Eu
escrevia numa mesa ao ar livre, protegida pelo guarda sol, numa
máquina vermelha que eu guardava no meu armário, no vestiário da
náutica. Quase todos os dias, no clube vazio, eu escrevia lá. Minhas
crônicas para o jornal, meus anúncios, releases, roteiros de filmes
publicitários e até meu poemas, era ali que eu escrevia. Almoçava lá
também.
Estava almoçando quando aquela gata,
subitamente, pulou no meu colo.
É claro
que ela estava de olho no meu bife. Cortei um pedacinho, dei pra ela e
ficamos ali, eu e ela, almoçando juntas ao lado da máquina de escrever
vermelha, as folhas de papel quase voando ao vento, presas pela garrafa
de cerveja. Foi então que o Rodrigues se espantou:
-- Bebel!! O que você fez pra conseguir pegar essa gata?
-- Ué, não fiz nada. Foi ela que saltou pro meu colo querendo bife...
Ele balançou a cabeça, incrédulo:
-- Não... Essa gata não. O pessoal aqui da cozinha põe comida pra ela e
sai de perto. Porque, quanto tem alguém próximo, ela não vem, nem quem
esteja há dias sem comer...
Satisfeita, a gata em questão se aninhava nas minhas coxas, feliz da
vida, sossegada e ronronando.
Fiz um carinho na cabeça dela e, desta vez, eu é que estava incrédula:
-- Tem certeza que é a mesma gata?
-- É – fez ele – aí no seu colo nem parece a mesma... Mas só tem ela
aqui. E, pode crer, é arisca como o diabo... Não sei o que ela viu em
você.
-- Foi o maravilhoso cheiro do bife que você tempera... – respondi
rindo.
-- Ah, não foi não. Tô te falando. Ela não chega perto de ninguém, nem
pra comer. Tem medo de gente.
-- Ah, Rodrigues! Corta essa! Onde já se viu gato ter medo de gente?
-- Ela tem – disse ele limpando a mesa –e é fácil saber porque.
-- Por que?
-- Ela está aqui desde pequena e os marinheiros odeiam ela. Batem nela,
jogam ela longe. Só não matam porque eu não deixo.
-- Mas por que, Deus meu? – perguntei, agora acariciando com mais vigor
os macios pelos dela.
-- Porque ela se enfia dentro dos barcos e faz xixi às vezes. Você
imagina o trabalho que dá pros marinheiros eliminar o cheiro de xixi de
gato de dentro de um barco...
Caí na risada, compreendendo o drama dos marinheiros. A (já naquele
tempo) poluída água da represa do Guarapiranga deixava um cheiro
horrível no estofamento dos bancos dos nossos barcos, imagine o cheiro
de xixi de gato...
E
esse foi o começo de uma grande amizade entre Lucrécia, a gata, e eu.
Ela não tinha nome e sabe Deus porque eu resolvi chama-la de Lucrécia.
A partir desse dia, ela vivia ao meu lado. Se eu estava tomando sol na
grama, com a minha amiga Marinês, ela vinha se deitar na minha esteira.
Se eu estava escrevendo na máquina vermelha, ela pulava no meu colo. E,
quando eu saía pra esquiar, ela ficava me olhando, parada no pontão,
como se dissesse: estarei aqui quando você voltar.
Foi um
louco e maravilhoso caso de amor: a gata Lucrécia e eu.
Nessa
época eu ia todos os dias ao clube. Lá era o meu escritório, de segunda
a sexta, e o meu lazer, nos fins de semana. Chegava cedo, de manhã.
Entrava pela portaria “lá em cima”. (Explico: o Castelo fica no alto de
um morro, numa península. Em volta dele, a terra é descida em direção às
praias que o circundam). Então de lá “de cima” eu gritava:
-- Lucréééciaaa...
E, acreditem ou não (não me importa, na minha idade, o que vocês
acreditam) ela vinha – como se fosse um cão – ao meu encontro.
Mas
eu era jovem. Não poderia mesmo entender que o meu amor por ela seria a
sua perdição.
Foi assim durante alguns meses. Toda a nossa turma de esquiadores sabia
que aquela gata vinha se enroscar em mim quando eu estava em terra. Ela
me acariciava, passava sob as minhas pernas quando eu estava escrevendo,
saltava para o meu colo e se esfregava em mim quando eu estava deitada
ao sol (e ficava com os pelos oleosos de bronzeador).
Um dia porém, chegando ao clube, gritei:
-- Lucréééciaaa...
E nada aconteceu.
De súbito, um negro silêncio invadiu-me a alma.
Corri em direção à praia.
-- Rodrigues, Abraão, cadê a Lucrécia?
Tinha sumido.
Nunca mais se soube dela. Alguns insinuaram que os marinheiros a
tivessem levado pra ilha, aquela ilha isolada que fica em frente ao
clube de Campo São Paulo. Outros disseram que um diretor do clube havia
levado ela pra casa... E outros ainda disseram que um tiro de
espingarda e um saco de estopa tinham resolvido a questão.
Perguntei aos diretores. Ninguém nem sabia que ela existia. Fui à ilha
com meu primo Eduardo Zocchi. Chamei por ela, procurei... Nada. Tudo em
vão.
Se, antes, os marinheiros acreditavam que, batendo nela, a manteriam
longe dos estofamentos dos barcos que repousavam no estaleiro, agora
sabiam que não podiam mais bater nela porque a Bebel, eu, a protegia...
Certamente o meu amor por ela a condenou.
E, até hoje, não me posso perdoar por esse amor.
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