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(Picasso, 1903, O Velho Guitarrista)
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Música por Stela Maris Grespan |
Dos dias e noites em que delirei por febre de quarenta graus, por complicações de um sarampo que quase me levou (aviso aos negacionistas das vacinas: sarampo mata sim), não tenho lembranças. Contaram-me depois que Papi Pujol dormiu lá todas as noites, numa UTI improvisada. O que recordo, na fase de recuperação, são das maçãs raspadas em colheradas em minha boca, dos sucos de laranjas e limonadas, e do meu riso ao ouvir minha mãe cantar, ainda mais desafinada do que o habitual, só para ver-me rir em minha profunda prostração. O riso salva e ela bem o sabia.
E o rádio só descansava depois do almoço, pelo espaço da tarde e era religado pontualmente às 19 horas para a audição do Reporte Esso. O noticiário criado antes de eu haver nascido, nos tempos do Getúlio, começou como um noticiário da Segunda Guerra em 41 e durou até 1970. Dele lembro da música e da voz do Heron Domingues. Creio que deve ter sido o primeiro instrumento de difusão ideológica americana por aqui. Não vem ao caso, agora.
Um universo se expandia. Ainda lembro da emoção de ouvir pela primeira vez, na voz de Ray Charles a canção Stella by starlight e da minha ânsia de escrever a letra num inglês como ouvia e que depois tinha que ser corrigido. Ajudou em meu aprendizado da língua, ainda não dominante e global. Por aqueles tempos, o francês era, ainda, a língua culta que resistia bravamente nas escolas e academias. E quem não ouvia Edith Piaff, Ives Montand, Jacques Brel e Et Maintenant com Gilbert Becaud? Vou além com o Charles Trenet e suas chansons cantadas numa voz macia bem ao meu gosto. Como esquecer a sua importância em composições como Que reste-t-il de nos amours, ou Douce France, transformada em hino da resistência francesa nos anos de 43 do século passado e até hoje regravadas? Ou de Henri Salvador que morou no Copacabana Palace nos anos 50 e foi por alguns considerado um precursor da bossa nova?
A TV
mudou a vida das famílias para sempre, porém de início serviu para
acolher e estreitar laços com os vizinhos que ainda não a tinham. Lembro
dos musicais e das apresentações das divas Maísa, Elizete Cardoso e
muitas mais em trajes de gala; os tempos áureos da TV como a elite das
comunicações destinada a uma classe média em ascensão, quando a bolsa
devia combinar com o sapato! Também nos anos sessenta surgiram, para ficar em nossas vidas, muitos britânicos, em particular, Os Beatles com suas letras muitas vezes ingênuas, mas com um som fantástico. Em 60, perdemos minha avó paterna e foi doloroso demais, até pela subitaneidade da sua morte. Entretanto, a perda afetiva em família, em setembro de 66, foi melancolicamente marcada por Yesterday, tocada incessantemente nas rádios. Esta perda foi determinante em minhas escolhas futuras, até no jeito de entender e exercer minha profissão.
Por isso eu quero cantar com meu fio de voz. E dançar, sempre que posso, ainda que só ou involuntariamente como hoje me aconteceu. Lavar a louça, com fones de ouvido e sambar ao som de Xandy canta Caetano. Uma boa ginástica para não adeptos de academias onde som e ritmo são meros ruídos aos meus pobres ouvidos, já meio gastos pelo tempo.
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