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Como escapei, três vezes,

de ir parar nos porões da ditadura.

Memória de Isabel Fomm Vasconcellos

 

Em 1978, em 1972 e em 1974

 

 

 

 

Em 1978, quando eu quase fui parar no inferno particular dos homens da ditadura militar brasileira, escrevia crônicas para o jornal O Diário Popular – um jornal tradicional e de grande circulação em São Paulo, que competia com Folha e/ou Estadão.

 

O carnaval se aproximava e resolvi escrever sobre um cidadão paraplégico que vendia bilhetes de loteria. Desgraçadamente, não tenho nenhuma cópia dessa crônica. Adoraria ter! Naquele tempo escrevia-se à máquina e as cópias eram em carbono. Quando eu escrevia na redação do jornal, nem cópia fazia. Pra que? No dia seguinte estaria impresso.

 

O que eu não poderia adivinhar, quando escrevi aquela crônica, é que ela jamais seria impressa.

Ou antes, jamais circularia, porque impressa ela foi.

 

Mas os censores (ou alguém) mandaram parar as máquinas do jornal e tirar a página. Depois queriam ir me buscar em casa. Era de madrugada e os homens do linotipo chamaram meu editor que se vestiu às pressas e correu pro jornal. Se aqueles monstros da tortura tivessem ido me buscar, eu, hoje, não estaria aqui pra contar esse caso.

 

No entanto, Carlos Acuio, o editor, conseguiu convencer os homens de que eu era apenas uma garota ingênua e romântica, sem nenhuma ligação com os “perigosos terroristas” que eles caçavam. Santo Acuio!!

 

Mas esse não foi o único episódio em que algum anjo da guarda me salvou da prisão e da tortura.

Na verdade, esse foi o terceiro.

Houve mais dois.

 

 

O primeiro foi em 1972.

 

Levei meu pai ao correio. Não havia (já naquele tempo!!) lugar para estacionar e, por isso, fui com ele, dirigindo o carro dele. Deixei o velho lá e fui dar a volta no quarteirão. Na rua seguinte –era quase Natal—vi uma cena inusitada: um papai Noel bêbado. Não tive dúvidas. Parei o carro e fotografei. (Eu vivia com a minha Pentax pendurada no pescoço).

 

Imediatamente fui cercada por vários policiais que me acusaram de “estar fotografando as patrulhas”. Não houve argumento que os convencesse e eles decidiram me levar pra delegacia mais próxima. Um deles, sentou-se ao meu lado no carro (fui dirigindo) com uma arma apontada pra mim. Outro, no banco de trás. Uma viatura na frente do carro e outra atrás. Em vão eu explicava que era estudante de cinema, que vivia fotografando, que o meu pai estava me esperando na calçada da outra rua, que eu fotografara um papai Noel bêbado e não estava nem um pouco interessada nas “patrulhas!” deles.

 

-- Estudante, é? Universitário no Brasil é tudo subversivo – disse um deles.

 

Pra piorar a situação, meu pai tinha porte de arma e o revólver estava entre os bancos da frente, mas, graças a Deus, esse eles não viram, se tivessem visto talvez eu não pudesse estar contando essa história.

 

A grande sorte é que meu pai viu o estranho comboio passando na avenida. Imediatamente pegou um táxi e foi atrás.

 

Cheguei na delegacia (de short e camiseta com uma maçã mordida estampada: não poderia ser pior!) e os investigadores ficaram me enrolando. Eu dizia pra eles revelarem o filme que estava na máquina e veriam que não tinha patrulha nenhuma fotografada.

 

De repente ouço uma voz forte gritando, toda autoritária:

-- Vou entrar, sim. Quem está lá dentro é a minha filha e vocês não sabem com quem estão se metendo, seus incompetentes!

 

Só mesmo o Velho Vasco pra espinafrar os homens da ditadura. Devem ter pensado que ele era irmão de algum general.

 

No fim, nem revelaram o filme (mas ficaram com ele e, por isso, perdi as maravilhosas fotos de um papai Noel bêbado) e saímos, meu pai e eu, depois de ter tomado cafezinho e ouvido pedidos de desculpas.

-- O senhor entende, seu Vasco, os rapazes não sabiam que era a sua filha Nesses tempos de subversão, eles veem fantasmas ao meio dia... Viram ela fotografando e trouxeram para averiguação. Rotina.

 

Rotina?

 

 

A outra vez foi em 1974, em Salvador, na Bahia.

 

Bati na traseira de um carro da Petrobrás, dirigido pelo filho do coronel que era o bambambam da estatal lá. Era domingo e o sujeito não poderia estar circulando com a família dentro de um carro da empresa pública. Até aí, pouca coisa. Foi na avenida da praia, na Orla, e não aconteceu nada, além de parachoques avariados.

Fizemos ocorrência, pedi desculpas e fui pra Arembepe almoçar com amigos.

 

No dia seguinte – eu trabalhava numa agência de propaganda de lá, onde o diretor de criação era nada mais nada menos que o João Ubaldo Ribeiro – fui editar um comercial na TV, afiliada da Globo, onde meu irmão Alvan era diretor. De repente me chamam na portaria. Estava lá um oficial de justiça, com uma intimação para que eu comparecesse na polícia federal no dia seguinte e uma ordem de apreensão e busca para o meu carro.

 

O grande problema parecia ser não só o carro irregular da Petrobrás como quem estava comigo em meu carro, um conhecido intelectual baiano que já fora preso, por considerado subversivo.

 

Meu irmão ficou uma fera e chamou o maior advogado da Bahia. No dia seguinte, lá fui eu, com o doutor, para o prédio da polícia federal. Fui recebida pelo lendário coronel, chefe da repressão em Salvador. Eu não entendi porque estava merecendo a honra de ser interrogada por um homem tão importante. Um escrivão ia datilografando o que eu dizia. E as perguntas eram capciosas:

 

-- Então o acidente aconteceu no Jardim de Alá, às 11 horas?

(O Jardim de Alá, pra quem são sabe, era onde os jovens iam assistir “corrida de submarino”, como, naquele tempo, iam no deserto Morumbi. Uma espécie de motel ou drive-in público...)

 

E eu:

-- Não senhor. Foi na avenida da Orla, antes do Jardim do Alá, às 11 da manhã, não da noite...

 

O advogado comigo. Depois do depoimento me mandaram ir ao prédio da Petrobrás (que era ao lado) para pagar o prejuízo a um outro coronel (pai do motorista do carro em quem eu batera). O advogado catou todos os papéis que estavam comigo – intimação, encaminhamento, sei lá – e saiu correndo pra tirar xerox ali em frente, enquanto eu subia de elevador até o escritório do cara. Era um risco. Mas o advogado disse ter certeza que ele não me receberia imediatamente. E assim foi. Deu tempo. (Acho que tenho esses papéis arquivados em alguma pasta antiga, tenho quase certeza).

 

Bom, quando finalmente me chamam na sala, eu entro, o coronel olhando uns papéis e, numa das cadeiras da mesa dele... Meu irmão! Nossa! Como é o Alvan tinha ido parar lá?

 

-- Você é a moça do carro? – perguntou o coronel, sem levantar a cabeça para me olhar.

-- Sou.

-- Sou, sim senhor – corrigiu ele.

Eu ia repetir a frase dele quando o Alvan diz:

-- Bel, senta aqui do meu lado.

O coronel ergue os olhos, espantado:

-- Mas... Ela não é a moça do carro? Vocês dois se conhecem?

-- Coronel, conheço ela desde que ela nasceu. Ela é minha irmã!

 

Por essa o coronel não esperava. Ele tinha apreendido irregularmente o carro da irmã da Globo!

 

Mudou tudo. Cafezinho. “Imagine... Se eu soubesse... Me desculpe, foi um mal entendido. Me disseram que ela era uma paulista metida com subversivos perigosos...Fulano, manda tirar o carro dela do pátio. E manda lavar. Fulana, traga café – a senhora toma café? – e biscoitos, e mande chamar o meu filho.

 

Entrou o filho. E o coronel deu a maior bronca nele: você não podia estar usando esse carro no domingo... Mande arrumar imediatamente e trate de pagar o prejuízo do seu bolso...

 

E eu, ali, besta, sem entender a razão de tanto poder do meu irmão.

Quando finalmente saímos, Alvan, ainda no elevador, me disse:

-- O coronel é doido por automobilismo. Existe uma área aqui em Salvador onde ele quer construir um autódromo e a prefeitura, uma escola. Ele precisa do apoio da TV para a sua causa e, semana passada, tivemos uma reunião com ele...

 

Fui salva pelo Alvan e pela Rede Globo de Televisão. Se não fosse, de duas uma: ou eu não estaria aqui pra contar essa história, ou talvez tivesse me tornado Presidente da República.

 

 

Comente

 

De: Luiz Fernando W de Almeida [mailto:w
Enviada em: sexta-feira, 20 de março de 2015 17:19
Para: Isabel Vasconcellos PS
Assunto: RE: Recordar É Viver

 

Oi Bel! Tudo bem?

 Li suas cronicas sobre risco de prisão na 'ditadura". As de 1972 e de 1974, sem medo de errar, você não iria conhecer os tais porões. Não tinha motivo.

A de 1978 , me lembrei que eu era Tenente na Polícia do Exército de SP. Certa feita, num bar ou restaurante você me apresentou o Carlos Acuio. Jamais me esqueci dele. Foi até educado comigo , mas a certa altura perguntou na lata : quantos Oficiais tem o Exército ? Respondi : uns dez mil.

 

Ele, calmamente , com cigarro na mão , movimentou um braço, girando para o infinito, apontando para as paredes disse : se pudesse fuzilaria todos.

Você e eu rimos. Eu disse a ele: ainda bem que você não pode. Ele mexeu os ombros , tipo "tá certo"

Jamais aquele momento me saiu da lembrança. Levei numa boa. Ele é vivo ?

 

Beijos

 

Fer


 

Oi, querido. Não me lembro dessa história não... Mas o Acuio já morreu, sim. E eu nunca mais soube dele, depois que saí do jornal. Foi o filho dele que me escreveu um dia, por causa de uma referência qq e me disse que ele já tinha ido pro lado de lá. Era um bom cara, mas muito malucão e totalmente contra o regime militar. Boa lembrança! Fiquei feliz que vc tenha gostado do filme. Devagar, vou editando todos. Bjo gde. Bel.

 

De: Luiz Fernando W de Almeida [mailto:waltherdealmeida@hotmail.com]
Enviada em: sábado, 21 de março de 2015 09:29
Para: Isabel Vasconcellos PS
Assunto: RE: RES: 1952, Recordar É Viver

 

Oi Bel. O Acuio não foi grosseiro. Acho até que se controlou. KKKKKKKKKKK  Bjs


 

Fer, vc é que é gentil... rsrsrs...

 

Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Escritora