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(Norman Rockwell, 1926, O Médico e a Boneca)

 

 

Estudos norte-americanos sinalizaram que uma das consequências disto

(a feminização da profissão de médico) seria uma progressiva perda de prestígio social e de diminuição salarial dos profissionais médicos, baseados no fato de que as mulheres médicas são menos afeiçoadas, ou por desinteresse ou pela dupla jornada, a participarem das associações profissionais, a fazerem política e a defenderem aguerridamente os interesses da categoria.

 

Não Olhou na Minha Cara.
Não Sabe a Cor dos Meus Olhos.

por Stela Maris Grespan


De que matéria é feita o objeto de estudo de físicos, astrônomos, químicos, matemáticos, engenheiros, pedreiros, eletricistas, encanadores e tantas outras incontáveis profissões? Certamente, não é diretamente o homem.
 

No terreno das Humanidades, tomemos como exemplo, filósofos, antropólogos, sociólogos, linguistas e até, por que não(?) economistas. Seria o homem, porém eu diria, talvez inapropriadamente, um homem desnaturado, porquanto pensado como uma linguagem organizada de sua razão, cultura, origem, raça, sistema de crenças e utilização dos bens materiais.
 

Apenas os profissionais da Saúde têm como objeto de estudo o homem encarnado, real, absurdamente real, em sua condição de maior vulnerabilidades e fraqueza que é a doença, seja orgânica ou psíquica. E a doença não é uma entidade apartada do homem, dotada de pés que a conduzem às inúmeras salas de atendimento sejam privadas ou públicas. O homem entra inteiro, com sua doença e sua história, aquela investigada teoricamente pelos humanistas em toda a sua complexidade e que muitas vezes não conhecemos. Qualquer profissional da saúde não fez sua escolha ao acaso. Por detrás de sua eventual justificativa racional, há, também, uma construção psíquica que determinou sua opção por cuidar de seu semelhante. Por que cuidar de outro é um gesto amoroso, de generosidade e desprendimento. Mesmo que pontual. Mesmo que dure 15 minutos ou 1 hora. Não importa.
Falo agora daquilo que faço, pois desconheço a ciência dos outros misteres que envolvem a saúde.
 

A Medicina, no Brasil, mudou consideravelmente nas últimas décadas. A quantidade de profissionais é hoje exponencial em relação ao passado, graças ao aumento da demanda populacional, da abertura de escolas médicas, maiormente privadas (não discutirei aqui a política que envolve estas aberturas) e de maior acesso à educação. Em consequência, o número de profissionais jovens é esmagador em relação aos mais velhos, embora tenhamos muitos profissionais da terceira idade em plena atividade, por razões múltiplas, inclusive por necessidade de sobrevivência financeira, já que suas aposentadorias são tão pífias quanto a das demais categorias profissionais que não a dos magistrados, oficiais superiores das forças armadas, ou dos poderes legislativos e executivos.
 

A tecnologia a serviço do diagnóstico e da terapêutica progride em ritmo avassalador, deixando a propedêutica tradicional quase obsoleta e, aparentemente, desnecessária. O mundo tecnológico exerce um fascínio incomparável sobre todos nós, novos e velhos. As imagens cada vez mais perfeitas, a robótica, tudo enfim.
 

A feminização da profissão é um outro aspecto a refletir, dadas suas múltiplas vertentes, tanto do ponto de vista causal, quanto de suas implicações e consequências. Dentre as causas, poderíamos dizer que nada mais natural, para o exercício de cuidados, do que a condição feminina, associada à maternidade e ao seu papel de nutriz primordial, mantida secularmente nos cuidados familiares, quer de filhos, companheiros e pais. A partir dos anos 20 do século passado, também começou a inserção feminina progressiva no campo do magistério, à época um tradicional reduto masculino, em todas as sociedades patriarcais. Com os baixos salários de professores, particularmente no ensino fundamental, tornou-se o magistério, com o passar dos anos, uma profissão predominantemente feminina.

 

Os homens saíram à procura de profissões mais rentáveis e de maior prestígio social. Mas, as conquistas femininas por direitos iguais, a necessidade de ser co-participativa na economia familiar, o desejo de conhecimento, a oportunidade de estudar, a ambição, foram levando as mulheres a estudar e a se qualificar cada vez mais, em profissões até então masculinas.

 

Estudo interessante realizado pelo MEC mostra que as mulheres estudam mais tempo, em anos, dos que os homens. Mais garotos abandonam os bancos escolares, após o fundamental, do que garotas, movidos pela necessidade de trabalhar e contribuir para a sobrevivência da família. As faculdades privadas, segundo o mesmo estudo, têm mais alunas do que alunos, especialmente na áreas das humanas, porém menos mestrandas e doutorandas. A medicina dá uma boa condição financeira a boa parte de seus profissionais, porém apenas uma minoria consegue amealhar um ganho significativo que lhe permita fazer parte da elite financeira da sociedade. De modo geral, são os empresários da medicina. A imensa maioria perambula entre 3 ou 4 locais de trabalho, uma vez que a legislação trabalhista prevê uma jornada médica de 4 horas. Isto significa que, frequentemente, para se deslocar de um lado a outro, deixa de almoçar, come porcarias, não faz exercício e padece bastante da Síndrome de Burnout que é o esgotamento profissional por estresse crônico.

 

Com tudo isto, ainda que uma profissão de prestígio social (embora duramente criticada) vem deixando, lentamente, de ser atraente aos homens que visam rendas maiores. No entanto, algumas áreas ditas nobres, dentro da profissão, continuam sendo redutos majoritariamente masculinos.

 

Estudos realizados pelo CREMESP, anos atrás, bem o demonstra e sinaliza o campo da Medicina de Família como muito atrativo para as mulheres, até por suas qualidades " inatas" de cuidadoras. Ora, não nos iludamos com as conquistas, a luta é grande para que possamos demonstrar que temos capacidades idênticas e podemos nos dedicar ao que bem escolhermos. Por último, a feminização da profissão, tem caráter universal e parece ter sido iniciada na Rússia, como parte de um quadro de " desqualificação financeira" da profissão.

 

Estudos norte-americanos sinalizaram que uma das consequências disto seria uma progressiva perda de prestígio social e de diminuição salarial dos profissionais médicos, baseados no fato de que as mulheres médicas são menos afeiçoadas, ou por desinteresse ou pela dupla jornada, a participarem das associações profissionais, a fazerem política e a defenderem aguerridamente os interesses da categoria. As entidades profissionais, lá como aqui, realmente têm um número pequeno de mulheres em postos de direção.
 

E, finalmente, retomarei o fato seminal do porquê ser um cuidador, colocando a questão da humanização do exercício da profissão que vem sendo debatida pela sociedade em geral e pelas sociedades médicas regionais e nacionais.

 

A grande grita da população de que o médico é frio, pouco empático, não olhou na minha cara, não sabe a cor dos meus olhos, só ficou olhando o computador, não me ouviu, não examinou e só pediu-me exames e já foi passando a receita... e por aí afora...
 

Outro dia darei continuidade. Obrigada aos que leram até aqui. Paciência é fundamental. Para todos nós. Saber ouvir e ler o subtexto. Até breve