinal, eu fiquei sem nada, sem nenhuma herança.

 

Ah! Que tremenda tolice! Pensar que os bens materiais que se foram seriam a minha herança.

Lupicínio Rodrigues dizia: “A vergonha é a herança maior que meu pai me deixou”.

 

A herança maior que meu pai me deixou é a segurança.

 

A segurança que só tem as pessoas que como, eu, tiveram o privilégio de ser muito amadas na infância. A segurança que só tem as pessoas que foram, como eu, educadas para o bem comum, para o conhecimento, para a alegria de viver e não para acumular títulos acadêmicos ou bens materiais.

Meus pais me deixaram a maior herança que um ser humano pode desejar: valores. O valor de si mesmo, o valor de estar vivo, o valor de poder conhecer, crescer, contribuir para o progresso e para a evolução do ser humano.

Isso ninguém me tira. Isso jamais se perde.

 

Quando meus pais perceberam que tinham errado feio, havia uma chance de voltar atrás. Mas eles não o fizeram, porque tinham empenhado a sua palavra, ainda que no mau negócio. Muita gente diria: a palavra que se dane. Mas seriam eles que se danariam. Nenhum dinheiro do mundo é capaz de devolver a paz a quem trai a si mesmo, aos seus princípios. Se meus pais voltassem atrás na palavra empenhada, perderiam a sua paz. Pela paz, empobrecemos, graças a Deus.

 

Quando fiquei pobre, fiquei mais pobre de liberdade e de arbítrio do que de simples dinheiro. Fiquei pobre de amigos que a ditadura exilou. Fiquei pobre de palavras, que a censura comeu.

Fiquei pobre de alegria, que o terrorismo de direita sufocou. E é essa pobreza que não quero mais em minha vida. Por isso, vigio. Por isso não me calo diante de qualquer tentativa política de estabelecer censuras e limites à informação e ao conhecimento. Lutei contra a ditadura da direita. Nada me impedirá de lutar contra a ditadura da esquerda.

 

Nenhuma patrulha, nenhum constrangimento, nenhuma censura de nenhum politicamente correto. Meu pensamento é livre e seguro. E essa é a herança maior que meu pai me deixou!