Quem é leitor dos meus livros ou me conhece ou me segue nas redes
sociais, sabe que tive o privilégio de nascer com uma alma libertária.
Mais do que isso, tive um segundo privilégio de ter tido pais
maravilhosos, generosos e com uma cabeça à frente do seu tempo e que,
portanto, só fizeram incentivar a minha liberdade. Por fim, o terceiro
grande privilégio foi ter sido jovem nos anos 1960, uma juventude que
pensava poder mudar a face do planeta com seus versos de paz e amor,
suas músicas de protesto e sua máxima do faça-amor-não-faça-a-guerra.
Tive mestres maravilhosos na escola básica e depois nas universidades
que cursei. Desde criança, li muito e me deparei com diferentes visões
de mundo e diferentes posições políticas, o que me fez mais tolerante e
mais compreensiva, ouvidos abertos para pensamentos diferentes dos meus.
Isso
tudo são fatos da minha vida pelos quais, todos os dias, agradeço a Deus
ou ao Universo, não sei bem...
O que estou dizendo é apenas para que o leitor compreenda o quão
surpreendente foi uma consulta médica pela qual passei há cerca de duas
décadas atrás.
O médico em questão era um badalado cientista que estava na moda. As
feministas o acusavam de impingir métodos contraceptivos às mulheres
pobres de seu estado, sem sequer perguntar a elas se era isso o que
queriam. Para ser sincera, do alto da minha ingenuidade intelectual, eu
não conseguia acreditar que um homem tão dedicado à ciência e à arte de
curar fosse capaz de uma atitude dessas e atribuía os rumores que o
cercavam à inveja e à maledicência que frequentemente cercam os
bem-sucedidos nessa vida.
O Professor em questão mantinha um consultório em São Paulo, embora
lecionasse Medicina e fizesse suas pesquisas em seu estado de origem. A
cada quinze dias estava por aqui. Convidei-o para o meu programa de TV e
o entrevistei. Ele me disse que tivera sucesso controlando a Síndrome da
Tensão Pré Menstrual de uma celebridade feminina, minha colega de TV, só
que muito mais famosa do que eu, uma celebridade global.
Ora, eu sofria também com minhas oscilações de humor na TPM e imaginava
que meu marido era um santo por aturar isso em mim. Rapidamente, marquei
uma consulta. Queria que o médico famoso me livrasse também do martírio
emocional da dança dos hormônios femininos, o que, aliás, sempre julguei
um alto preço pelo privilégio de gestar um filho.
Muito bem. A consulta ia às mil maravilhas quando ele me pergunta:
-- Mas você fuma?
Sim. Eu fumava, à época, há vinte anos passados. E ele:
-- Você vai parar de fumar porque, com esse coquetel de medicamentos que
lhe estou receitando, não é possível fumar.
Respondi:
-- Não sei se consigo e nem sei se quero.
Ele:
-- Não me importo com o que você quer. Eu vou telefonar para o seu filho
e ele vai obrigar você a parar de fumar.
Quase caí da cadeira. Que arrogância! Que prepotência!
Começa
pelo fato de que eu não tenho filhos e essa foi uma opção que fiz na
juventude: não ter filhos para poder me dedicar inteiramente à vida
profissional. E continua pela evidência de que, se eu tivesse algum
filho, jamais permitiria que ele exercesse qualquer autoridade sobre
mim.
Imagine o meu susto! O susto de quem jamais poderia imaginar tanta
prepotência machista num homem que, até aquele momento, era digno da
minha admiração!
Saí da consulta, acendi um cigarro, amassei a receita que ele me dera e
joguei na lata de lixo da recepção mesmo. Nunca mais falei com o sujeito
e muito menos o entrevistei novamente na TV.
Então percebi que aquela era uma realidade para muitas mulheres
conformadas com a sua condição social inferior. Percebi que deveriam
existir muitos e muitos lares onde não apenas os maridos mandavam nas
mulheres, mas também os seus próprios filhos.
Não vou me estender nesse assunto batido e que não é do agrado de
ninguém, nem mesmo do meu editor aqui na revista. Mas tenho algo
importante a dizer a você, mulher, leitora, amiga: Não existe saúde
mental que resista à condição de submissão e intimidação. E sem saúde
mental não existe saúde física.
Se você está nessa condição de submissão – muitas vezes, submetida até a
violência doméstica – pule fora desse barco! Pule, em nome da sua saúde
e do seu bem-estar. Pouco importa se você vai perder alguma coisa como
dinheiro ou status. Vá trabalhar. Vá conquistar o seu próprio dinheiro e
o seu próprio status na sociedade. Todos os trabalhos são dignos, ainda
que os mais humildes. E, embora pareça o contrário, o dinheiro não é
tudo nessa vida.
Seja você mesma, assuma seus pensamentos, suas convicções, sejam essas
quais forem e não permita que ninguém, ninguém mesmo, a trate como
propriedade, como inferior, como escrava ou saco de pancada.
Seja livre e você se descobrirá sadia e feliz.
Graças a Deus (e às mulheres organizadas) hoje existem muitas
instituições* que podem ajudar você a dar esse primeiro passo.
Liberte-se.
*(61)3323.7264, Centro de Atendimento à Mulher; 100,
Ministério da Mulher e da Família; 180, Disque Denúncia; (61)3226.5024,
Casa da Mulher Brasileira; (61)3910.1350, Programa de Prevenção à
Violência Doméstica da Polícia Militar. Ou mande um email para najmulher@defensoria.gov.br.
Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano é escritora com 17
livros publicados, é jornalista com especialização em saúde e
apresentadora de TV
isabel@isabelvasconcellos.com.br
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