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Cíntia, Miyako e Midori

(ou O País das Maravilhas sob a Mangueira)
 

Por Zedu Lima

(do livro 40 Viagens e 1 Roteiro)

 

(Carlos Lopes, 2003, Mangueira)

 

(Shakaru, 1795, s.titulo)

 

(O autor, Zedu e seu primo Osmar, na casa do avô, no Ipiranga, São Paulo, década de 1950)

 

(Eduardo Albini,sd,  Mangueira)

 

 

 


Com meus oito ou nove anos, morei na casa de meu avô, pai de minha mãe, no bairro do Ipiranga. Ficava no alto de uma ladeira da Rua Gentil de Moura, que aos meus olhos infantis parecia uma montanha. Era uma casa grande, em dois níveis – a sala e os quartos um pouco acima da cozinha -, com uma linda varanda de onde se via a lagoa natural do Clube Atlético Ipiranga lá embaixo.

 

Um quintal com uma frondosa mangueira e um porão que estimulava minha criatividade de garoto solitário. Era meu País das Maravilhas, que nas férias escolares dividia com meus primos que vinham de Osasco, onde moravam, ávidos pelas brincadeiras que eu comandava. Na casa, além de meu avô e minha avó, que se evitavam, moravam suas filhas, irmãs de minha mãe: tia Lina, apelido de Rosalina; Geny, para os sobrinhos e amigos, mas seu nome era Jaira, e as irmãs a chamavam de Dida; e a tia Nena, a Helena, a caçula. Todas trabalhavam como operárias nas Indústrias Matarazzo.


Antes de continuar, devo contar que essa casa serviu de porto seguro para alguns membros da família.

 

Primeiro foram meus pais que tiveram que deixar Mirandópolis, no interior de São Paulo, onde nasci, por conta do mau negócio que fizeram com a venda da padaria que tinham lá.

 

Depois foi a vez de minha tia Anésia, outra irmã de minha mãe, que, com três filhos pequenos e abandonada sem aviso prévio pelo marido, deixou Osasco para lá buscar apoio.
 

Meu avô era sisudo, carrancudo de meter medo. Toda manhã não abria mão de seu ritual: vestia terno risca de giz marrom, com colete, no bolso do qual guardava um relógio de prata, cuja corrente ia até o bolso do lado oposto; botas marrons impecavelmente engraxadas, muitas vezes por mim e poucas vezes por meu irmão, que sempre achava um jeito de escapar dessa tarefa; chapéu-coco e a indefectível bengala, apenas como composição, pois não tinha nenhum problema na coluna ou nas pernas. Depois de todo esse preparo e de um frugal café da manhã, sentava-se à mesa da sala para ler o Correio Paulistano, que eu tinha que comprar no jornaleiro, distante alguns metros daquela casa. Se eu errasse de jornal, tinha que voltar ao jornaleiro quantas vezes fossem necessárias. Quando começava a ler, ai de quem fizesse o menor ruído: bastava ele olhar por cima dos óculos e fazer o seu hum! para limpar a área de quem estivesse por perto. Além da obrigação de comprar jornal, competia a mim pegar o leite deixado no portão, pelo caminhão de entrega, em uma garrafa de vidro.
 

Depois de todas essas tarefas, o País das Maravilhas ficava à minha disposição. O que mais me encantava era subir no pé de mangueira e ficar horas sentado no galho mais alto, me imaginando em mil e outros mundos. Inventava e contava histórias para mim mesmo ou para amigos imaginários. As melhores eu guardava para contá-las aos meus primos quando viessem.
 

Um dia fui impedido de subir na mangueira. Meu tio havia matado um cabrito e o pendurou pelas patas traseiras no galho da árvore para começar a tirar a pele. Angustiado e de longe, via o sangue pingando da cabeça do animal dentro de uma bacia, enquanto seus olhos ainda permaneciam abertos. O bicho seria assado para a festa de casamento da tia Nena com um português. Com isso, o ciclo que irmão chamava de nações unidas familiar ficaria completo: minha mãe era casada com um baiano, a tia Anésia com um filho de italiano, a tia Lina com um espanhol, depois de ter namorado um japonês. Apenas a tia Geny nunca se casou.
 

Quando me cansava dos meus devaneios na mangueira, fazia furos na terra do quintal para jogar bolinha de gude. Um quartinho ao lado guardava meu carrinho de rolimã, que eu mesmo fizera, e a bicicleta do meu irmão que eu pegava quando ele saia para trabalhar, e tentava andar pelo corredor estreito do jardim. Mesmo depois de tantos tombos, arranhões nos cotovelos e joelhos, não consegui aprender a andar nas duas rodas.
 

Depois de ‘viajar’ pelos galhos da mangueira, o que mais gostava de fazer era brincar no porão escuro, onde estava guardada uma enorme forma de madeira para assar pão, única lembrança da padaria que meus pais tiveram. Com o formato de um barco, eu viajava na forma de pão, como os piratas dos filmes que assistia nas matinês dos domingos no Cine Samarone.
 

Quando me enchia das brincadeiras, ia espionar meu tímido irmão paquerar, pela janela, a bela Catarina. Ela morava numa casa mais abaixo, separada da casa do meu avô por uma rua e um terreno onde ficavam as torres de transmissão de energia elétrica da antiga Light, cujos fios roubavam minhas pipas.


Tudo corria tranqüilo às mil maravilhas no meu País das Maravilhas até o dia em que uma família japonesa, com três meninas com idades próximas a minha, mudou-se para a casa ao lado.

 

Arredias e ariscas, custou para elas me dizerem o nome: Cíntia, Miyako e Midori. Cíntia era gordinha e a mais velha. Era a primeira vez que via tão de perto pessoas muito diferentes das que eu conhecia, e o som daqueles nomes, mais os olhinhos puxados, atiçou minha curiosidade. Queria fazer amizade para descobrir que mistérios poderia haver na casa onde moravam. Deveria ser um País das Maravilhas mais fantástico e maravilhoso do que o meu. Mas elas não se abriam. O máximo era um cumprimento sorridente, que fechava ainda mais seus olhinhos.


Com a espontaneidade de uma criança atrevida, fui conseguindo, pouco a pouco, romper a barreira oriental, e começamos a brincar juntos. Primeiro foi pular corda, depois – faria tudo para conquistar a confiança – jogar amarelinha. A partir daí, os sorrisos se ampliaram em risadas e os gestos ficaram mais amigáveis. Mesmo assim, não permitiam que eu entrasse na casa delas, o que eu mais queria. No portão se despediam, fechando-o na minha cara.
 

Um dia, não sei por quê, ao acompanhá-las até o portão no final das brincadeiras e já me virando para ir embora, me convidaram para acompanhá-las. Entrei, precavido e assustado, mas foi com decepção que vi a mãe delas vestida igual à minha, passando roupa. O ferro elétrico era como o nosso, assim como a mesa, as cadeiras, o tapete no chão, o armário na sala e os utensílios na cozinha. Elas acompanhavam meu olhar, tão curioso quanto o delas. Logo a frustração deu lugar a uma recuperada felicidade ao ter certeza de que o único País das Maravilhas continuaria a ser a casa do meu avô, agora frequentado por três Alices de olhinhos puxados: Cíntia, Miyako e Midori.