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(Wermer Forman, 1376, A Morte Estrangula Vítima da Peste)

 

Sobreviventes é o que somos! E, em meio a tudo, ver a quantidade de negacionistas, pais que não vacinam seus filhos e ver o sarampo voltar entre nós! Que miséria é a ignorância!

 

Meu Caro Amigo

por Dra. Stela Maris Grespan

 


 

Meu Caro Amigo

 

Há quanto tempo não nos falamos assim, cara a cara? Desde aquele último encontro no Parque. Já́ faz tanto tempo. Eu não sei por onde andas, tu, amante eterno de navegações, por isso estou mandando esta carta aberta, pela nuvem, com a esperança que ela chegue aos teus olhos. Mas tenho falado muito contigo, sempre o meu melhor escutador, e tenho muito pra contar, mais do que já́ te contei durante mais de cinquenta anos.

 

Já́ sabes o quanto está feio por aqui e desta feita te livraste do horror. Já se vão 17 meses de pandemia e os números não estabilizam, diminuem pouco, aparecem variantes, e todos estamos cansados e muitos saem às ruas sem máscaras, sem manter distância, como que por puro desamparo, num desafio à sorte.

 

Naturalmente, podes imaginar como eu, aqui sozinha, nesta solitude, sobrevivo. Ah, sinto até vergonha de admitir que em 17 de março do ano passado, despedi-me da secretária dizendo - até daqui a vinte dias, cuide-se muito! Como eu, médica, vendo o horror na Europa, pude dizer isto? Bem, foi um período muito estranho. Confinamento. Espiava às ruas pela janela, e as ruas eram desertas. Tomava sol, ainda de verão, e via os vizinhos desconhecidos, fazendo o mesmo. Muitos fumavam e bebiam cervejas, como se fosse umas férias sem grana pra viajar.

 

A primeira coisa que fiz foi resgatar da prateleira aquele livro do infectologista “ A história da humanidade contada pelos vírus” que eu havia ganho e não lido. Depois pensei em como o conhecimento evoluiu desde que frequentamos os bancos universitários. Lembra? Aliás, estudamos muito mais parasitas e bactérias do que os vírus, exceto os consagrados como da pólio, sarampo, rubéola e outros que tais.

 

Nosso Brasil, pobre ( e que agora voltou a conviver com a fome) sem luz, água encanada, esgoto, moradia, morria mesmo era de verminose, subnutrição, tuberculose e destas outras viroses, por desassistência, pobreza. Ah! E de dengue, malária, doenças dos trópicos e da ambição desmedida. Era ainda um país rural, naqueles tempos. Morria-se bem mais cedo do que agora, por falta de tudo. Bem, resolvi voltar a estudar e muito, infectologia, imunologia, a diferença entre os tipos de vírus, DNA, RNA. Nos intervalos assistia TV. Jornais, basicamente. Daqui, de Portugal, Espanha, a porcaria da RAI que são as línguas que mais domino. Rapaz, estava obcecada. Dormia lá pelas quatro, acordava ao meio dia e lia tudo na internet, YouTube, comia omeletes sem fome, voraz mesmo só por saber.

 

Sabes como funciono, preciso entender o inimigo, dominá-lo pela razão, pra viver livre. Que engano! Este coronavírus é uma caixa de surpresa, um desafio pra todos nós, as mortes como afogamentos, os primeiros entendimentos dos cientistas ( e há tantos! incalculáveis!) e a gente impotente, ainda a ouvir o Nefasto a dizer que era uma gripezinha, negando a gravidade, a dor das vítimas, debochando, imprecando, dizendo escatologias impensáveis, e, sobretudo, incitando o povo a ir às ruas, a trabalhar e em guerra com todos os governadores que faziam o discurso e adotavam todas as medidas sanitárias recomendadas. Desafiou a OMS! Pode?

 

Bem, cheguei a um ponto que cansei. Sabes, pego um “ enjoo” de tudo que excede e tomei consciência que iria pirar, caso não parasse a busca crescente por informações que englobavam também a história da medicina brasileira no campo da saúde pública, desde o início do século passado, até como conseguimos erradicar a pólio em nosso meio, lá pelos anos 80 com a magnífica campanha de vacinação em massa. Descobri no site da FioCruz que meu colega de classe, amigo e vizinho, o seu Becker, tinha tido uma grande participação na logística aplicada. Lembras dele? Até chorei de emoção! E junto vieram as campanhas do sarampo, coqueluche, rubéola! Que sucesso! E eu lembrava de como nós, que a elas não tivemos acesso, escapamos tantas vezes da morte ou de suas terríveis sequelas.

 

Sobreviventes é o que somos! E, em meio a tudo, ver a quantidade de negacionistas, pais que não vacinam seus filhos e ver o sarampo voltar entre nós! Que miséria é a ignorância!

 

Por este tempo havia um Ministro da Saúde que era médico, um tal Mandetta, que foi deputado e um dos cassadores da Dilma, ortopedista, mas que resolveu vestir a camiseta da saúde, da defesa de nosso pobre SUS, de nosso sempre trabalho, e resolveu acatar as orientações de nossos cientistas. Menino, a briga foi feia com o fascista que está governo. Não deu outra: demissão. E o tempo passando, passando, gente morrendo, gente chorando, famílias sem poderem reverenciar seus mortos, cemitérios cheios, coveiros exaustos, cenas horripilantes que nem quero lembrar e te fazer chorar.

 

O mundo todo confinado, cientistas dobrando noites em busca de uma vacina pra ontem! Depois destes primeiros tempos, eu havia me refugiado em programas de um certo canal, onde uns caras reformavam casas, vendiam, compravam, etc… Quase virei empreiteira… ali, ficava, sentada, literalmente anestesiada, presa aos scripts invariáveis, enquanto a ferida ia cicatrizando. Via os padrões de construção dos USA e Canadá, quantidades absurdas de madeira.

Tu não tens ideia do quanto, e a minha ferida fechando e eu comecei a pensar de onde vinha tanta madeira? E vendo o horror que o Sales, estava fazendo em nossa Amazônia, destruindo, queimando tudo e eu comecei a pensar nos mercados de nossa madeira e a raiva ganhando corpo. Depois, um nojo por ver tanta gente se desfazendo de coisas úteis, destruindo sem dó o que falta para milhões de pessoas pobres de lá mesmo, do que a bolha imobiliária fez na economia americana e com as famílias que tudo perderam por hipotecas impagáveis e aí, encerrei esta etapa que eu chamei de tentativa de alienação terapêutica. Como um coma induzido

 

Mas, durante este tempo, assistia aos psicanalistas em suas lives, ouvia música, lia um pouco de poesia, mas romances não conseguia. Nada no exterior mudava, exceto a paisagem da janela, pequenas flexibilizações, mais carros nas ruas, compras por internet, limpezas exaustivas de tudo o que entrava pela porta. Meu único elo com a humanidade viva era a dos vizinhos pela janela ou do entregador do super. E houve um tempo em que nos dedicamos a bater panelas e gritar fora Bolsonaro e eu pude fazer o mapa da vizinhança: quem era contra ou a favor.

 

Até que um dia, cansamos também disto, como cansamos de ver italianos, franceses e depois brasileiros cantando a dor nas varandas das casas pra mitigar a desesperança. Depois, outro ministro médico da saúde pede demissão, como diria o Aldir Blanc, outra de nossas vítimas, por incompatibilidade de gênios. Ficou um general no lugar. Aliás, os ministérios têm tantos militares, da reserva ou da ativa, mais de seis mil, como nunca se viu, em todos os anos da ditadura no Brasil.

 

Querido, vou ter que parar por aqui. Tenho que acabar o almoço. Agora faço tudo dentro de casa, limpo, lavo, passo ( o indispensável), preparo almoço. Da medicina para o fogão! Um grande passo para a minha humanidade, kkkkk. Esqueci de te dizer que estou com os cabelos compridos. Sim, acreditas? Como tu gostavas, mas agora estão totalmente grisalhos, mas até que bonitos. O problema é que quase não me reconheço nas fotos nem no espelho.

 

Algo mudou, e veio de dentro pra fora. Talvez falte o riso, ou o brilho alegre de meu olhar, sei lá. Estou diferente. Quando tiver mais um tempinho, não te preocupes, seguirei contando as coisas, assim do meu jeito, sem uma cronologia certa dos fatos, porque o tempo também mudou, sabes? Amanhece, anoitece, e para os poucos, como eu, que não precisam trabalhar, todos os dias são segunda-feira.