VOLTAR PARA A PÁGINA MEMÓRIA

Caso de Amor com a

Gata Lucrécia

 

memória de Isabel Fomm de Vasconcellos 

 

O nome dela era Lucrécia, uma gata.

 

Uma gata vira-lata que apareceu no meu clube, do nada. Ficava vagando pela náutica, à beira da represa do Guarapiranga.

 

Rodrigues, o dono dos bares e restaurantes do clube, o homem que me serviu a primeira caipirinha que tomei na vida (a primeira caipirinha a gente não esquece...) levou um susto quando viu que ela estava no meu colo.

 

Eu escrevia numa mesa ao ar livre, protegida pelo guarda sol, numa máquina vermelha que eu guardava no meu armário, no vestiário da náutica. Quase todos os dias, no clube vazio, eu escrevia lá. Minhas crônicas para o jornal, meus anúncios, releases, roteiros de filmes publicitários e até meu poemas, era ali que eu escrevia. Almoçava lá também.

Estava almoçando quando aquela gata, subitamente, pulou no meu colo.

 

É claro que ela estava de olho no meu bife. Cortei um pedacinho, dei pra ela e ficamos ali, eu e ela, almoçando juntas ao lado da máquina de escrever vermelha, as folhas de papel quase voando ao vento, presas pela garrafa de cerveja. Foi então que o Rodrigues se espantou:

-- Bebel!! O que você fez pra conseguir pegar essa gata?

-- Ué, não fiz nada. Foi ela que saltou pro meu colo querendo bife...
Ele balançou a cabeça, incrédulo:

-- Não... Essa gata não. O pessoal aqui da cozinha põe comida pra ela e sai de perto. Porque, quanto tem alguém próximo, ela não vem, nem quem esteja há dias sem comer...
Satisfeita, a gata em questão se aninhava nas minhas coxas, feliz da vida, sossegada e ronronando.

Fiz um carinho na cabeça dela e, desta vez, eu é que estava incrédula:
-- Tem certeza que é a mesma gata?
-- É – fez ele – aí no seu colo nem parece a mesma... Mas só tem ela aqui. E, pode crer, é arisca como o diabo... Não sei o que ela viu em você.
-- Foi o maravilhoso cheiro do bife que você tempera... – respondi rindo.
-- Ah, não foi não. Tô te falando. Ela não chega perto de ninguém, nem pra comer. Tem medo de gente.
-- Ah, Rodrigues! Corta essa! Onde já se viu gato ter medo de gente?
-- Ela tem – disse ele limpando a mesa –e é fácil saber porque.
-- Por que?
-- Ela está aqui desde pequena e os marinheiros odeiam ela. Batem nela, jogam ela longe. Só não matam porque eu não deixo.
-- Mas por que, Deus meu? – perguntei, agora acariciando com mais vigor os macios pelos dela.
-- Porque ela se enfia dentro dos barcos e faz xixi às vezes. Você imagina o trabalho que dá pros marinheiros eliminar o cheiro de xixi de gato de dentro de um barco...
Caí na risada, compreendendo o drama dos marinheiros. A (já naquele tempo) poluída água da represa do Guarapiranga deixava um cheiro horrível no estofamento dos bancos dos nossos barcos, imagine o cheiro de xixi de gato...
 

E esse foi o começo de uma grande amizade entre Lucrécia, a gata, e eu.
Ela não tinha nome e sabe Deus porque eu resolvi chama-la de Lucrécia.
A partir desse dia, ela vivia ao meu lado. Se eu estava tomando sol na grama, com a minha amiga Marinês, ela vinha se deitar na minha esteira. Se eu estava escrevendo na máquina vermelha, ela pulava no meu colo. E, quando eu saía pra esquiar, ela ficava me olhando, parada no pontão, como se dissesse: estarei aqui quando você voltar.
 

Foi um louco e maravilhoso caso de amor: a gata Lucrécia e eu.
 

Nessa época eu ia todos os dias ao clube. Lá era o meu escritório, de segunda a sexta, e o meu lazer, nos fins de semana. Chegava cedo, de manhã. Entrava pela portaria “lá em cima”. (Explico: o Castelo fica no alto de um morro, numa península. Em volta dele, a terra é descida em direção às praias que o circundam). Então de lá “de cima” eu gritava:
-- Lucréééciaaa...
E, acreditem ou não (não me importa, na minha idade, o que vocês acreditam) ela vinha – como se fosse um cão – ao meu encontro.
 

Mas eu era jovem. Não poderia mesmo entender que o meu amor por ela seria a sua perdição.
Foi assim durante alguns meses. Toda a nossa turma de esquiadores sabia que aquela gata vinha se enroscar em mim quando eu estava em terra. Ela me acariciava, passava sob as minhas pernas quando eu estava escrevendo, saltava para o meu colo e se esfregava em mim quando eu estava deitada ao sol (e ficava com os pelos oleosos de bronzeador).


Um dia porém, chegando ao clube, gritei:
-- Lucréééciaaa...
E nada aconteceu.
De súbito, um negro silêncio invadiu-me a alma.


Corri em direção à praia.
-- Rodrigues, Abraão, cadê a Lucrécia?
Tinha sumido.
Nunca mais se soube dela. Alguns insinuaram que os marinheiros a tivessem levado pra ilha, aquela ilha isolada que fica em frente ao clube de Campo São Paulo. Outros disseram que um diretor do clube havia levado ela pra casa... E outros ainda disseram que um tiro de espingarda e um saco de estopa tinham resolvido a questão.

 

Perguntei aos diretores. Ninguém nem sabia que ela existia. Fui à ilha com meu primo Eduardo Zocchi. Chamei por ela, procurei... Nada. Tudo em vão.
Se, antes, os marinheiros acreditavam que, batendo nela, a manteriam longe dos estofamentos dos barcos que repousavam no estaleiro, agora sabiam que não podiam mais bater nela porque a Bebel, eu, a protegia...


Certamente o meu amor por ela a condenou.
E, até hoje, não me posso perdoar por esse amor.