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(Picasso, 1903, O Velho Guitarrista)

 

https://youtu.be/o5eer7GYHZI

 

https://youtu.be/BgGZspMGwBQ

 

 

 

Música

por Stela Maris Grespan

 

Dos dias e noites em que delirei por febre de quarenta graus, por complicações de um sarampo que quase me levou (aviso aos negacionistas das vacinas: sarampo mata sim), não tenho lembranças. Contaram-me depois que Papi Pujol dormiu lá todas as noites, numa UTI improvisada. O que recordo, na fase de recuperação, são das maçãs raspadas em colheradas em minha boca, dos sucos de laranjas e limonadas, e do meu riso ao ouvir minha mãe cantar, ainda mais desafinada do que o habitual, só para ver-me rir em minha profunda prostração. O riso salva e ela bem o sabia.


Minha casa sempre foi muito musical. Ouvíamos muito música, e havia muitos discos de 78 rpm comprados na RCA Vitor na Rua da Praia. Ainda lembro do selo com o cachorro. Eram ecléticos lá em casa. De sambas canções nas potentes vozes de Chico Alves, João Dias, Carlos Galhardo, Silvio Caldas, Dalva de Oliveira, Araci de Almeida, às célebres marchinhas, aos discos lindos de Dorival Caymmi, juntavam-se outros de ritmos tão diversos como boleros e tangos ( uma paixão) e músicas italianas com ênfase nas cantadas pelo célebre Caruso e espanholas na voz de Sarita Montiel e outras cujos nomes já esqueci.

 

E o rádio só descansava depois do almoço, pelo espaço da tarde e era religado pontualmente às 19 horas para a audição do Reporte Esso. O noticiário criado antes de eu haver nascido, nos tempos do Getúlio, começou como um noticiário da Segunda Guerra em 41 e durou até 1970. Dele lembro da música e da voz do Heron Domingues. Creio que deve ter sido o primeiro instrumento de difusão ideológica americana por aqui. Não vem ao caso, agora.


Nas noites frias, deixavam-me ficar na cama com eles, ouvindo a Rádio Nacional, cômicos como O Balança mas não cai, programas do Ari Barroso, muita música, lançamento de estrelas promissoras como a maravilhosa Dolores Duran, entre tantas. Dolores, cardiopata grave desde a Febre Reumática que tivera aos oito anos, tornou-se, em seus últimos anos da vida breve, invulgar compositora com parceiros como Antônio Maria, João Donato, Billy Blanco e Tom Jobim. Falecida 5 dias após o nascimento de meu irmão em outubro de 59, havia lançado há pouco A noite de meu bem que embalou nossas férias de verão em Tramandaí no som rouco dos alto-falantes instalados na praia. Lembro muito de meu irmão agitando as perninhas, alegremente, quando a ouvia. Era ótimo. Quando chorava, a gente cantava e ele parava quase na hora. Como esquecer?


Quando ganhei, em um Natal, um rádio moderno, de baquelite vermelho, foi a minha festa. Este presente e o Tesouro da Juventude, foram inesquecíveis. Passei a estudar ao som das rádios. Depois entrou a FM e guardo boas recordações da Rádio Guaíba FM e da Rádio Universidade FM. Um outro padrão e só tocava música de qualidade. Com elas passei a ouvir a incipiente bossa nova, muito rock que adorava, descobri o jazz, as canções americanas, músicas clássicas e seus autores até então quase desconhecidos aos meus ouvidos.

 

Um universo se expandia. Ainda lembro da emoção de ouvir pela primeira vez, na voz de Ray Charles a canção Stella by starlight e da minha ânsia de escrever a letra num inglês como ouvia e que depois tinha que ser corrigido. Ajudou em meu aprendizado da língua, ainda não dominante e global. Por aqueles tempos, o francês era, ainda, a língua culta que resistia bravamente nas escolas e academias. E quem não ouvia Edith Piaff, Ives Montand, Jacques Brel e Et Maintenant com Gilbert Becaud? Vou além com o Charles Trenet e suas chansons cantadas numa voz macia bem ao meu gosto. Como esquecer a sua importância em composições como Que reste-t-il de nos amours, ou Douce France, transformada em hino da resistência francesa nos anos de 43 do século passado e até hoje regravadas? Ou de Henri Salvador que morou no Copacabana Palace nos anos 50 e foi por alguns considerado um precursor da bossa nova?


Em meu pequeno grupo de amigos de infância, gostávamos de cantar todas de Cely Campelo a Elvis Presley, sambas tradicionais e as músicas com letras quase infantis como o Trevo de quatro folhas, O Pato, e Lobo bobo da qual, por ausência de malícia, não compreendíamos o sentido do jantar o chapeuzinho vermelho. Sempre com qualquer coisa na mão à guisa de microfone. Também dançávamos muito, especialmente rock, e eu, pequena e leve, era atirada pra cima, para os lados e passava entre as pernas do amigo Pupi, mais velho e forte, imitando o que víamos no cinema e na recente TV em preto e branco que, por fim, chegara ao RS e, vagarosamente, foi relegando o rádio ao exílio. Mas o meu baquelite resistia, sempre ligado, até a chegada dos primeiros rádios de pilha. Meu pai apaixonou-se por eles, por seus fones de ouvido, quando podia adormecer com música sem incomodar minha mãe. Teve muitos, e creio que até os anos noventa, havia um de capa azul calcinha em sua mesa de cabeceira.

 

A TV mudou a vida das famílias para sempre, porém de início serviu para acolher e estreitar laços com os vizinhos que ainda não a tinham. Lembro dos musicais e das apresentações das divas Maísa, Elizete Cardoso e muitas mais em trajes de gala; os tempos áureos da TV como a elite das comunicações destinada a uma classe média em ascensão, quando a bolsa devia combinar com o sapato!
 

Também nos anos sessenta surgiram, para ficar em nossas vidas, muitos britânicos, em particular, Os Beatles com suas letras muitas vezes ingênuas, mas com um som fantástico. Em 60, perdemos minha avó paterna e foi doloroso demais, até pela subitaneidade da sua morte. Entretanto, a perda afetiva em família, em setembro de 66, foi melancolicamente marcada por Yesterday, tocada incessantemente nas rádios. Esta perda foi determinante em minhas escolhas futuras, até no jeito de entender e exercer minha profissão.


E foram tantos, mas tantos os grandes compositores e cantores ( os cantautores) que se sucederam desde então que minhas memórias, por vezes fotográficas, remetem-me a uma certa época ou a um momento muito particular ligados, indelevelmente, a uma música. Minha trilha musical de um filme em 3D, um longa metragem onde sou atriz, escritora e diretora, reescrito no dia a dia com preciosos coadjuvantes, protelando-lhe a estreia antes que coincida com sua inevitável última sessão.
 

Por isso eu quero cantar com meu fio de voz. E dançar, sempre que posso, ainda que só ou involuntariamente como hoje me aconteceu. Lavar a louça, com fones de ouvido e sambar ao som de Xandy canta Caetano. Uma boa ginástica para não adeptos de academias onde som e ritmo são meros ruídos aos meus pobres ouvidos, já meio gastos pelo tempo.


Um bom resto de dia aos amigos e companheiros de jornada e da música atemporal. Esta permanecerá.