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Os Irmãos que a vida me deu: Tom, Leda e Edu

Memória de Isabel Fomm de Vasconcellos

Instituto de Educação Prof. Alberto Conte

Anos 1960

 

 

O Tom, ainda seminarista, decáda de 1960

 

 

Tom nos anos 1970, já professor universitário

 

capa da Veja de 9 de outubro de 1968

 

Tom e Carla, sua filha, na minha noite de autógrafos de 2005

 

Tom e Angélica aqui em casa, 2010

 

Tom e Angélica em 2008, nossos padrinhos

 

Com Bolivar e Heloisa, também padrinhos

 

De: "Antonio CArvalho do NAscimento"
PARA: "'Isabel Vasconcellos (PN)'" <isabel@isabelvasconcellos.com.br>
Assunto: RES: Olha e me responde, Tom.
Data: sábado, 27 de setembro 15:02

Bel pode publicar tranquilamente,

Apenas fiz duas correções
O Chico cantava na Quitandinha, era um boteco que anteriormente fora uma quitandinha e depois o dono transformou em boteco. Alá nos juntávamos às 6as feiras a turma da Economia e da FAU. O Chico estudava na FAU nessa época (66-67). No Joan Sebastian Bach que tocava e cantava era o Jonny Alf durante os anos 70 e lá pelo início dos anos 80. Que eu me lembre a última vez que nos vimos foi no ano de 1971 em meu apartamento em Pinheiros, quando você conheceu a Maria Angélica. Se nós nos vimos ainda em 1973 no Menestrel estou sendo traído pela memória, isso já não me lembro, chii a idade está chegando, a memória está pifando, vou comer umas cabeças de palito de fósforo!
Um beijo
Tom
 

 

 

1. Meu irmão Tom

 

Eu tinha 12 anos e acabara de conquistar uma grande vitória: passara no exame de admissão para o mais cobiçado colégio da zona sul de São Paulo: O Instituto Estadual de Educação Prof. Alberto Conte.

 

Naquele tempo, 1963, os colégios estaduais eram o máximo. Antes, eu pensara, ao terminar o curso primário (básico) num colégio particular, em ir para uma escola badalada, bem chique, talvez dirigida por freiras. Mas o meu irmão Alvan me explicara que, para ter chance de entrar, mais tarde, na USP, o melhor caminho era o Alberto Conte.

 

Assim, eu me preparei para o tal do exame de admissão, que era tão concorrido como um vestibular. E entrei. Em 13º lugar, o que era excelente.

 

Nunca poderia imaginar que, pouco mais de um ano depois, haveria um golpe militar no país, que acabaria por afastar os melhores mestres daquele colégio e perseguir os líderes estudantis “secundaristas”, (como eram chamados então os estudantes dos cursos anteriores à universidade, que eram ginásio e colégio.)

 

Mas, quando se tem 12 anos, um ano e meio é um tempo imenso.

E, antes que a ditadura pusesse as garras sobre o excelente nível do corpo docente do Alberto Conte, pude desfrutar da genialidade de inesquecíveis professores.

 

Entre eles, havia um professor de religião. Era um jovem seminarista que andava de batina preta e, contrariando tudo o que se poderia esperar de um mestre religioso na década de 1960, discutia temas avançados sob uma ótica moderna e intrigante.

 

Religião passou a ser uma das minhas aulas favoritas.

 

Um dia, o professor recomendou a leitura de dois livros de um autor católico da moda, Michel Quoist: O Diário de Dany e o Diário de Ana Maria.

 

Devorei os dois. E ali fiquei sabendo que existia uma organização católica internacional de jovens, dividida em três: Juventude Operária Católica, Juventude Estudantil Católica e Juventude Universitária Católica, respectivamente JOC, JEC e JUC.

 

Para entrar na organização era preciso ser “nucleado”. Ou seja: você precisava parecer interessante aos membros do clube e então, eles que se mantinham secretos, iam analisando você, através de longos papos “casuais” e, em reunião, decidiam se você deveria ou não ser convidado a entrar no negócio.

 

Bom, para mim, uma sociedade secreta dentro da escola era tudo o que se podia desejar. Dava status, poder e tinha uma aura romântica digna dos melhores livros que eu lera na vida. Imagina se eu ia ficar de fora. Comecei a falar aos quatro ventos que eu queria entrar. Finalmente, um dia, uma garota mais velha, Maria Alice, do último ano do curso colegial, veio conversar comigo. Entrei. E, nas reuniões, fui ficando cada vez mais amiga não só da turma como dos seminaristas que nos orientavam. Eram eles: José Paulo, Tião e Antonio, o meu professor de religião.

 

Não sei como o Antonio, pelo menos para mim, virou Tom. Ele também era um garoto, na época. Mas eu não sabia. Eu achava que ele era um velho sábio. Eu tinha 12 anos. Ele, 21. Éramos bem jovens. Ficamos amigos, amicíssimos. E assim foi por alguns anos. Toda a minha adolescência. O Tom vivia lá em casa, que era, aliás um dos QGs da nossa turma, ponto de encontro diário e berço de festas memoráveis, concorridíssimas, com um som de primeira, muita cuba libre e os quitutes que saíam do talento das empregadas da minha mãe, Wanda.

 

Na nossa casa, em Santo Amaro, havia também o laboratório de cinema do meu pai. Uma sala de som com janela de vidro (aquário) para a sala de projeção (um mini-cinema, com cadeiras, tela, sistema de som, etc.). Na sala de projeção rolavam os bailes e, na sala de som, instalei o que a gente chamava de “salinha”. Nenhum móvel. Um imenso gravador de rolo, Akai, caixas de som, tapetes, almofadas e paredes e teto cobertos de colagens feitas de fotos de revistas. (clique aqui para ver um vídeo da época, onde a salinha aparece).

 

Ali, rolavam os grandes papos da nossa adolescência. As neuroses, os sonhos, os ideais políticos. Fazíamos parte da turma da Bossa Nova e da MPB, a turma do “Fino da Bossa”, totalmente contrária à turma da “Jovem Guarda”, uns alienados que curtiam Roberto Carlos. (Elis Regina foi a primeira a criar uma ponte entre estas facções que se identificavam pelas preferências musicais. Ela gravou uma composição de Roberto. Anos depois, Roberto e Caetano Veloso cantariam juntos. Foi para o Caetano, exilado em Londres no final da década, que Roberto compôs “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” – já não havia diferenças.)

 

Tom foi meu melhor amigo e confidente por toda uma década. Ele não se ordenou padre. Largou o seminário.

 

Fez economia na USP, quando esta escola funcionava na lendária Rua Maria Antônia, onde verdadeiras guerras aconteciam entre os estudantes da USP (de esquerda) e do Mackenzie (de direita) e onde Chico Buarque começou a cantar num boteco chamado João Sebastião Bar. (Nos anos 60 até os botecos eram inteligentes...)*observação no e-mail do Tom:O Chico cantava na Quitandinha, era um boteco que anteriormente fora uma quitandinha e depois o dono transformou em boteco. Alá nos juntávamos às 6as feiras a turma da Economia e da FAU. O Chico estudava na FAU nessa época (66-67). No Joan Sebastian Bach que tocava e cantava era o Jonny Alf durante os anos 70 e lá pelo início dos anos 80.

 

O Tom, como não poderia deixar de ser, era um militante da AP, Ação Popular, que tinha suas origens na JUC (Juventude Universitária Católica) mas era mais radical.

Naquela época, ser sequer simpatizante de qualquer organização que se dissesse de esquerda e/ou que se posicionasse contra o regime militar estabelecido, era um perigo real. Você poderia ser preso, torturado até a loucura e, muitas vezes, assassinado e enterrado como indigente.

 

Tom e eu fomos muito amigos e convivemos até 1973. Neste ano eu me casei e mudei para Santos. Meu casamento durou pouco e, em 1974, já separada, fui morar e trabalhar em Salvador, na Bahia. Tom tinha conhecido uma moça que viria a ser o grande amor da sua vida: Angélica. Lembro-me bem que, na última vez em que estivemos juntos, no final de 1973, num bar de MPB que ficava na Rua Cardeal Arco Verde, o “Menestrel”, Tom me apresentou a ela.

observação no e-mail do Tom:Que eu me lembre a última vez que nos vimos foi no ano de 1971 em meu apartamento em Pinheiros, quando você conheceu a Maria Angélica. Se nós nos
vimos ainda em 1973 no Menestrel estou sendo traído pela memória, isso já não me lembro, chii a idade está chegando, a memória está pifando, vou comer umas cabeças de palito de fósforo!

 

Depois disso, nunca mais o vi.

Morei em Santos, depois em Salvador e, em 1975, voltei para São Paulo. Em 1979, voltei para a represa do Guarapiranga.

Em 1983, conheci o Mauro Caetano, com quem vivo até hoje. Em 1985, mudei para a Paulista. Os telefones mudaram. O acesso para a casa onde eu morara com meus pais, ficou completamente diferente: um viaduto foi construído, mudando tudo.

Então, com o passar do tempo, quando eu pensava no Tom, eu pensava em alguém que estava morto. Tom teria sido morto pela ditadura, como tantos o foram. E foi assim durante 30 anos.

 

Quando escrevi meu segundo livro publicado (publicado, sim, porque o primeiro livro escrevi aos nove anos...), nele havia um conto dedicado ao Tom, o amigo perdido.

Vinte e nove anos depois de nosso último encontro, em 2002, abro minha caixa de mensagens e...meu Deus!!! ... lá estava ele.

Eis a mensagem:

 

From: Antonio Carvalho do Nascimento

To: Isabel Vasconcellos

Sent: Friday, December 20, 2002 1:08 AM

Subject: Se você for quem eu acredito que seja, eu sou o Tom. Enfim te achei!

 

Bel
Queria muito retomar contato com você.
Você não é uma pessoa que se possa esquecer.
São mais de 30 anos. Acho que vale a pena esperar.
O google  encontrou seu site, e eu encontrei você.
Espero que você seja quem eu acho que é. Os dados de sua página batem com a Bel de longos papos.
Entre eles, Vinicius de Moraes:


Amiga minha , hoje no céu a Lua
Tem uma face que me lembra a tua (com as duas covinhas)
A Lua é sempre assim, ou é teu rosto
Que dorme no céu posto, amiga minha?

Ah, desce do teu nicho, rosto puro
E vem iluminar meu leito escuro.

Astro solitário, ó Sol
Ilumina meu poema da tua claridade matinal
Transfunde-lhe nas veias o éter com o azul
E torna-o simples.
 

Tom
Antonio Carvalho do Nascimento

 

Meu Deus!!! O amigo que eu pensava morto pela ditadura estava me mandando um e-mail, com direito à poesia de Vinicius !!!

 

Desandei a chorar, com soluços e tudo. E meu Caetano querido passou pelo meu escritório, viu aquilo e perguntou por que eu estava chorando assim. E eu disse:

 

- Porque meu amigo está vivo!

 

Fiquei sabendo, depois, que ele me procurara. Tinha se casado com a Angélica e ido morar em Marília, onde lecionava economia na USP de lá.

 

Eles tiveram uma filha, Carla. E Angélica era, como eu, uma jardineira.

 

Quando o Tom vinha a São Paulo, tentava localizar a casa onde eu morara com meus pais. Mas a topografia havia mudado muito. Os telefones também. E assim se passaram três décadas. Ele me procurando, eu crendo que ele era um dos mortos da ditadura.

 

Quando nos reencontramos, foi como se tivéssemos nos visto ontem.

Imediatamente retomamos a nossa amizade, com o mesmo nível de intimidade, com a mesma alegria. E assim é até hoje. Existe apenas uma diferença: agora ganhei também uma amiga, Angélica, que, diferentemente da maioria das mulheres (as inseguras da vida), não tem ciúmes da amiga do marido.

 

No dia 6 de setembro de 2008, o Caetano e eu, depois de viver 25 anos juntos, nos casamos. Para seus padrinhos, Caetano escolheu seu amigo de infância, Bolívar, e sua mulher, Heloísa. Adivinhe quem foram meus padrinhos? Tom e Angélica, é claro.

 

Tom e Angélica foram dois dos cento e oitenta e três fundadores do PT. Lula costumava dizer que, quando fosse presidente, levaria Angélica para chefiar a cozinha do planalto porque ele adorava os jantares que ela servia a ele.

 

Mas Tom e Angélica romperam com o PT lá pela metade dos anos 1990 porque perceberam que havia algo podre no reino da Dinamarca.

Se eles fossem menos sinceros e mais hipócritas, talvez hoje fossem ministros de estado... RS...

 

Tom e Angélica estão na lista dos nossos melhores amigos.

É muito legal e é um privilégio ter amigos como eles.

Tom me disse que nos conhecemos de outras vidas. Deve ser verdade.

 
 

2. Minha Irmã Leda

Em dezembro de 2001, numa tarde de sol, Caetano e eu estávamos jogando uma partida de buraco numa sala envidraçada do Hotel Orotur, em Campos do Jordão. (fotos).

 

Tínhamos passado o Natal lá e ficaríamos até o dia primeiro do ano. Naquele dia, estavam chegando vários hóspedes do pacote de réveillon. Nosso amigo, o maestro Júlio César Figueiredo, havia acabado de passar pelo corredor e prestei atenção quando ele cumprimentou uma hóspede que chegava. Era uma senhora gordinha e simpática e, pelo jeito, frequentadora habitual do hotel, embora eu (que também era habitual no Orotur) jamais a tivesse visto lá.

 

Leda e Milton

 

 

Com sua filha Luciana

 

Leda morreu em

25 de julho de 2019.

À noite, depois do jantar, como sempre fomos para a boate do hotel para ouvir o piano e o bom gosto das canções do Julio. Então, de repente a tal senhorinha se sentou ao meu lado:

- Você não é a Isabel, da TV Mulher?  (todo mundo chamava a Rede Mulher ou de TV Mulher ou de Rede TV... rsrsrs...)

E diante da minha afirmativa:

- Eu tinha certeza que ia te conhecer pessoalmente!!!

 

Era a Leda Cunha, telespectadora de quem eu me lembrava de ter recebido várias perguntas inteligentes no meu programa de TV. Ela estava com o marido, Milton.

 

E, logo, nós quatro,ela, o marido, eu e o Caetano e eu já estávamos no maior papo animado. Assim foi por cinco dias.

 

Só que, desta vez, não era uma simples amizade de hotel. De volta a São Paulo, tudo continuou. A Leda e o Milton nos recebiam em sua casa no Brooklin, vinham jantar aqui. Conhecemos as filhas deles e, quando eu percebi, ela se tornara de fato uma das minhas melhores amigas, ela se tornara mais que uma amiga, era uma irmã!

 

De repente, anos depois de ter conhecido a Leda, eu resolvo dar uma revisada nas reportagens externas que tinham sido feitas para o meu programa Saúde Feminina, da Rede Mulher. E qual não foi a minha surpresa quando, numa das matérias externas, vejo a Leda e a filha dela, Cristiana.

 

Minha primeira reação foi apenas pensar: eis a Leda. Mas, imediatamente, eu percebi que aquela matéria havia sido feita e editada quase dois anos ANTES da gente se conhecer. Não! Era coincidência demais! Liguei pra ela.

 

Ela mal se lembrava de ter dados alguma entrevista de rua, ainda mais para o meu programa. Mas a verdade é que ela nem assistia o meu programa quando meu repórter, Diogo, a escolheu na feira da praça Benedito Calixto para fazer-lhe uma pergunta. Então, ela se lembrava apenas de um dia, na praça, ter dado uma entrevista de rua para algum programa de TV.

Meses depois, ela começou a acompanhar o meu trabalho na TV e, muito depois, é que nos conhecemos em Campos do Jordão.

 

Esta é uma história muito incrível. Para ver as entrevistas da Leda para o Saúde Feminina, clique aqui.

 

 

3. Eduardo, o primo que virou irmão

Maria Isabel Vasconcellos Bitelli, avó do Eduardo e minha tia.

 

 

Dudu, filha da Bebé e mãe do Eduardo, com Bebé

 

Dudu, mãe do Eduardo e seu irmão, Agostinho

 

1953: meu tio e avô do Edu, Augusto Bitelli com Edu e minha mãe, Wanda Vasconcellos, comigo

 

Década de 1980, no barco: eu, Edu e Marilene

 

 

 

Edu e Bia no lançamento do "Fantasma da Paulista"

 

Pedro e Joana, os filhos do Eduardo, na represa.

 

Joana esquiando. Tradição...

 

Meu pai nasceu em 1908. Tinha uma irmã mais velha, Maria Isabel Fomm de Vasconcellos, que se casou com um próspero industrial italiano: Augusto Bitelli.

Bebé, o apelido desta anterior Isabel Vasconcellos, era uma mulher bonita.

 

A família comentava que eu era muito parecida com ela, mas ela era mais bonita que eu. Vaidosa, passou a vida de dieta e terminou seus dias, num lindo apartamento da Avenida São Luiz, vítima da síndrome do pânico, pouco antes de inventarem os antidepressivos que teriam economizado, para ela, longas horas, meses, anos de psicanálise.

Sempre houve, na nossa família, um clima sadio de sensualidade.

 

Não havia, naquela época, essa neurose de pedofilia ou assédio sexual.

Eu era criança e ria das brincadeiras dos adultos, meus primos e tios, que viviam jogando charme e fazendo piadinhas picantes um sobre o outro. Não havia promiscuidade, só sensualidade.

 

Meu tio Augusto viajava frequentemente a negócios para o Rio de Janeiro. Levava a esposa, minha tia Bebé e, enquanto ele trabalhava, ela ia à praia, à piscina do hotel, às compras... enfim, distrações de matriarca a passeio. Mas ele sempre pedia que ela o esperasse, no fim da tarde, para um café no point carioca mais sofisticado da época: a Confeitaria Colombo.

Bebé se arrumava toda e ia esperar o marido conforme ele desejara: sentada sozinha numa mesa da Colombo.

Causava alvoroço. Mulheres não chegavam sozinhas a lugares públicos. Ainda mais mulheres lindas. Todos os homens se ouriçavam e, de repente, Augusto entrava e ia sentar-se ao lado dela, orgulhoso, decepcionando a todos os machos e feliz por aquela mulher ser a sua.

O teatrinho o excitava. Eles mesmo me contaram essa história, quando já eram bem velhinhos, beirando os oitenta, no apartamento da avenida São Luiz.

 

Esses meus tios tiveram apenas dois filhos: Agostinho (médico) e Dudu.

 

Dudu (Angela Bitelli) nasceu em 1924. Tornou-se uma jovem ainda mais bela que sua mãe. Fez faculdade de filosofia quando a maioria das moças não chegava aos cursos superiores e constumava brincar: “Ai, se não fosse meu curso de filosofia, como é que eu ia preparar o macarrão de domingo?”.

Ela era linda, loura, super bem educada, tocava harmônica, cantava maravilhosamente. Casou-se com o Léo (Leopoldo Alfredo Zocchi, economista), um rapagão belíssimo, de uma família de industriais. Ela não queria ter filhos, mas, dez anos antes do surgimento da pílula, teve um: Eduardo.

 

Eduardo era apenas um ano mais novo do que eu, embora fosse filho da minha prima. Eu é que nasci atrasada. Meu irmão mais novo era quinze anos mais velho que eu. Assim, Eduardo e eu fomos as duas únicas crianças da família, até nascerem nossos primos mais novos, alguns anos depois.

Crescemos juntos. Fomos juntos para a escola. Brincávamos na Chácara quando éramos crianças.

 

A chácara teve um papel muito importante na vida do Eduardo. Pertencia aos avós deles, meus tios Augusto e Bebé.

Lá morava a minha avó paterna, Carmen Jansen Fomm de Vasconcellos, bisavó materna do Eduardo. Era uma ótima casa, num bom terreno, onde havia galinheiro, horta, árvores frutíferas, plantação de morangos e um jardim maravilhoso, com um carramanchão no meio e um chafariz. Em alguns domingos, a família se reunía lá para memoráveis almoços e incontáveis cantorias. Todo mundo adorava cantar. Meu tio Raul ( o outro irmão do meu pai) tocava violão e cavaquinho; Dudu, harmônica; meu pai, sax ou flauta e todos cantavam. (Aliás, o Eduardo, que também toca cavaquinho, herdou o do meu pai – que o conserva até hoje)

 

Eduardo e eu passamos dias maravilhosos na chácara.Ele tinha uma casa na árvore e lá escondíamos a nossa caixinha de segredos. Escrevíamos nosso segredos em tirinhas de papel e escondíamos na caixa.

Só me lembro de um: o primeiro amor, o primeiro homem por quem me apaixonei. Eu tinha uns 7 ou 8 anos, ele; 25. (Esse meu primeiro amor só ficou sabendo dos meus sentimentos infantis por ele quando eu me separei do meu primeiro marido e, então, tive um caso com ele. Eu tinha 24 anos e ele, 42).

 

Meu primo mais tarde se apaixonou pela minha prima Avani. Esse era um namoro que os pais deles não aprovavam: Avani era hippie... que horror!!! rsrsrs... Ela se casou, teve filhos, tem netos...

Até hoje, Avani quando vem a São Paulo, encontra-se com Eduardo.

 

No terreno onde ficava a chácara, hoje existe um condomínio residencial com três enormes edifícios.

O que era campo, nas décadas de 1940 e 50, virou cidade.

Para quem conhece São Paulo, a chácara ficava onde hoje é o bairro do Alto da Boa Vista, mais precisamente na rua 7 de setembro, quatro quadras abaixo da Avenida Santo Amaro. Hoje é uma das ruas de acesso para o Shopping Morumbi.

 

Na adolescência, Eduardo e eu continuamos super amigos. Ele aprendeu a esquiar no barco do meu pai, no Clube Castelo, represa do Guarapiranga – esporte que continua praticando até hoje, mais de 4 décadas depois.

Curtíamos juntos as músicas do Beatles no apartamento onde ele morava com os pais, na alameda Fernão Cardin, aqui pertinho da Paulista.

Ao lado, havia um casarão onde funcionava o estúdio da Revista Manchete.

Nós estávamos lá quando Roberto, Erasmo, Wanderléia e outros artistas da Jovem Guarda fizeram aquela antológica foto do calhambeque. Eduardo fotografou. Foi o meu tio Augusto, avô do Eduardo, que ensinou o meu pai a fotografar.

E eu aprendi com meu pai. Eduardo, com o avô. Sempre fomos fotógrafos.

Sempre curtimos música.

 

Quando eu fiz a minha festa tradicional dos 15 anos, Eduardo levou sua banda – naquele tempo, conjunto – de rock para tocar. Na bateria, Próspero, hoje da banda “Joelho de Porco”. (Veja trecho do filme dos meus 15 anos, com Eduardo na guitarra e Próspero na bateria. Clique aqui). Quarenta e três anos depois, Próspero e Eduardo estavam no programa do Ronnie Von, na TV Gazeta, ainda tocando juntos.

 

Muitos dos embalos, das festas, das noitadas, da viagens, das curtições da juventude, Eduardo e eu vivemos juntos. Éramos companheiros, como irmãos.

Juntos descobrimos livros e discos inesquecíveis. “ O Despertar dos Mágicos”, primeira incursão no mundo do esoterismo, por exemplo.

Beach Boys, com seu rock ingênuo e super harmônico.

O quarto dele, nos anos 1960, era uma loucura, meio professor Pardal: você acariciava o corpo da Ursula Andrews (parceira de Sean Connery no primeiro filme 007) num enorme poster na parede e imediatamente as luzes do quarto começavam a piscar, a vitrola (toca-discos de vinil, pra quem não sabe) a funcionar, etc.

Num tempo em que todos se levantavam para trocar o canal da TV, Eduardo construía controles remoto para que sua avó (minha tia Bebé) pudesse aumentar ou diminuir o volume do aparelho sem sair da poltrona.

 

No final dos anos 1970 viramos parceiros no esqui aquático. Agora era eu quem esquiava no barco dele. Ele concluíra seu curso de física no Mackenzie, tinha uma bonita namorada chamada Marilene  (física como ele) e eu, já separada do primeiro marido, colecionava namorados. Mas as tardes de sábado e domingo eram sagradas. Represa. Esqui. Treino. Fosse o tempo que fosse, inverno ou verão, chuva, sol, tempestade, neblina.

Numa tarde gelada de junho só Eduardo e eu nos aventurávamos na água, com nossas meio quentinhas roupas de borracha, uma garrafa de guaraná cheia de conhaque e muito chocolate. Vimos, da represa, que estava rolando uma festa junina no imenso gramado do clube. Fogueira, quermesse, bandeirinhas, pés de moleque, docinhos e... quentão! Oba. Vamos lá tomar um quentão pra nos esquentar. Paramos o barco na praia e subimos a colina suave e gramada em direção à festa. Mas a festa parou para nos ver: roupas de borracha, os meus longos cabelos encharcados, pingando água, os pés descalços meio arroxeados pelo frio e o pessoal todo cheio de cachecóis e japonas (quem lembra desse termo?) e ponchos e gorros e luvas... Nós éramos uns ETs...

 

Em 1983, conheci o Caetano, que tem medo d’água.

 

Em 1984, Eduardo trocou a namorada linda por uma menina grega, também linda, sua aluna, e se casou com ela.

Não fui ao casamento. Porque a grega convidou para padrinhos um ex-namorado meu, do clube, com sua namorada do momento, uma moça por quem ele “me trocara”. Achei uma ofensa.

Mas eu tinha só 30 e poucos anos e não saquei que caíra no jogo da grega. Ela realmente queria me afastar do Eduardo. Eu era uma irmã íntima demais e poderia minar sua exclusividade. Naquele tempo eu não percebia ainda os joguetes das mulheres. Meus modelos de mulher , minha mãe e minhas tias, não tinham esse tipo de comportamento .(Mas também não assistiam novelas da Globo... ).

 

Eduardo e eu nos afastamos tanto que nem sequer conheço os filhos dele, só por fotografia.

Mas nunca deixamos de nos falar por telefone em nossos aniversários ou em outras ocasiões.

 

Agora, mais de duas décadas depois de nossos casamentos nos afastarem, estamos muito mais próximos outra vez.

Ele se separou da grega e tem uma namorada , a Bia, que é psicóloga e com quem ele veio aqui em casa e foi ao lançamento do meu livro (o Fantasma).

 

Eduardo tem dois bonitos filhos (como ele, a mãe, o pai e a avó: todos lindos, como celebridades do cinema) que esquiam tão bem quanto nós e frequentam até hoje a represa.

 

 

 

 

 

 

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