| Em 
		27 de agosto de 2020, o Ministro Interino da Saúde assina uma portaria 
		para complicar ainda um pouco mais a vida da mulher que, vítima de 
		estupro, engravida e quer se livrar dessa dolorosa lembrança que começa 
		a crescer dentro dela. 
 As brasileiras, desde 7 de dezembro de 1940, data da promulgação da 
		chamada “Lei do Aborto Legal” (Decreto-Lei n.2848, no Código Penal), têm 
		o direito a praticar o aborto em caso de gravidez resultante de 
		violência sexual.
 
 Direito esse largamente e longamente contestado desde que foi adquirido 
		há – pasme-se! – 80 anos passados.
 
 A portaria de 2020 visa, de fato, tornar mais burocrático e complicado, 
		no SUS, o processo de autorização do aborto legal, à vítima do estupro. 
		Bem, isso não é grande novidade.
 
 Ao longo desse quase um século, desde a existência da Lei, pouquíssimas 
		vítimas de violência sexual conseguiram exercer esse seu direito; a 
		burocracia e a resistência de grande parte do pessoal da saúde, sempre 
		dificultaram, e muito, o cumprimento dessa Lei.
 
 Nos anos 1990, havia um oásis no meio do deserto em que se encontraram 
		as grávidas vitimadas pela violência. Era o Hospital Jabaquara, aqui em 
		São Paulo, um hospital público municipal, onde essas mulheres 
		encontravam não só a possibilidade de interromper essa indesejada 
		gravidez como também todo o apoio médico e psicológico para fazer isso.
 
 Ou seja, as vítimas eram cuidadas e não acusadas.
 
 Sob a direção do saudoso Dr. Jorge Andalaft, o Hospital Jabaquara foi 
		exemplo e inspiração para que, afinal, se começasse a cumprir uma lei 
		que, na maioria das vezes, era driblada pela burocracia e pela 
		intolerância dos preconceitos machistas que sempre negaram às mulheres 
		as decisões sobre a sua própria vida – como bem explica o médico 
		ginecologista e obstetra Dr. Riechelmann, que cito aqui novamente.
 
 Muito lutaram as feministas e os humanistas, tanto no meio jurídico 
		quanto no policial, para “desculpabilizar” as mulheres estupradas. Uma 
		mulher estuprada, até muito pouco tempo atrás, não daria queixa na 
		polícia, não denunciaria o crime, porque sabia que seria humilhada, numa 
		delegacia, por perguntas do tipo “que roupa você estava usando?”, 
		perguntas que deixavam claro que ela sofrera a violência sexual porque 
		atraíra o violentador através de atos provocativos.
 
 Só a partir de 1985, com a criação da Primeira Delegacia de Defesa da 
		Mulher, atos como o espancamento dentro do próprio lar, ou fora dele, e 
		o das violências sexuais, começaram a poder ser denunciados e tratados 
		como realmente o são: como crimes!
 
 A portaria de 2020 traz crueldades evidentes, tais quais obrigar o 
		médico a denunciar o estupro sofrido por sua paciente ou coloca-la num 
		ultrassom para que ela visualize o feto, o resultado da violência 
		traumática que ela sofreu. Violência maior ainda parece a tentativa 
		estúpida de obrigar as mulheres a levarem a termo essa gravidez, a 
		passarem nove meses de sua vida convivendo com o sofrimento da lembrança 
		e o sofrimento de uma gravidez não desejada.
 
 O filho que resulta de um ato de amor faz com que as mulheres encarem 
		com bastante resiliência as mudanças fisiológicas desagradáveis, e nem 
		sempre saudáveis, decorrentes da gravidez. O filho que resulta de um ato 
		de agressão, fará piores os sofrimentos decorrentes do estado gravídico.
 
 Os legisladores, todos homens, lá no final dos anos 1930, já tinham essa 
		generosa compreensão. Agora, parecemos retroceder. A Lei de 1940 não diz 
		quando é que essa interrupção da gravidez pode acontecer. Não coloca 
		prazos.
 
 Para a Medicina, a definição técnica de aborto é a de extração de um 
		feto até 22 semanas de gravidez ou 500g de peso.
 
 Se os legisladores de 1940 entendiam o sofrimento que seria causado por 
		uma gravidez resultante de um estupro, a portaria do MS de 2020 
		retrocede da compreensão para a intolerância, do acolhimento para a 
		punição da própria vítima.
 
 Nem sempre caminhamos para a frente.
 
 Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano é escritora, com 
		17 livros publicados, jornalista e apresentadora de TV. isabel@isabelvasconcellos.com.br
 
 |