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(Edward Hopper, 1929, Chop Suey)

Entre os Mortos e os Vivos, Vivo.

por Stela Maris Grespan
 

 

A semana passada se iniciou com a tristeza da despedida de Antônio Cícero, bastante comentada por amigos, intelectuais e fãs de sua poesia, composições e escritos. Muitas foram as reflexões sobre a chamada morte assistida facultada ao poeta pelas leis suíças que são bastante rígidas, para que as solicitações de eutanásia sejam aceitas. Não sei se foram as eleições, mas, como de hábito, não vi discussões em torno do tema tão delicado e complexo.

 

Nesta mesma semana, tivemos o XXI Congresso Brasileiro de Cardiogeriatria em SP. É sempre um encontro marcado pelo que há de novo na prevenção e tratamento de pacientes idosos, das evidências de eficácia ou não de procedimentos médicos, de novos dispositivos que acrescentem qualidade aos anos. Encontros para afiar nossos floretes e esgrimir na eterna batalha contra a Indesejada.

 

Encerrei a semana assistindo ao filme do Pedro Almodóvar, um de seus experimentos em língua inglesa. Atrevo-me aqui, como amante do cinema, a emitir minhas impressões sobre o filme. Não sei se motivada pelo fato de ser uma profissional da saúde, de ter passado os últimos 30 anos dedicados ao tratamento de idosos ou àqueles que tornaram-se idosos, junto comigo, na continuidade de nossas relações, por minha intimidade com a finitude, com as formas de viver e de morrer, eu lhes digo com sinceridade: Gostei muito. É o melhor Almodóvar? Creio que não! É um filme para todos? Também não! Registro aqui minhas impressões sem receios de spoiler, pois foi bastante divulgado o tema central que trata da finitude e da escolha e da escolha da “boa morte” por Martha, personagem vivida por Tilda Swinton a buscar o amparo de sua amiga Ingrid, interpretada por Julianne Moore, para a sua concretização.

 

Outros personagens pontuam o filme, em flashbacks, outros dividindo o mesmo tempo dos personagens centrais, a exemplo do sempre querido John Turturro. Sobre a temática abordada, o filme espanhol Mar Adentro e o americano, dirigido e interpretado por Clint Eastwood -Menina de Ouro foram mais impactantes. No entanto, Almodóvar, com grande sensibilidade e serenidade, naturaliza a experiência da finitude e da morte, reconcilia o passado e o presente, as emoções vividas como fazendo parte de um script não escrito, mas construído em momentos de fria racionalidade ou submetido às paixões, na busca instintiva pela felicidade, sempre pontual, como o sol infiltrado em nuvens densas, mais comuns à realidade da vida.

 

A fotografia é belíssima e a trilha sonora de Alberto Yglesias faz a perfeita fusão entre imagens e sons e dizem tanto quanto a palavra dita, sussurrada ou silenciada. A ambientação das cenas se parece com os quadros de Edward Hopper, um pintor da solidão, com suas cores próximas às paletas costumeiras de Almodóvar. Os contrastes harmoniosos dos vermelhos, verdes e azuis em todos os matizes, da observação da vida através das grandes janelas de vidro abertas às paisagens fragmentadas da cidade de Nova York ou das montanhas e das árvores de Woodstock . Há uma referência direta ao pintor na visão de um de seus quadros na cena de chegada ao refúgio. Aqui reflito se a escolha do lugar foi aleatória ou faz alusão direta ao festival de rock de 69, símbolo de rebeldia em uma época conturbada como a que atualmente vivemos. Poderia ter escolhido o Oregon, um dos estados estado-unidenses em que a legislação permite a eutanásia ou morte assistida.

 

O filme não é opressivo. Respira constantemente por meio de flashbacks cheios de ironias bem humoradas às hipocrisias sociais marcadamente de origem religiosa, nos quais sorrimos e até rimos. O prazer estético contemplativo a que somos induzidos pelas imagens se contrapõe ao desconforto causado pelos diálogos entre os personagens, especialmente, entre as amigas protagonistas. Fiquei atenta aos diálogos iniciais, no reencontro das amigas, após anos separadas, onde há uma formalidade e artificialismo como se fossem duas más atrizes recitando um texto. Depois, pensei em como isto pode ser verdadeiro entre pessoas que perderam a cumplicidade da amizade pela separação física e cujo encontro se atualiza numa situação de grande sofrimento. Dá para ser muito diferente? O constrangimento de um pedido de assistência ao suicídio programado e, estoicamente aceito, pode conduzir a conversas descontraídas e alegres?

 

Devemos parecer sempre felizes, risonhos e superficiais, como a sociedade exige?

 

Muitos dos diálogos se parecem com discursos, até solilóquios, sob uma racionalidade fria, particularmente, quando iniciados por Martha ( Tilda, maravilhosa!), com a objetividade de quem usou da morte para libertar-se, para encerrar capítulos que, se antes vividos como dramáticos, agora são narrativas que beiram o ridículo.

 

Não é assim que vemos certas memórias superadas pela distância temporal e maturidade? O personagem de Turturro é, simultaneamente, o ombro solidário e realístico para Ingrid ( Moore, em ótima e cálida atuação) no presente, um palestrante e militante das alterações climáticas como apocalípticas para o tempo futuro, a memória de um passado recente da ameaça pandêmica da Covid que muitos tentam esquecer. Entre os traumas deixados pelo confinamento, diz do rebaixamento do desejo e do prazer como motivação do viver, da falta de perspectiva ante governos neoliberais descomprometidos com o bem estar dos humanos. Martha também comenta sobre a perda dos prazeres simples que a música transmite ou da da leitura de seus autores favoritos como Faulkner e Joyce.

 

Tudo no filme está sutilmente interconectado e sujeito às nossas percepções. O tempo passado, presente e futuro estão articulados numa experiência onde os seus limites arbitrários se confundem e dissolvem. Assim, este pequeno papel do desiludido militante da ecologia faz a ponte necessária com outra grande referência do diretor e roteirista, sentida desde o início do filme e que se conclui ao final, pelo conto de James Joyce, Os mortos, contido na antologia de contos Os Dublinenses.

 

Em Nova York as amigas assistem a uma inusitada neve cor de rosa, caindo, suavemente, sobre a cidade. Em outra cena, já em Woodstock a neve é observada com enlevo e silêncio pelas amigas. Numa noite de familiar intimidade, as duas riem, espontaneamente, ao rever uma comédia Buster Keaton em suas múltiplas escapadas da morte, graças ao DVD, um dispositivo tão agregador no passado recente, antes da era dos streaming.

 

Da alegria à melancolia, basta um outro filme -“ Os vivos e os Mortos” com roteiro adaptado do mesmo conto de Joyce e dirigido pelo imenso John Huston, poucos meses antes de morrer. Declamam juntas com o protagonista o parágrafo final do filme/ livro, quando após uma epifania, observa pela janela a copiosa neve recobrir as ruas de Dublin e sua imaginação o transporta para longe e sobrevoa todas as regiões da Irlanda cobertas pela mesma neve. Seus telhados, os campos e florestas, as campas dos cemitérios e nos fala que a natureza, nosso elo comum, cedo ou tarde, cairá sobre todos, inapelavelmente, entre nós, pois a vida coexiste com a morte em todos os momentos.

 

Achei belo. Uma ode ao processo do viver, ao simples, à arte e à literatura, ao que não se esconde ou impõe, ao direito ao nosso corpo e ao seu destino. E me vejo de volta ao Antônio Cícero e seus belos versos “ É claro que estou exposto eu como todos os outros animais às intempéries que cedo ou tarde nos ferem; mas aqui a noite, seda, suavemente me enleia: espelhos olhares vinhos Uvas cachos rosas risos e ali, do lado de lá das lâminas de cristal tão tranquila e cintilante quanto o céu, sonha a cidade. Desperta-me um celular: a morte também tem arte.”

 

Porventura.