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A Identidade na Carteira

por Isabel Fomm de Vasconcellos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

" ...a primeira vez em que alguém, numa loja, me pediu a carteira de identidade ao receber um cheque meu. Fiquei ofendidíssima. Como? Duvidando da autenticidade do meu cheque?"

Assim foi educada uma geração de brasileiros. Pagando para não cumprir as leis.

Vivendo num país onde existem leis que "pegam" leis que não "pegam".

É interessante lembrar que as regras morais e a conduta das pessoas eram bem diferentes há umas poucas décadas. Estava pensando nisso ao recordar a primeira vez em que alguém, numa loja, me pediu a carteira de identidade ao receber um cheque meu. Fiquei ofendidíssima. Como? Duvidando da autenticidade do meu cheque? Duvidando da minha honestidade? Por acaso não estava escrito na minha cara que eu era uma moça de bem?

Isso me marcou tanto que sou capaz de dizer onde foi e o que eu estava comprando. Eu estava comprando alargadores para as rodas do meu fusca. Foi em 1970. Eu tinha 19 anos e aquele era o meu segundo carro (o primeiro era um gordini, herdado do meu pai) e o meu primeiro fusca. A loja era o Rodão da Avenida Santo Amaro (loja que eu, salvo engano, acho que ainda existe).

 

Até então passar um cheque sem fundos era uma coisa absolutamente vergonhosa,só pessoas de caráter altamente duvidoso eram capazes disso. Mas, a partir daquela época, tudo estava mudando no Brasil. Nascia o Brasil dos que "levavam vantagem em tudo, da Lei de Gerson" onde enganar, roubar, ludibriar, mentir, tudo valia para ser o primeiro, chegar na frente, ter mais que o vizinho. Nenhum desse "métodos" era condenável. Condenável era apenas ser pego usando um deles. Se você conseguisse roubar,enganar, mentir e não ser pego, estava tudo bem.

 

O Brasil de fato se tornou assim, infelizmente, para a maioria das pessoas.

Já nos anos 1990, estava eu um dia na boite do Hotel Orotur,em Campos do Jordão, na companhia de um das donas do Hotel, a Berti. Entrou na boite uma menina de 14 ou 15 anos e Berti pediu ao maitre que dissesse a menina que o ambiente era exclusivo para maiores de idade. Eis o que o maitre nos contou depois: "A moça disse que não sairia. Argumentei que o hotel seria multado, caso alguém denunciasse a presença de menores no bar. E ela me respondeu que não haveria problema, que o pai dela pagaria a multa. Só saiu quando eu disse que, nesse caso, seria obrigado a pedir a presença de uma força policial para tirá-la daqui."

 

Assim foi educada uma geração de brasileiros. Pagando para não cumprir as leis. Vivendo num país onde existem leis que "pegam" leis que não "pegam".

Agora, nesse ano de 2010, depois de ter visto Chico Buarque pedir socorro ao ladrão nos anos 1980 porque a polícia, para ele, era a real ameaça (veja a letra de "Acorda Amor", clicando aqui); depois de ver o povo das favelas confiar muito mais na ação social dos traficantes do que nos vários e sucessivos governos da cidade, do estado ou do país; depois de assistir a mais absoluta inversão de valores, finalmente o governador do Rio de Janeiro e o filme Tropa de Elite II conseguem mostrar que é possível, sim, "desinverter" esses valores no Brasil.

Eu sei que ainda há um imenso caminho a percorrer.Mas com vontade política será possível sim. Será possível com novos autores de novela e novos enredos na programação de TV. Será possível, como foi possível tornar o cigarro de glamoroso à anti social e politicamente incorreto. Será possível com o fim da impunidade e com a certeza de que ser é mais importante do que ter.

Só assim o povo brasileiro se lembrará que carteira de identidade é aquele documento que nos atesta a cidadania e deixará de pensar que a sua identidade está na quantidade de crédito que ele carrega na carteira.