(foto by Stela Maris
Grespan)
Perambulação
por Stela Maris Grespan
(Ver
Chamada.)
Lá em casa, em minha infância, havia uma lista de
necessidades e prioridades. Para meus pais, a casa própria era a
primeira. Estou deixando de lado, claro, educar os filhos, comer bem,
vestir e calçar com dignidade. Carro só fomos ter quando eu já estava no
ginásio. Só usávamos transporte público e para nossa sorte havia uma
parada na esquina de casa. Para outras situações, era o carro de praça,
como eram conhecidos os táxis. Quando necessário, em madrugadas de
viagens, tinham que ser contratados na véspera. Telefone, outro bem
difícil e caro, veio um pouco antes do carro. Até então, telefonar só
por necessidade e rápido, para não incomodar os raros e privilegiados
vizinhos ou o farmacêutico da esquina. Cresci sem traumas por estas
“deficiências” que hoje são inimagináveis, para qualquer adolescente.
Assim, desde criança andava muito a pé e era estimulada pelo pai que me
levava para a escola diariamente. Era uma boa caminhada matutina, mas
passava rápido, pois ele foi sempre um grande contador de histórias
maravilhosas, muitas das quais despertadas na sua memória por algum
estímulo visual neste trajeto ou inventadas para educar-me. Foi me
mostrando um mundo que habitualmente os passageiros de carro não veem.
As cores do céu nas diferentes estações do ano, os pássaros, as belas
árvores de outono à primavera, a sujeira nas calçadas como exemplo do
que não pode ser feito por um cidadão, uma casa sendo pintada, um novo
portão em outra, detalhes que não costumam ter relevância para as
pessoas, ainda mais nos tempos acelerados de hoje. Fui crescendo assim,
com este amor pelo andar, ver as coisas pequenas e, irremediavelmente,
inapetente por carros. Fosse eu poeta, escreveria sobre o valor das
insignificâncias ao modo do genial Manoel de Barros.
Este ano, tive restrição médica para andar por dois longos meses.
Recupero aos poucos, neste mês de abril, o precioso tempo perdido. E
aprecio, ao modo rousseauniano, ser uma caminhante devaneando
solitariamente.
Hoje percorri mais de dois quilômetros pela Vila Mariana. Realmente, não
foi fitness nem adequado para a prevenção de doenças cardiovasculares,
pois parava com frequência, observando as mudanças de um cenário tão
conhecido no passado. Quarteirões inteiros demolidos para novas
edificações, algumas já em construção, outras em futuro anunciado nos
terrenos cercados. Apartamentos de 80 a 200m, 2-3 vagas de garagem, área
de lazer a 50 metros de altura, piscina, visite apartamento mobiliado,
corretores de plantão, etc… etc…
Que tristeza senti! Naqueles já em
fase semifinal, percebia que grande parte dos novos apartamentos não
receberão sol em nenhum momento do dia por conta dos antigos que lhes
fazem sombra. Que horror! Contei quatro salões de beleza em duas
quadras, três farmácias próximas umas das outras, mercados OXXO
disseminados, inúmeras cafeterias. Novos estabelecimentos de comida
árabe, tentando recuperar um espaço antes, majoritariamente, ocupado por
inúmeras famílias sírio-libanesas que hoje, perderam seus terrenos e
culinária, para os dezoito novos restaurantes e afins de comida
oriental, basicamente japonesa, segundo li na folha e constato nas
andanças.
Duas faculdades ocupam antigos e sólidos enormes casarões.
Ainda restam uns poucos
sobradinhos encantadores, hoje convertidos em espaços comerciais
diversos. Lanço-lhes um olhar de antecipada despedida, bato uma foto,
quando me vejo só e segura, respiro o ar de cidadezinha pacata de
algumas ruas com escassos transeuntes. Sou preenchida por saudades de
minha mãe que tanto gostava destes nossos passeios de sábado, tomo um
café e volto de Uber, pois a noite desceu.
Acho que gostei de Dias Perfeitos, filme japonês dirigido por Win
Wenders, que ressoa em mim pelas experiências comuns de viver as coisas
simples e imateriais, de sons, cores e aromas que são de difícil
tradução discursiva.
Passeios ao léu, que tomo de empréstimo ao Gerard Lebrun, por uma cidade
que se transfigura e dissolve as memórias da experiência.
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