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(Giovanni Lanfranco, sec.XVII, A Mutiplicação de Pães e Peixes)

 

 

..Até os dias de hoje, quando nunca foi tão difícil aprender e sustentar prioridades na partilha diária de uma coisa chamada tempo..

 

 

A Arte de Repartir

por Stela Maris Grespan

 

 

Tem coisas que a gente aprende e permanecem inalteradas. Repartir é uma delas, mas exige constância e afinco.

Do tempo em que me obrigavam a dividir os brinquedos com os amiguinhos, do tempo de repartir o pão e o vinho na cerimônia cristã, do tempo de ensinar os filhos e repartir com eles a sua experiência e amor ou ainda do tempo de exercício profissional em que procurei repartir um tipo muito específico de saber com os pacientes e a responsabilidade comum em promover a saúde, até os dias de hoje, quando nunca foi tão difícil aprender e sustentar prioridades na partilha diária de uma coisa chamada tempo, vejo que ainda sou a mesma, embora mais amadurecida.

 

Até na arte de procrastinar!
 

Gosto de uma frase atribuída ao Sócrates, o filósofo, que diz: O ser se diz de múltiplas formas. Haja forma, especialmente num mundo que anda engatinhando em termos de divisão de trabalho no quesito sexo. Assim, nós mulheres, conquistamos a duras penas, um pouco mais de liberdade e capacidade de realização pessoal, em algumas sociedades, com o ônus de manter as demais responsabilidades do tradicional papel feminino de cuidadoras, no caso da família em geral.

 

Assim, muitas culturas apreciam o fato de terem mulheres na família e, não raro, até as impedem de casar-se. Isto aconteceu com meu bisavô materno que tendo 3 filhas mulheres em meio a uns 5 homens, nunca apreciou nem consentiu que as tias se casassem. Nunca era um bom partido. Duas morreram na beirada dos 90 anos, enquanto outra foi-se, já na menopausa, dizia minha mãe que de tristeza. As velhas tias cuidaram dos pais até a morte, depois dos irmãos e sobrinhos de sangue ou adotivos e até de mim, sobrinha neta. Passavam o dia em cuidados, das finanças, da louça e dos talheres, dos tachos de marmelada, goiabada, do queijo e da manteiga, da carne enlatada em meio à gordura, das roupas limpas e da máquina de costura de onde saiam camisas e bombachas artisticamente feitas para todos os homens da família. Poucas vezes, exceto em doenças ou funerais, as vi lamentarem a sorte.
 

Mas, digressão feita, retorno ao tema de saber repartir, agora, o tempo laboriosamente esculpido por nossas histórias reais ou sonhadas. Em tempos em que ainda não estamos (e muitos jamais estarão) totalmente aposentados, esta tecnologia toda que adentra nossas vidas e surrupia por vezes o tempo da reflexão, da intimidade conosco mesmos, do sentir-se, pensar e existir, também nos rouba um tempo para cultivar amizades reais, filiais e parentais. Para os curiosos, como eu forever, a coisa fica pior.

 

Há que tomar o café da manhã aproveitando um tempo em que, não havendo ninguém mais à mesa, informar-se do que se passa na cidade, no país, no mundo. Presa a atenção, o café prolonga-se e, o tempo se dissipa insensível e invisivelmente, segundo sua própria natureza. O tempo para as tarefas domésticas e para os cuidados pessoais tem que ser rapidamente recuperado, causando um certo mal-estar da urgência. Depois, sair à rua, para compras ou trabalho, sentindo o vibrar ou chamado do telefone na bolsa e saber resistir-lhe em prol da execução das tarefas. Sempre que isto acontece me doutrino: antes não havia isto e todos vivíamos ou, de modo prático, não podes cair ou ser atropelada que o custo é alto, ou ainda me lembrar da existência dos ladrões de celular.

 

Aqui me digo como uma capricorniana disciplinada. Resisto até o elevador, que ninguém é de ferro. Retornamos e, muitas vezes cansados, vamos para a internet, enquanto relaxamos por minutos, antes de guardar pacotes, trocar de roupa, preparar a comida (como comemos!), conversar, se não se vive só. O jantar muitas vezes é interrompido por telefonemas familiares ou de amigos e ou abrimos o jogo- estou jantando, ligo depois, ou procuramos falar e mastigar no modo silencioso aproveitando o tempo. Depois vem o lavar a louça. Lavamos ou deixamos para amanhã? Para os que já têm uma tendência à procrastinação este é outro instante de tentação e resistência moral! Pois, lavemos. Vá que algo me aconteça e a pia estará cheia de louça suja é outro bom pensamento para os menos fortes. Depois, olhamos distraídas as horas no relógio e levamos um susto ao ver que nos restam 3 ou no máximo 4 horas para se deitar e dormir e reiniciar, com sorte, mais um dia. Repartir estas horas requer habilidades extras. Hora de conversar, telefonar, ver as notícias do dia transcorrido na ignorância, responder mensagens no Zap ou bisbilhotar o Face. Se acrescermos a necessidade de estudar, ler, ouvir música (antes, na juventude, fazia tudo isto ao som de música, hoje não mais posso), sonhar de olhos abertos, especialmente quando instigados por uma leitura, e, quem sabe, ver a série nova que estreou no canal e provavelmente dormir em frente à TV, exige um conhecimento que só um largo currículo vitae pode nos dar.
 

Repartir também implica em empatia ou presunção de semelhanças que por vezes só existem em nossa imaginação. Todo o dia me assusto ao descobrir pessoas que julguei tão bem e descubro tão mesquinhas e pobres! Mas insisto em repartir, contemporaneamente, pois este é o meu tempo também, muita coisa por aqui. Linhas mal traçadas, sentimentos pessoais ou do meu mundo diferente de outros mundo sonhados por outros, de lutas pela sobrevivência de valores inalienáveis aos povos de qualquer lugar, de pertencimento a minha cultura brasileira, de artes, músicas, seja o que for, até por vezes de minha inadequação a determinadas situações ou ideologias. Se ganhei um like ou comentário fico feliz. Houve comunicação entre as partes, repartimento. Caso contrário, já passei do tempo em que teria que repartir esta frustração com o analista.
 

Reparto hoje com vocês, minhas desculpas por não ler tudo o que os amigos publicam, por aniversários olvidados, por certa amargura que se derrama em alguns textos ou fatos ou mesmo poemas e imagens vindos de uma alma que já transitou por alguns infernos, mas conheceu momentos de um azul gigantesco e efêmero.
 

Por fim, reparto com vocês, uma indicação de série na Netflix. Já a indiquei, quando de seu lançamento e hoje pelo chegada da segunda temporada, do Método Kominsky. Uma série cujos protagonistas maravilhosos- Michael Douglas e Alan Arkin- vivem a última fase de suas existências e as repartem conosco. Impossível não apreciar o talento, a experiência das perdas e superações, as discussões de fundo sobre a arte teatral, o sentido da vida e a possibilidade de amar, perdoar e se reconciliar com o passado e enriquecer o tempo que nos resta. Ali estou eu e muitos de nós. Espero que gostem.
 

PS. Também adoro o Caetano que sabiamente nos disse que o sol se reparte em crimes, espaçonaves, guerrilhas, em Cardinales bonitas. Eu vou.