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Rosália e a Justiça Social

memória de Isabel Fomm de Vasconcellos

 

 

Di Cavalcanti, mulata 44

 

"Consegui pílulas anticoncepcionais para que ela não tivesse o oitavo filho e não fizesse, com isso, que seu oitavo homem fosse embora."

Sim, a Justiça Social. É dela que você quer que eu fale.

Meu amigo, que coisa engraçada essa tal de justiça social....

Contaria outra história.  

 

Tive uma empregada, em minha casa da Pituba, em Salvador.

Uma mulher absolutamente linda, negra, 34 anos, sete filhos homens de sete pais diferentes.

Chegava para trabalhar às 6 horas da manhã. Hora que eu estava na praia, em frente. Mas, se não estivesse, ela era discreta - sabia ser - o suficiente para esperar que eu saísse do quarto. Fazia o café para as 6 e meia. E o almoço para o meio dia. Saía quando achasse que o trabalho do dia terminara. Tinha mais trabalho em sua própria casa, à tarde.

 

Depois dela chegar nunca mais tive uma roupa mal passada, uma gaveta desarrumada, um canto - por mais escondido que fosse - empoeirado. Não fazia minhas compras. Ela as fazia. Não pagava minhas contas. Ela as pagava.

 

Ganhava, em 1974, 180 cruzeiros para trabalhar lá em casa, aturar meus amigos, cuidar dos hóspedes. Vivia com um sorriso estampado no rosto e tinha paciência suficiente para ouvir falar de problemas que ela, muito provavelmente, não chegaria a compreender. Os 180 cruzeiros faziam-me muito mal. Com a água da nossa torneira e o sabão da nossa dispensa ela lavava roupa pra fora. Pra fazer uns trocados. Ganhava alguns mantimentos na quinzena de supermercado. Mas - por mais que eu pudesse fazer - os 180 cruzeiros faziam-me muito mal. Aumentar-lhe o ridículo salário? Impossível, embora eu ganhasse muito bem: A vizinhança me lincharia. Em 1974 ninguém pagava mais de 120 cruzeiros por uma empregada.

 

Consegui pílulas anticoncepcionais para que ela não tivesse o oitavo filho e não fizesse, com isso, que seu oitavo homem fosse embora. No posto de saúde local, o médico recusava-se terminantemente a dar-lhe a receita, naquele tempo necessária... Minha mãe mandava duas cartelas por mês, uma pra mim, outra pra ela, pelo malote da Globo. Naquele tempo, o correio também não funcionava.

 

Arrumei um emprego para o filho mais velho dela. Comprei passes de ônibus para que o menor pudesse poupar os 30 cruzeiros da condução, quando o transferiram pra um colégio distante. Ganhei dela uma estranha mistura de ervas que me resolveu um problema indesejável.

 

Fazia café como uma paulista. E adivinhava qualquer tristeza por detrás da minha testa. Preparou um banquete digno de Xica da Silva para quando Wanda e Vasco, meus pais, chegaram do aeroporto e tratou-os com carinho enquanto estiveram hospedados lá em casa.

 

Vim para São Paulo às pressas quando o Vasco adoeceu. E fiquei um mês aqui. Quando voltei as plantas continuavam vivas e a casa continuava idêntica.

 

Na hora de vir embora definitivamente, as mil e duas coisas que não couberam nas malas estavam cuidadosamente embrulhadas e dentro do meu carro. Não, pra Dona Alice, minha cunhada, ela não queria trabalhar, não. Pílulas, só com receita médica. E – olhos cheios d'água - fui me embora perguntando se o oitavo homem continuaria com ela.

 

Três anos depois estava de novo na Bahia, em férias, no apartamento do Alvan, meu irmão, na Barra. Quatro da tarde, estou voltando da praia. Vestido esvoaçante, cara de turista, atravesso a Avenida Centenário e alguém me chama. Ela. Trabalhando numa casa de frangos, temperando frangos, ao molho pardo, o avental branco todo amarronzado. Uma alegria revê-la! Comprei um frango, pra poder ficar conversando um pouco com ela.

 

Nas férias do ano seguinte, desci a ladeira em direção à Centenário. Será que o oitavo...

No lugar da loja de frangos, móveis de vime.      

E já não gosto mais - ou antes, detesto - do gosto estranho do dendê.

 

São Paulo, 25 de fevereiro de 1978 e 03 de agosto de 2013

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Isabel Fomm de Vasconcellos
3 de agosto de 2013
Editei no site um texto bacana que achei nos meus guardados pré-computador. Está na página Memória.
 

Chris Ramsthaler Achando preciosidades!

 

Evaldice Maria Ruck Cassiano Hoje li seu texto, parece que conheci a Rosália, parabéns !!