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Muito Longe do Natal e da Vacina

por Isabel Fomm de Vasconcellos - Revista UpPharma 2021 01

(com informações científicas do Prof. Dr. Joel Rennó Jr. -Psiquiatria USP)

 

 

Da sacada do segundo andar do velho casarão , por um longo momento, se mantêm quietos, apenas fitando o oceano: Jomar, sua esposa Aninha, a filha deles, Joana, e a matriarca da família, mãe dele, Margarida.
-- Quantas e quantas vezes não nos reunimos nesse terraço? – suspira, por fim, a velha Margarida – Nas festas de Natal, Réveillon, aniversários e até em nossos simples almoços de fim de semana. E, agora, talvez seja essa a minha última vez... Seu pai também soube quando foi a última vez de ele fitar o mar daqui de cima...

-- Mãe! – exclama Jomar – Pelo amor de Deus! Não diga uma coisa dessas! Você vai para o hospital, vai se tratar e, como tanta gente, voltará curada para casa.

-- Você é médico, meu filho – responde ela – Sabe que a minha chance de recuperação de um vírus desses é inversamente proporcional à minha idade. Já fiz 85.

-- A Dra. Angelita Gama fez 89 – diz Aninha – passou 52 dias no hospital, com COVID_19, logo no começo da pandemia e ontem estava numa live no Instagram. Você vai se recuperar, sogrinha, precisamos de você.

-- Mas creio que não a tempo – respondeu Margarida – para o nosso almoço tradicional de Natal aqui na sacada.

Estavam todos usando máscaras e a um metro de distância um do outro. A pequena Joana perguntou:
-- Nem vou poder abraçar vovó pela última vez? – tinha lágrimas nos olhos.

-- Pela última vez, antes dela voltar do hospital – corrigiu a atenta Aninha, e completou: -- Você sabe, Joana, que abraços ainda não são permitidos.

-- Só pra mim! —explodiu a garota, batendo os pés no chão – Olha lá, na praia, no calçadão, todo mundo está perto um do outro, tem até gente sem máscara e eu nem posso me despedir da vovó – e saiu correndo.

Aninha fez menção de seguir a menina, mas Jomar levantou a mão para detê-la, num gesto de paz:
-- Deixe, amor! Ela já tem idade suficiente para compreender as coisas mais dolorosas dessa vida.

-- O resultado de vocês deu positivo? – perguntou Margarida, sem rodeios.

-- Só o meu—respondeu Jomar – Porém meus sintomas até agora parecem muito leves.

-- Vai ser que nem o presidente – riu Margarida – ele tanto disse que a COVID não era nada, uma gripezinha, que ele era atleta, que tinha resistência, que, nele, não foi nada mesmo...

-- Ele incentiva atitudes como essas aí na praia – disse Jomar apontando com o queixo em direção ao mar. Você, mãe, ficou tantos meses trancada em casa e se contaminou porque essas aglomerações irresponsáveis acabaram trazendo o vírus até você, via jardineiro, entregador, alguém que chegou mais perto... E se aglomeram, irresponsavelmente, negando o perigo real e, pior, autoridades continuam dando o péssimo exemplo do negacionismo.

-- Jomar, meu filho, você, como psiquiatra, consegue explicar essa estupidez, essa negação da realidade, pessoas indo a festas clandestinas, se expondo e expondo aos outros, negando-se a enxergar que o mundo está vivendo a pior pandemia da sua história conhecida?

Jomar balançou de leve a cabeça num gesto que demonstrava um certo desânimo:

-- São muitos os fatores. O narcisista, por exemplo, só enxerga a si próprio e não ouve ninguém, não aceita sequer as evidências científicas e, nesse caso, não se trata de ignorância, falta de conhecimento. Não. É uma necessidade permanente do narcisista reforçar apenas as suas próprias crenças. Mas depende também da história de vida de cada um, de como foi sua infância, sua juventude, que tipo de comunicação existia em seu meio, tudo isso. Algumas pessoas vão formando uma personalidade com determinadas características patológicas e é por isso que acabam tendo um comportamento assustador, um excessivo individualismo, uma frieza, uma falta de empatia, de compaixão. São pessoas assim que negam as evidências científicas tão robustas quanto as que temos agora, principalmente agora, que já aprendemos muito sobre esse vírus e sabemos como o distanciamento social e o uso de máscaras são imprescindíveis. Para pessoas assim, infelizmente, minha mãe, só resta o cumprimento rigoroso da Lei, a punição pelas infrações e a responsabilização por seus atos temerários.

Nesse instante, a ambulância embicou na entrada da casa. Jomar acionou o controle do portão e o pessoal da saúde, parecendo uns astronautas, completamente paramentados, protegidos, carregou para dentro a maca, onde Margarida foi deitada, enquanto Joana soluçava e era contida por Aninha:
-- Quero ir com ela! Quero ir com a vovó!

Aninha também tinha os olhos cheios de lágrimas. Pensava no quanto Margarida a amparara quando fôra a vez dela, Aninha, passar por cirurgia e quimioterapia. Na verdade, sua sogra fôra de maior auxílio a ela do que a sua própria mãe, que também tivera câncer e ficara assustada demais quando viu a doença na filha.

Agora todos estavam correndo o risco da doença e da morte – pensava Aninha, diante do pranto da sua pequena menina ao ver partir a avó.
-- Se Deus quiser, a vovó vai voltar boa – disse.

-- Mas e se Deus não quiser, mãe?

-- O mais importante é que seja feita a vontade D’Ele – respondeu Aninha, acariciando os cabelos da filha – Ele tem razões que a razão desconhece.

-- Que nem o coração? – perguntou a menina – Tem uma música que diz isso: o coração tem razões que a razão desconhece.

Aninha teve que rir: -- Sim, minha filha, que nem o coração.

De máscaras, dentro do carro, pois afinal Jomar testara positivo, fizeram a viagem da praia à cidade. Aninha pensava nas muitas vezes em que o marido a abraçava quando ela sofria aqueles horríveis enjoos da quimioterapia. Agora era ele quem estava doente, perigosamente doente, e ela tinha que manter distância, ela não podia abraça-lo. Pensava na sogra, condenada talvez a passar os últimos dias de sua vida numa UTI gelada, respirando com a ajuda de aparelhos... sofrendo, enfim!

A estrada mais vazia do que normalmente, afinal não era o dia de voltar da praia, o carro que Aninha dirigia corria suave sobre o asfalto. Logo não só Joana, no banco de trás, estava dormindo como também Jomar cochilava ao seu lado. Aninha baixou o volume da música, pensando que talvez não tivesse sido a aglomeração nas praias, nem o jardineiro, nem a empregada que – contrariando todas as orientações recebidas – teimava em sair para ir buscar pão; nem o motoboy que trazia as compras... Talvez tivessem sido eles próprios, insistindo em manter a tradição de ir ao casarão de Margarida nos fins de semana, que tivessem levado o maldito vírus até ela.

Eram muitas as dúvidas na alma e no pensamento de Aninha. Desde o começo da pandemia, naqueles longos oito meses, eles – a família – tomavam todos os cuidados necessários. Jomar atendia muitos pacientes à distância, pela telemedicina liberada afinal pelo CFM, mas, para os casos mais graves, o atendimento precisava ser presencial. Face Shield, máscara cirúrgica, o termômetro à porta do consultório... enfim... todas as medidas. Ao chegar da rua, sapatos no tapete sanitizante, roupas no cesto e direto pra lavadora, água e sabão, banhos demorados... Ela própria fazia todas as compras por Internet e trabalhava para sua empresa corretora de valores por home office. Joana tinha aulas no seu note book e no celular.

A vida mudara completamente. Mas, mesmo assim, as ruas estavam lotadas, os shoppings e restaurantes, cheios de gente que parecia gostar de viver perigosamente. A verdade era que a Segunda Onda da Covid_19 chegara junto com Papai Noel. Naquele começo de dezembro, o vírus parecia estar dando preferência não mais aos velhos, mas sim às pessoas com menos de 50 anos, como era o caso dela e do marido.

Quantas barbaridades ela lera nas redes sociais em março, abril, maio... Gente que dizia não ter importância que os idosos morressem, aliviariam as despesas da Previdência Social e já tinham vivido bastante. Gente que pensava poder se prevenir com cloroquina ou whisky com mel. Gente que preferia ter a doença “de uma vez” e se livrar logo disso, ignorando que o vírus deixava, muitas vezes, graves sequelas neurológicas, cardiológicas e respiratórias e sem saber ainda se o fato de ter tido o vírus geraria uma imunidade permanente.

No entanto, o vírus que, no começo, ela julgara que poderia ser, pelo menos, uma lição de humanidade, já que nivelara todas as pessoas da Terra, fossem ricas, pobres, sábias, ignorantes, a um mesmo patamar de risco, parecia não ter ensinado muita coisa.

Ninguém estaria livre dele antes que a ciência conseguisse uma vacina. Aninha julgara então que essa igualdade diante da vida e da morte pudesse tornar mais conscientes os povos, menos arrogantes algumas pessoas, mais humildes, outras. Julgava que entenderiam o recado da Terra aos seres humanos. Assim como o aquecimento global estava derretendo as geleiras e fazendo desabar, por exemplo, casas construídas à beira mar, em algumas praias do nordeste brasileiro, a destruição de habitat de várias espécies animais as estava trazendo perto demais às cidades e, com elas, esses vírus estranhos – como fora o H1N1 em 2003 e estava sendo o Novo Coronavírus agora – que jamais deveriam ter deixado as florestas.

Um planeta devastado não apenas pela contínua agressão à Natureza mas também por uma mentalidade estúpida, quase psicótica e, atualmente, em pleno retrocesso. Gente que se julgava superior aos outros porque era branca, porque era rica, porque tinha diplomas superiores... Um verso de MPB veio à sua mente : “todo mundo é igual quando o tombo termina com terra por cima e na horizontal” – era Billy Blanco, mas ela não se lembrava nem de ter ouvido a música.

Nem com a morte batendo à porta, uma grande parte do povo parecia compreender que não era hora de se divertir, que não era hora de ir à praia e muito menos à festa clandestina. A humanidade é burra – concluiu em pensamento – e está tendo o que merece.

Era Natal.

O Natal mais diferente do mundo cristão.

O Natal, ainda que muitas vezes fosse cínico, hipócrita, era sim a festa da confraternização, do encontro, do perdão e do renascimento.

E agora?

Na mesma noite, Jomar acordou de madrugada com muita dificuldade para respirar.
-- Tenho que ir para o hospital – disse ele simplesmente.

Já tinha 50% dos pulmões comprometidos, diagnosticaram os médicos que o levaram para a UTI.

Em casa, Aninha tentava consolar a filha, mas não encontrava nenhum consolo ela própria. Apenas uma revolta a oprimir lhe o peito. Uma revolta contra todos os que, conscientemente, estavam ajudando a disseminar o vírus. Os egoístas, os que só pensavam em si mesmos. Os que saíam de casa sem ter necessidade de sair, apenas ajudando a espalhar a doença. Ao contrário daqueles que precisavam sair para que o mundo não parasse, os dos serviços essenciais, os da saúde... Os mesmos que, inclusive, pensou ela, muitas vezes estavam trabalhando em plena véspera de Natal.

E agora? Como seria o Natal?

Estavam em 12 de dezembro. A internação em UTI para os que tinham a síndrome respiratória variava de 10 dias a 3 meses. Jomar estaria de volta antes do Natal?

Todos os doentes da COVID_19 estavam condenados à solidão. Não podiam receber visitas. Suas únicas companhias eram o pessoal do hospital e as imagens virtuais de seus entes queridos no celular ou nos tablets.

Aninha sentia-se injustiçada, mais até do que se sentira ao descobrir o seu câncer. O câncer era individual, o seu, no caso, estava escrito em seus genes. A COVID era coletiva. Responsabilidade de todos e muitos continuavam cegos, surdos e loucos.

Ninguém ouviria o grito do planeta? Ninguém aprenderia nada com aquele nivelar da humanidade à sua própria fragilidade?

Foi então que lembrou-se. Havia dois milênios um homem explicara tudo isso: a importância da solidariedade, da compreensão das não diferenças, da igualdade intrínseca de todos os seres humanos diante da morte, a consciência de ser apenas parte de um Todo maior, a necessidade de se amar ao próximo como a si mesmo.

Fôra há mais de 2 mil anos. Se até hoje a humanidade não aprendera, por que aprenderia agora?

Isabel Fomm de Vasconcellos é escritora e jornalista com especialização em saúde, apresentadora de TV. isabel@isabelvasconcellos.com.br