foto: arco íris na minha mão VOLTAR PARA A PÁGINA MEMÓRIA
TRÊS TEMPOS e uma necessidade Memória de Isabel Fomm de Vasconcellos |
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1. Algum dia, 1973
O meu deus está dentro de mim. Fala a minha língua e quase sempre não o escuto. Vivo na tentativa de dominar a linguagem dos homens e o meu deus se aborrece. Perdoa depressa, porém, mandando seus estranhos recados: coisas que misteriosamente desaparecem de sobre os móveis segundos após terem sido vistas; velhas fotografias perdidas, amareladas e carcomidas que, de repente, saltam sem aviso de um caderno novo e me impelem para alguém, algum lugar... Intuição, vontade inexplicável de ir, ir, ir. Impulso. Meu deus é meu impulso. Ele me atira de um lado a outro, me bate, me engana, me confunde e zomba de mim quando, cansada, deixo cair o corpo nas mãos e me ponho a chorar sem motivo. Brigamos. Não pode exigir tanto. Não pode querer que eu resista e que lute, que viva, que ame, sempre, sempre, sempre sem jamais um instante de descanso. Não pode exigir que me levante imediatamente após cada tombo. Mas exige. Abandona-me. Ando à toa pela casa. Abro livros para fechá-los em seguida. Tento ouvir música, mas os sons se racham e arranham meu corpo. Saio. Ando atenta pelas ruas a procurá-lo nos rostos, nos muros, na terra, na paisagem cinza. Está mudo. Provavelmente zangado. Volto pra casa, desanimada. De nada adianta buscá-lo. Perco a vida no tempo perdido, inútil. Depois, um segundo, mágico instante. Meus olhos encontram algo... Quase nada. Canção, adormecida lembrança, gosto novo no café, brilho na prateleira, caixa de papelão... Sorrio. Raio de luz, brincadeira, música... Beleza escondida, de súbito se revela. Assim, de graça, sem motivo aparente. Acalanto. Vontade de correr ao telefone ou a rua, encontrar um amigo, conviver sem compromisso, deixar sair essa ternura, esse amor pelo mundo. Nem o telefone, nem a rua. Apenas um pouco de paz. Ele está de volta e pra ele dou um sorriso maroto, franco. Cumplicidade. A certeza de tê-lo comigo me faz adormecer sem temores. Adormecer para amanhã, quando tudo recomeçará, como sempre, exatamente igual. |
2. Ontem, 1986
Há momentos em que seria necessário crer em deus. Porque só com ele seria possível conversar, só a ele seria possível confessar, só para ele seria possível rir ou chorar. Preciso fazê-lo nascer. É preciso criar o meu deus. Compô-lo e nele confiar. Amá-lo e negá-lo. Talvez simplesmente reencontrá-lo. Fecho os olhos e viro música. Somos músicas a noite, a chuva e eu. Lentamente, penso poder relembrá-lo. Ele é um garotão de praia, esnobe e inconsequente. Ele é um corpo saudável, moreno de sol, salgado e sadio. Não o conheço. Apenas dançamos alucinadamente sob luzes coloridas, bêbados de som e uísque. Rimos pro céu estrelado, o mar lá em baixo, terraço e lua. E ele me diz, surpreendentemente: “Menina, teu silêncio é do tamanho desta ilha.” E sou toda silêncio. Deus foge num Mercedes esporte. Meu silêncio é do tamanho do meu medo. Deus agora é silêncio, medo, tédio, nojo e cansaço. Tento outra vez. Deus está sorrindo. Tem oito anos, é uma menina loirinha, a brincar na água do mar. Tem sardas no nariz entre a manchinha vermelha que o sol desenhou em seu rosto. Vem vindo uma onda enorme e ela se atira pra mim, assustada, gritando-me o nome. Salta, os braços apertam-me com força, afundamos, as duas, na montanha de espuma que passa e nos faz rir e tossir o sal que queima a garganta. Deus é este engasgar. Deus é este vaso cheio de rosas amarelas. Deus é essa necessidade de deus. Este momento de enjôo, atravessado aos trambolhões. Aquela mão que não se deu. O olhar na hora certa, a gota que faz transbordar o copo, a raiva, a covardia, o estar acuado, o deixar ficar, o correr, o fugir...deus é o momento em que só deus é possível. Deus é esta ausência de deus. Este teimoso amar o mundo quando o mundo apodrece e fede. Absurda vontade de reerguer-se na certeza da próxima queda. Este motivo que a razão desconhece. E nega. Deus é esta força, que faz amar a cor das paredes, o cotidiano áspero, é o corpo ao ritmo da música e do amor. É aquele vento a soprar mistérios em tua orelha esquerda. É a inexplicável magia que envolve repentinamente um momento e a lógica do mundo afasta, desconhece. É sensibilidade sufocada que vomitamos, envergonhados, às escondidas, no escuro. A resposta que não se deu, a coragem de olhar no espelho, o poder perdoar-se a si próprio. Deus é pensar voar quando todo o corpo está preso à terra. Deus se esconde atrás dos muros, no vão da escada e acena de longe a zombar. De repente, espontâneas, erguem-se minhas mãos para ele. Como se fossem mãos limpas.
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3. Sempre
Há aquele dia em que deus está comigo. Ou antes, eu estou com ele. Qualquer pensamento maior ou mais forte sensação basta para perceber-lhe a presença. Encanto, beleza e consciência. Uma presença exigente, cheia de pontos de interrogação, pedindo respostas e ações. Presença que pode resultar nesta paz. Paz construída da de eternos conflitos, resto de vida, resíduo. Existem dias vibrantes, cheios de energia e certeza. Dias em que deus está comigo. No entanto, quase sempre o esqueço. E surpreendo-me, porque o mundo se reduz a tempo espaço e circunstância. Sem ele, tudo é o presente, o momento, o cotidiano sem esforço ou alegria. Olho para mim: Sou apenas isto? Incrível paciência a de deus. Basta chamá-lo, Ele vem. Hoje, por exemplo, veio um tanto esquivo, talvez magoado. Chove demais. Trânsito ruim. Jornal pessimista, pessoas cinzentas, só pude perceber-lhe a ausência quando me senti tão fria quanto a avenida. A solidão da minha redoma, inatingível, inacessível, meu mundo de lata. No entanto, ele estava a meu lado, mudo e esquecido. Estava logo ali no rosto de chofer de táxi, nos corpos amontoados sob o abrigo do ponto de ônibus, na música do rádio do carro, nos luminosos e nos balcões coloridos. Ele é você, ele é o outro, ele é o sonho e a consciência. Ele somos nós, gente ocupada demais pra se perceber. Reuni, o jornal do dia, as discussões de mesa de bar, a tristeza de cada um, os rostos que eu amo, a máquina do mundo, o anônimo, a guerra inexplicável, a ilusão coletiva. Reuni, num segundo, estrela e porão. Então ele voltou. Chegou de leve, como quem não quer nada, um tanto tímido como os namorados de antigamente, tentando sentar-se mais perto, mais perto. Minhas mãos, neste instante, ao percebê-lo, perceberam-se a si mesmas. Minhas mãos e a responsabilidade de ter mãos. |